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Em SP, refugiado corta cabelo e barba enquanto sonha com chegada da família

6.out.2016 - Além de organizar a campanha para trazer a família de Adnan Alkaled de volta, Diogo Guedes (esq.) e seu grupo ajudam o sírio a preencher a documentação no Brasil - Marcela Sevilla/UOL - Marcela Sevilla/UOL
Além de organizar a campanha para trazer a família de Adnan Alkaled de volta, Diogo Guedes (esq.) e seu grupo ajudam o sírio a preencher a documentação no Brasil
Imagem: Marcela Sevilla/UOL

Marcelo Freire e Marcela Sevilla

Do UOL, em São Paulo

17/10/2016 06h00

Há cinco meses, a rotina profissional do cabeleireiro sírio Adnan Alkaled, 45, gira em torno do desafio de entender e executar perfeitamente o pedido de seus clientes no salão onde trabalha, na zona sul de São Paulo. Com um ano e dois meses de vivência no Brasil, o português ainda é uma dificuldade grande para o sírio, mas, segundo seus colegas, o corte de cabelo geralmente sai como o cliente pediu.

Esse obstáculo, no entanto, não se compara com o objetivo no qual Alkaled concentra todas suas forças atualmente: reunir sua família, que está no Egito. "Quando estou no salão, penso o tempo inteiro: 'o que meus filhos estão fazendo agora?'", diz.

A família do refugiado deixou a guerra da Síria em 2012, mas só Alkaled conseguiu vir ao Brasil, no ano passado. Ele escolheu o país depois de desistir de atravessar para a Europa pelo Mediterrâneo, de barco. "Consegui o visto [humanitário] na embaixada brasileira e vim para cá", conta ele, que aguarda o reconhecimento do status de refugiado e seu RNE (Registro Nacional de Estrangeiro), para poder usar normalmente os serviços públicos no Brasil.

Adnan Alkaled, 45, refugiado sírio que trabalha como cabelereiro em um salão na zona sul de São Paulo - Marcela Sevilla/UOL - Marcela Sevilla/UOL
Adnan Alkaled, refugiado sírio que trabalha como cabelereiro em um salão de São Paulo
Imagem: Marcela Sevilla/UOL

Agora, em meio aos cortes de cabelo e barba no salão Planalto Cabeleireiros e Estética, ele também preenche requerimentos para agilizar a chegada dos familiares, que não conseguiram vir no primeiro momento.

Eu estou no Brasil, eles estão no Egito, isso não é certo. Gosto da família toda junta"

Alkaled se emociona ao observar as fotos da mulher Basema e dos filhos Mohammad, 19, Dyana, 17, Sidra, 14, e Aisar, 10.  "O Egito não é bom. Lá, acham que todo sírio é criminoso, e isso não é verdade."

O filho mais velho, que também é cabeleireiro, tem emprego garantido no salão onde o sírio trabalha. "Já reservei uma cadeira para o filho dele. Aos poucos, eles vão estar encaixadinhos, vivendo felizes e seguros", diz Gervásio Domiciano, 73, dono do salão.

Gervásio Domiciano, 73, já teve outros sírios trabalhando em seu salão de cabeleireiros na zona sul de São Paulo - Marcela Sevilla/UOL - Marcela Sevilla/UOL
Gervásio Domiciano, 73, já teve outros sírios trabalhando em seu salão: "são muito bons"
Imagem: Marcela Sevilla/UOL

Antes de chegar ao salão da zona sul, onde vive em uma casa alugada próxima à estação de metrô São Judas, Alkaled morou no Brás. Lá, disputou vagas em salões com outros cabeleireiros refugiados, até chegar aos ouvidos de Gervásio, que o contratou.

"Tivemos outros sírios trabalhando aqui, e um conhecido nosso conheceu o Adnan lá no Brás. Ele ganhava pouco, e trouxemos ele para cá. Acho que o trabalho dos árabes é muito bom, responsável e tecnicamente perfeito", diz Gervásio.

"Para mim, é um prazer imenso ajudar as pessoas. Esse pessoal da Síria está numa situação muito difícil, a gente tenta ajudar da melhor maneira. É uma vida muito sofrida. Vê-los fluir, num ambiente seguro e feliz, é uma alegria", resume o dono do salão.

"Amigo ajuda"

As frases de Alkaled soam travadas e às vezes são interrompidas por ele, que busca na mente as palavras, em inglês e português, que possam ajudá-lo a expressar o que sente. No geral, sua mensagem é compreendida. E se resume a quatro palavras, normalmente pronunciadas no mesmo contexto: "amigo", "ajuda", "Brasil" e "família".

Foi numa conversa há alguns meses com um de seus clientes, chamado Ricardo Funcasta, que a luta de Alkaled para trazer a família começou a ficar menos complicada. "O amigo Ricardo chegou ao salão, me perguntou de onde eu era, e onde estava minha família. 'Você gostaria que sua família viesse para cá?', e eu disse que sim", lembra o sírio.

Dias depois, Funcasta, que é advogado, começou uma campanha com amigos para auxiliar Alkaled a preencher toda a documentação da família e arrecadar fundos para pagar as passagens. A vaquinha online e as doações em dinheiro já levantaram pouco mais de R$ 14.500, da meta de R$ 18 mil.

"Pensamos 'por que não ajudar essa família?'. Vimos que era possível mobilizar pessoas e reunir essa família de novo, comprando as passagens, preenchendo a solicitação do visto, que é difícil para eles entenderem", diz Diogo Guedes, 34, analista de segurança da informação e um dos organizadores da campanha. "No Brasil, às vezes se pensa que a guerra é algo distante. Quando chega próximo de nós, por que não ajudar? O Brasil é bastante solidário, aceita diferentes povos e culturas", diz Guedes.

Enquanto resolve a situação da família, Alkaled corta cabelo, barba e domina a técnica de depilação egípcia, com linha, para impressionar os clientes. Mas seu foco continua o mesmo, inclusive com um aviso da campanha em frente à sua cadeira no salão. E quando chega a sua casa, à noite, tem dificuldades em dormir. "Só confiro o celular e falo com a minha família, vejo o que eles mandam. Tenho muita saudade."