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Embaixador brasileiro reconhece avanços na Líbia pós-Gadaffi, mas diz que violência ameaça progresso

Afonso Álvaro de Siqueira Carbonar, embaixador do Brasil na Líbia - Kleber Lima/Agência Senado
Afonso Álvaro de Siqueira Carbonar, embaixador do Brasil na Líbia Imagem: Kleber Lima/Agência Senado

Larissa Leiros Baroni

Do UOL, em São Paulo

21/10/2012 06h00

Ainda que reconheça os avanços no território líbio, um ano após a morte do ex-ditador Muammar Gaddafi, o embaixador do Brasil na Líbia, Afonso Álvaro de Siqueira Carbonar --que está no país desde agosto deste ano--, disse em entrevista ao UOL temer que a violência emperre o processo de transformação do país, que tem a nona maior reserva de petróleo do mundo.

"A Líbia passa por uma fase de transição democrática", afirma ele, que citou avanços importantes do país em direção a esse caminho nos últimos 12 meses, entre eles as eleições parlamentares com ativa participação da população e a escolha de um novo primeiro-ministro. Carbonar não descarta a existência de problemas estruturais decorrentes principalmente da transição e da guerra civil. Mas diz que a "Líbia é um dos poucos países de alto desempenho e dinamismo do mundo".

O embaixador falou ainda sobre as relações diplomáticas entre o Brasil e a Líbia, sobre as consequências do ataque contra o consulado dos Estados Unidos em Bengazhi, que provocou a morte do embaixador americano Christopher Stevens, sobre a suposta ação da Al Qaeda no país recém-democrático, bem como sobre a segurança dele e dos demais brasileiros que vivem por lá.

Leia a íntegra da entrevista:

UOL: Como está a Líbia após a era Gaddafi? É um país mais democrático?
Afonso Álvaro de Siqueira Carbonar: A Líbia passa por uma fase de transição democrática. No último domingo (14), foi eleito o primeiro-ministro adjunto do processo de transição, que se chama Ali Zidan, e essa eleição deve ser interpretada como mais um passo importante em direção da consolidação da democracia líbia. Dentro de duas semanas, será consolidado o primeiro governo líbio --a partir do voto popular-- em mais de 42 anos.

UOL: Pode-se dizer que a Líbia já é um país democrático ou que vivencia um processo de transição em direção a essa democracia?
Carbonar: Eu diria que a Líbia é um país democrático, consagrado pelas eleições abertas de julho. Mas que está consolidando e aperfeiçoando, progressivamente, suas práticas de governança, assim como qualquer outro país. Caminha em direção à criação de instituições de Estado, que na era Gaddafi não existiam, e à construção de sua nova Constituição. É um momento histórico e de grande importância para o país e para o povo. Ou seja, é uma democracia palpável e tangível tanto no dia-a-dia como na prática do governo. Mas é evidente que haja problemas que são decorrentes da transição e da guerra civil, o que é normal.

UOL: No último ano a Líbia passou por muitas transformações. Como as relações diplomáticas Brasil e Líbia acompanharam essa transição? Qual era essa relação no fim do comando do Gaddafi? E agora, há mais proximidade entre os dois países?
Carbonar: As relações do Brasil e da Líbia estão muito mais próximas desde a morte de Gaddafi. Tanto é que em agosto, quando cheguei ao país, fui recebido de uma maneira bem carinhosa pelo governo líbio e também pela população. Vale lembrar que Gaddafi se relacionava basicamente com os chefes de Estado, portanto, essas relações eram muito mornas e pouco dinâmicas. Não é à toa que as cooperações naquela época eram inexpressivas. O que havia, e ainda há, é uma necessidade muito grande de infraestrutura, já que o país é rico e muito grande (do tamanho do Estado do Amazonas e de Roraima juntos). Hoje, no entanto, essa relação é mais democrática, uma relação entre Estados, onde há uma enorme solidariedade. Se antes as parcerias eram executadas pela cúpula, atualmente elas estão presentes nos vários níveis de governo.

UOL: A Embaixada do Brasil na Líbia foi fechada em meio ao terror do fim da era Gaddafi, mas foi reaberta após 15 meses, quando o processo de paz aparentemente estava instaurado no país. Como foi essa volta?
Carbonar: O Brasil voltou muito bem para a Líbia, querendo ampliar os laços e suas complementariedades, assim como eles também se demonstraram bem abertos a essa troca. No meu segundo dia de trabalho fui recebido pelo ministro das Relações Exteriores da Líbia, que agradeceu o Brasil por sua colaboração ao desenvolvimento do país e em particular às empresas brasileiras. O governo líbio tem consciência de que precisa passar por uma grande reconstrução e de que o Brasil pode ajudá-lo nesse processo.

A Líbia tem a nona reserva de petróleo do mundo, mas acredita-se que ela possa dobrar sua produção. E o Brasil está disposto a ajudá-la nas pesquisas. Eles também já demostraram grande interesse nas políticas sociais, inclusivas e econômicas brasileiras. Tenho, inclusive, uma reunião agendada para falar sobre políticas de saúde. Há muito o que fazer ainda. Em contrapartida, o Brasil tem uma complementariedade muito grande com a Líbia, já que o país produz um tipo de petróleo --com baixo teor de enxofre-- de grande interesse brasileiro.    

UOL: Pode-se dizer que o país conseguiu a desejada estabilidade neste um ano sem a ditadura de Gaddafi?
Carbonar: Estão passando por muitas transformações. É preciso reconhecer que a Líbia é um país que está em movimento e sua atual realidade carrega influências de sua história. A área de segurança é uma área central, fundamental. E isso é reconhecido tanto pelos mais altos como pelos mais modestos interlocutores líbios. Eles entendem que a estabilização do país está relacionada à segurança da população, do Estado e das embaixadas, bem como que esse tema é essencial para a continuidade dos avanços democráticos. Mas reconhecem que precisam da ajuda do mundo inteiro. E o Brasil deve ajudar, trazendo suas boas experiências.

UOL: Qual tem sido a participação do Brasil no mercado líbio?
Carbonar: Ao menos 50 empresas brasileiras exportam mais de US$ 20 milhões (cerca de R$ 40,5 milhões) para a Líbia. Nós pulamos de cerca de US$ 70 milhões para US$ 1,7 bilhão em 2009. Mas com a crise econômica mundial e com os conflitos internos na Líbia, esse valor diminuiu consideravelmente. Porém o potencial aqui é de que consigamos alcançar aproximadamente US$ 4 bilhões sem nenhuma dificuldade. Nós já estamos exportando carnes, com a Sadia e a Brasil Foods, e aviões com a Embraer. Na área de serviço de engenharia, há acordos de exportação no valor de US$ 9 bilhões (cerca de R$ 18 bilhões), podendo ser ampliado para US$ 15 bilhões (cerca de R$ 30 bilhões) nos próximos cinco anos.

Raio-X da Líbia

  • Nome oficial: Líbia
    Localização: África do Norte
    Nacionalidade: líbia
    Capital: Trípoli
    Divisão: três províncias
    Língua: árabe
    Religião: islâmica (sunitas)
    Moeda: dinar líbio
    Geografia: grandes áreas de deserto. Faz fronteira com o Egito, a leste (1.150 km), Tunísia (459 km) e Argélia no oeste (982 km)
    Clima: verões quentes e invernos suaves, com noites frias. O deserto tem dias quentes e noites frias
    Idioma: árabe
    Área: 1.759.540 quilômetros quadrados
    População: 6.597.960 (julho 2011)
    Principais cidades: Banghazi, Sabha, Misratah, Darnah, Zawia, Gharyan, Sirte
    Indústrias: petróleo, processamento de alimentos, têxteis, artesanato, cimento
    Recursos naturais: petróleo, gás natural, gesso

UOL: Quais são as áreas na Líbia com maior potencial de crescimento?
Carbonar: A Líbia é um dos poucos países de alto desempenho e dinamismo do mundo. Ou seja, é um dos poucos países que vão crescer cerca de 10% no próximo triênio, o que é algo que chama atenção. Há oportunidades na área de petróleo, infraestrutura, informática, médica, bens de consumo, bens duráveis, geração elétrica, transmissores... É um país que exporta cerca de US$ 60 bilhões e importa de US$ 30 bilhões a US$ 35 bilhões. O que significa que ela tem um superavit na ordem de US$ 15 bilhões e tem o costume de importar tudo. Vale ressaltar ainda que a Líbia também tem um poder turístico enorme, as praias aqui são maravilhosas.

UOL: O fim da era Gaddafi foi marcado pela violência. E os eventos mais recentes que colocaram a Líbia em destaque na imprensa internacional reforçaram a continuidade dessa violência. Essa é uma realidade do país ou é uma imagem distorcida?
Carbonar: Essa semana eu passei três horas no centro da cidade e não presenciei nenhuma cena de violência. É preciso entender que é um país em transformação e que nenhum estereótipo é bom, já que não refletem as riquezas sociais e econômicas do país. A segurança é a mais alta prioridade do país, como já informou o novo primeiro-ministro líbio. O governo está treinando as novas forças armadas, investindo no desmantelamento das milícias com a desmobilização, o desarmamento e a reintegração delas. A sociedade é muito mais complexa do que os artigos dos jornais. Há problemas? Há problemas, mas o mais importante a ressaltar após a tragédia na embaixada norte-americana é que a comunidade líbia protestou contra essa radicalização e uma campanha de desarmamento recomeçou no país.

UOL: A Líbia foi o cenário da 1ª morte de um embaixador americano desde 1979. Quais foram as consequências desse episódio para as relações diplomáticas do país com o mundo?
Carbonar: O mundo está querendo ajudar a Líbia nesse processo de transformação, inclusive Washington. Não faz sentido retaliar o país. Até porque foi um momento de consternação geral, os cidadãos ficaram entristecidos. Os que conduziram o ato de extrema violência não representam o povo líbio. Ainda assim as ocorrências servem para que a Líbia faça uma reflexão de seu destino.

UOL: Quais as consequências desse episódio para a segurança pessoal do senhor? E da embaixada?
Carbonar: A preocupação maior diante do fato foi com a pequena comunidade que damos assistência. Atualmente, há cerca de 40 brasileiros e/ou brasileiros de dupla nacionalidade que vivem na Líbia. Diante do nosso dever de protegê-los, entramos em contato com cada um deles para saber se estavam se sentindo ameaçados. Com a confirmação de que todos estavam seguros, fomos nos preocupar com a segurança da embaixada. Mas, como segurança é um tema sério demais para ser exposto, prefiro não entrar em detalhes. O que posso dizer é que a embaixada tem acompanhado cotidianamente a evolução do quadro da área de segurança na Líbia e vem fazendo os ajustes sempre que necessário. A cada fato novo, nós temos que ter respostas.

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UOL: Há muitas "teorias" rondando pela imprensa sobre as motivações dos ataques em Benghazi, na Líbia, uma delas aponta que o filme norte-americano anti-Islã tenha sido apenas uma desculpa. O que de fato aconteceu?
Carbonar: Existem muitas perguntas sobre o que está acontecendo. Há uma investigação em curso com relação à tragédia. Já ouvi diversas versões contraditórias do fato, inclusive em relação ao horário do atentando. Não estive em Benghazi, portanto, não posso afirmar nada. É preciso dar oportunidade para que essa investigação seja concluída. Mas vale ressaltar que estamos falando de um país multicultural.

UOL: A violência está atrelada à influência da Al Qaeda no país?
Carbonar: Como o próprio primeiro-ministro líbio já disse, não há nenhuma estrutura organizada do grupo extremista Al Qaeda na Líbia. Ele reconhece, no entanto, a existência de jovens influenciados por esse grupo.

UOL: Apesar da tentativa de o Conselho Nacional de Transição proibir partidos fundamentados em ideais religiosos ou tribais, a religião continua sendo o foco da política no país?
Carbonar: Cerca de 90% da Líbia é formada por muçulmanos moderados, portanto o Islã é uma parte integral da política e da vida dos líbios. Ainda assim é preciso lembrar que o Congresso Nacional da Líbia elegeu Ali Zidan como primeiro-ministro do país, ao invés do candidato ligado à Irmandade Mulçumana. O que o país quer é a paz e sua Constituição.

UOL: A Jordânia antecipou suas eleições parlamentares e promete introduzir seu regime democrático já a partir de janeiro. De que forma essa transformação beneficia a Líbia?
Carbonar: Apesar de a Jordânia estar há alguns milhares de quilômetros do território líbio, está situada no mundo árabe e isso traz um vínculo com a Líbia. Ou seja, o que aconteceu aqui teve e terá consequências na comunidade. E o inverso também é verdadeiro. A Líbia democrática, pelo peso de sua economia, pode ter uma influência decisiva para a construção da paz e a construção de um mundo mais seguro no Oriente Médio.

UOL: Já a Síria se afunda em uma guerra civil com os confrontos rotineiros entre o regime de Assad e os rebeldes. Como essa crise tem influenciado a Líbia?
Carbonar: Ainda em que haja interligação entre a Líbia e todos os países do Oriente Médio e do norte da África, e os processos têm influência um sobre o outro, a crise na Síria não compromete o processo democrático da Líbia. A influência é muito maior do lado inverso.

UOL: Em que se transformou a Primavera Árabe, que começou com a revolta popular e já contribuiu para a queda de quatro regimes ditatoriais (Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen)?
Carbonar: A Primavera Árabe ainda precisa se consolidar, amadurecer e gerar mais frutos em toda a região. Mas a participação de cerca de 65% dos líbios nas eleições parlamentares já é um exemplo de que esse movimento popular não morreu na Líbia junto com a queda do ex-ditador Muammar Gaddafi. Essa ativa participação no processo democrático do país também é vista nos protestos contra o desarmamento, as mais de 500 milícias existentes e a violência em Benghazi. Isso é uma expressão forte de que a Primavera Árabe está viva, pelo menos na Líbia.

UOL: A Turquia tem assumido um papel de mediaor dos conflitos no mundo árabe. Como o senhor avalia essa atuação? O Brasil pode colaborar com esse processo? De que maneira?
Carbonar: O Brasil sempre que pode contribui e está contribuindo para o processo de paz. Nós somos vistos como parte da solução dos problemas mundiais e não como parte da causa deles. Nossa posição, que está ligada a identidade nacional brasileira, é de que os conflitos devam ser resolvidos sempre de maneira pacífica. E nós encontramos na Turquia um importante parceiro nesse sentido. Há uma convergência natural de interesses e uma complementariedade entre Brasil e a Turquia.