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Em SP, enquanto alguns refugiados aprendem português, outros ensinam árabe

Marcela Sevilla e Talita Marchao

Do UOL, em São Paulo

29/09/2015 06h00

Depois da aula noturna de português, um grupo de 14 refugiados segue para o bar em Guarulhos, na Grande São Paulo. A saída é parte de uma das atividades extras do curso, e os alunos vão experimentar pela primeira vez uma combinação clássica: pastel e caldo de cana; de sobremesa, brigadeiro. As professoras se desdobram para explicar em português o que é o recheio de queijo, de frango com catupiry e até a carne seca. A dona do bar, que doou a refeição, se esforça para conversar com eles, que entendem pouco do que ela diz. No fim, todo mundo dá um jeito de se entender –em qualquer idioma e até com mímica– e o pastel é aprovado por ampla maioria. O brigadeiro não arranca elogios, mas ninguém fala mal.

Essa é a forma que o Memoref (Memorial Digital do Refugiado), projeto de alunos de letras da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), encontrou para integrar os estrangeiros não só na língua portuguesa, mas também na cultura brasileira.  

"A barreira linguística é a principal que eles enfrentam no Brasil", afirma Marina Reinoldes, 20, aluna do quarto ano e idealizadora do projeto. "Sem o português, eles não conseguem se estabelecer aqui, arranjar emprego. A nossa ideia é que eles não precisem de ajuda para coisas básicas, como ir ao mercado, ao médico, usar o transporte público. E queremos até que eles validem seus diplomas para exercer suas profissões no país", diz.

Marina, que também dá aula de português na Mesquita do Pari, região central da capital paulista, teve a ideia de trazer os refugiados para o ambiente acadêmico com o amparo da universidade. Com outros alunos de letras, colocou em prática o Memoref, que começou suas atividades no segundo semestre de 2015. Os alunos, indicados pela Cáritas, organização católica que ajuda os refugiados em São Paulo, são da Síria, da Palestina, da Jordânia, da Nigéria e de Serra Leoa. Eles são ajudados por estudantes de inglês, francês e espanhol. Mas a grande barreira é o árabe.

"Quem só fala árabe tem mais dificuldade, então eles acabam se ajudando entre si. Um aluno que entende a lição explica o que estamos dizendo", afirma Marina.

Na aula, são apresentadas músicas dos países dos alunos e canções brasileiras. Entre um vídeo e outro, uma propaganda com o cantor Zeca Pagodinho causou alvoroço –sinal de que eles já estão se identificando com elementos da cultura brasileira. Monitores ficam entre os alunos para tirar dúvidas, enquanto duas professoras explicam a atividade na lousa com a fala mais lenta e muita mímica. A ideia é que os alunos tenham atividades extras com saraus, capoeira e até a com a bateria da universidade.

Para ajudá-los a exercitar o português, foi criado um grupo no WhatsApp em que monitores e professores participam.

"A gente os acompanha diariamente, relata o que vai vivendo e os incentiva a contar também. Se fui passar o final de semana na praia e fiz um churrasco, tiro foto e explico o que é. Eles começaram a falar um pouco de suas rotinas, fotografam suas comidas, contam como era a vida em seus países", diz Marina. "De vez em quando a gente percebe que usaram o tradutor automático do Google, mas esse é um meio de eles relacionarem o que escreveram no próprio idioma ao português. E isso é válido como aprendizado".

Na Mesquita do Pari, Marina dá aula para sírios e palestinos. "Lá a gente tem alguns cuidados maiores do que na universidade, principalmente porque estamos dentro de um prédio religioso. Não usamos roupa curta, a aula é interrompida para o momento de oração. Quando trouxemos alunos para a universidade, demos uma perspectiva diferente para eles. Amanhã eles podem estudar em algum curso universitário aqui", diz.

Quando o refugiado assume o papel de professor

 

Os estrangeiros que buscam refúgio no Brasil, em sua maioria, buscam aprender o português para trabalhar. Muitos têm formação profissional, mas, sem o português, trabalham em empregos que demandam baixa qualificação, e acabam tendo uma remuneração menor. Isso quando há emprego –grande parte simplesmente não consegue trabalhar. Foi pensando nisso que a ONG paulistana Abraço Cultural decidiu capacitar refugiados para dar aula de idiomas.

A ideia é que todos saiam ganhando: o estrangeiro consegue uma fonte de renda e, em alguns casos, até uma nova profissão; o aluno tem aula com alguém que vivenciou a cultura, o idioma, o sotaque e está há pouco tempo no Brasil. "O principal objetivo é não só trabalhar a questão da renda, mas também a valorização do refugiado enquanto pessoa, em termos de capacitação profissional, valorizando a cultura do país de origem deles", diz Luiz Henrique Reggi Pecora, 26, da ONG.

O Abraço Cultural tem uma equipe pedagógica que prepara os professores, mostra como é o ritmo na sala de aula e faz todo o treinamento antes que eles assumam suas turmas de alunos. O material pedagógico é idealizado pelo próprio projeto, e os refugiados podem contribuir, principalmente com a parte cultural. O valor pago pelo aluno é repassado para os refugiados e cobre os custos administrativos.

"A gente quer inverter a posição dos refugiados de que são pessoas que sempre são assistidas. É claro que, na parte da reintegração, existe um processo em que eles vão aprender o português e isso demanda ajuda, mas a gente quer inverter essa posição e colocá-los como alguém que pode ensinar algo para a gente. Trocar um pouco dessa mentalidade de que eles são pessoas que vão estar sempre dependendo e sendo tutelados pelos brasileiros. São pessoas capazes de conseguir reconstruir sua vida por seu próprio esforço", afirma Luiz Henrique.

Ali Jeratli - Eduardo Anizelli/Folhapress - Eduardo Anizelli/Folhapress
Ali Jeratli, professor de árabe e português
Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress

Em uma das aulas culturais, fora da sala de aula, os professores sírios apresentaram a dança, a comida e contaram suas histórias de vida para os alunos e convidados em uma festa com um clima informal. E um dos que colocou a turma para dançar e mostrou alguns passos em uma roda foi o sírio Ali Jeratli, 27, que dá aulas de árabe. Ele está no Brasil há um ano e meio, fala português, é apaixonado por futebol e já tem até time do coração: o Corinthians.

Ali é especializado em hotelaria, e trabalhou em grandes hotéis pelo mundo dando treinamento para novos funcionários. Fala seis línguas (árabe, português, inglês, turco, curdo e um pouco de francês). Quando chegou no Brasil, depois de uma piada de um estranho sobre suas roupas de calor em um dia muito frio, acabou conseguindo um emprego para trabalhar para a Fifa durante a Copa como intérprete por 40 dias. "Realizei dois sonhos: vir para o Brasil e ver uma Copa do Mundo", diz Ali.

Desempregado após a aventura na Copa, tentou emprego no setor turístico, mas não conseguiu. Ali, então, começou a dar aulas particulares de inglês e árabe, até que conseguiu a oportunidade de lecionar no Abraço Cultural.

"Quando eu coloco um vídeo, os alunos falam 'não acredito nisso, foi há oito mil anos'. Tem muita coisa da Síria que pode ser passada para o mundo sobre a nossa cultura. Muita gente não sabe que foi lá que surgiu a primeira cidade do mundo, que as letras foram criadas lá, a primeira nota musical", conta Ali sobre as aulas de árabe. Hoje, ele tem seis alunos na ONG e três particulares.

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Aula da ONG Abraço Cultural
Imagem: Marcela Farrás/UOL
E se o português é difícil para os refugiados, Ali aposta que o brasileiro aprende o árabe muito fácil. "Com poucas aulas, meus alunos já sabem escrever qualquer palavra", conta o professor com orgulho da turma. Mas ele admite que o fato de falar português em sala ajuda na aprendizagem. "Tem professores estrangeiros que explicam em inglês e, se você não fala português, é difícil para explicar se alguém na turma não falar inglês."

Ali aprendeu português em mesquitas e ONGs, mas até hoje anota as palavras estranhas que escuta para pesquisar o significado. "Além disso, como conheço inglês e francês, vi que algumas palavras eram parecidas com o português e tentei ver coisas em comum. Tem palavras que terminam com 'são' e 'tion', como informação e information. E até hoje anoto o que escuto na rua"

Hoje, o professor que ganha a vida dando aulas de árabe e inglês também ensina português como voluntário em uma das ONGs em que teve aulas, ajudando outros refugiados que acabam de chegar ao país. "Quem não fala inglês, acha o português muito difícil. Crianças e adolescentes aprendem mais rápido, e estão falando português em uns quatro meses", diz Ali. "É difícil porque é muito diferente. Tem palavras parecidas com o árabe, mas os adultos têm muita dificuldade". Ali hoje tem uma turma de 25 alunos sírios e palestinos.

A professora síria Nour Mass, 31, não fala quase nada de português, mas já tem sua turma de inglês e está trabalhando em São Paulo. Vinda há quatro meses, Nour diz ter sido a primeira mulher a pedir refúgio na embaixada brasileira da Jordânia para vir ao país sozinha.

"Ficaram surpresos com o meu pedido, e disseram que era o primeiro do tipo que recebiam. Chegaram a perguntar se eu tinha certeza do que estava fazendo, já que o Brasil é um país muito diferente da Síria. Respondi que conseguiria viver sozinha, que sou uma mulher forte e independente, e aqui estou", diz Nour, sem véu ou vestimentas longas.

Especializada em recursos humanos, Nour já considera lecionar como uma profissão a longo prazo. "Comecei a amar dar aulas e a achar que pode ser a minha carreira. Mas como tenho tanta experiência, deveria considerar buscar algo na minha área. Mas sem falar português é muito difícil", afirma a professora, que já consegue ler alguma coisa ou outra em português, com a ajuda da internet.

Uma nova alfabetização

Influenciada pela dança, a tradutora Débora Oliveira, 27, viu na aula de árabe com o sírio Ali uma oportunidade de aprender a língua e entender o que as canções diziam.

"Estudar um idioma com foco em cultura, ainda mais com pessoas que vêm de lá é muito mais enriquecedor", diz a aluna. "É bacana saber que você não está só aprendendo, mas também ajudando alguém a se integrar com um país que é totalmente diferente, alguém que vem de situação de guerra".

Apesar de falar inglês e espanhol, Débora se surpreendeu bastante com o árabe. "Brinco dizendo que sou como o meu sobrinho de três anos que está sendo alfabetizado, aprendendo cada letrinha. As letras são desenhos, a leitura é feita da direita para a esquerda. Tem sido muito desafiador".

Mauricio Mascarenhas, também aluno de árabe de Ali, também sente dificuldade com o alfabeto, mas optou pelo curso justamente pelo fato de ser dado por um refugiado.

"Vi a oportunidade de aprender uma língua nova, em um curso com uma proposta social importante: ter aula com alguém que está se inserindo na sociedade brasileira, e a gente pode fazer essa troca de culturas. São pessoas que estão vindo aqui e tem muito a agregar."