Como armas com defeito se tornaram o único produto sem recall nos EUA
Thomas Brown sai pela porta dos fundos e para depois de alguns passos, elevando um braço com dificuldade e apontando para o lugar onde encontrou seu filho sangrando e caído junto à parede da casa, às 7:15 da manhã do último dia de 2016.
Brown, conhecido por todos pelo apelido Bud, conta que estava sentado na sala quando ouviu o disparo. Seu filho Jarred, 28 anos, tinha acabado de pegar emprestada a Taurus PT-145 Millennium dele e saído com o melhor amigo, Tyler Haney, com a intenção de praticar tiros nas redondezas, na cidade de Griffin, no Estado da Geórgia, nos EUA.
Bud achou que Jarred havia disparado contra algum alvo qualquer por diversão, como fazia de vez em quando. "Eu estava pensando que deveria sair e avisá-lo para tomar cuidado", contou Bud com a voz trêmula.
No entanto, o que o pai de 54 anos tinha ouvido era o disparo da pistola sem que ninguém tivesse apertado o gatilho. A artéria femoral de Jarred foi perfurada por uma bala calibre 45. Jarred berrava "Minha perna, minha perna!" Haney, 26 anos, chegou em pânico na residência, implorando ajuda. Quando Bud saiu, a pistola ainda estava no coldre na cintura de Jarred.
Bud não lembra bem o que aconteceu em seguida. Sua mulher, Sonie, recorda que saiu na rua de camisola. Ela havia criado intimidade com o enteado desde que ele veio morar com o casal um ano antes. Eles conversavam, ela cozinhava para ele e o levava ao estábulo para alimentar os dois cavalos dela. Naquele momento, porém, Jarred estava no chão, com o pai ajoelhado ao lado dele, pressionando o ferimento.
Sonie usou o cinto de Jarred como torniquete ao redor da perna. Era difícil ter uma ideia do tamanho da hemorragia porque Jarred vestia calças impermeáveis, próprias para caçadores. Sonie tentava salvar Jarred, alternando entre compressões no peito e respiração boca a boca, usando o que aprendeu trabalhando como supervisora de condenados em liberdade condicional.
Haney caminhava atordoado de um lado para outro até que Sonie pediu que ele chamasse a ambulância. "Jarred tentava dizer algo, mas as palavras não saiam e ele ficou com o olhar perdido", conta Sonie. Quando os paramédicos chegaram, ela sabia que o enteado estava morto. "Eu não quis dizer nada porque Bud estava destroçado, mas eu sabia", ela disse. "Ainda posso sentir o gosto de cigarro da boca dele."
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Nos dias seguintes à morte do filho, Brown não conseguia entender como aquela pistola Taurus disparou. Ele fez carreira em segurança pública, primeiro como vice-delegado do Condado de Spalding, depois como policial em uma cidade vizinha chamada Jackson e, por fim, na força-tarefa da agência de combate às drogas em Macon. Ele se aposentou há 10 anos, quando precisou de uma cirurgia para remover um tumor cancerígeno do esôfago que tinha o tamanho de uma bola de tênis.
Durante anos, Brown atuou como instrutor de tiro da polícia. Ele começou a ensinar Jarred com um rifle calibre 22 quando o menino tinha 7 anos e eles conversavam sobre segurança quando caçavam juntos ou praticavam tiro ao alvo.
Sonie também conhece armas. Ela tem porte para um revólver calibre 38, que levava na bolsa para trabalhar com condenados. Sonie e Bud têm 12 armas de fogo na pequena casa de tijolos onde moram. São sete rifles e cinco pistolas. Bud é sócio da Associação Nacional de Armas (National Rifle Association ou NRA). O casal Brown não se convenceu que Jarred disparou acidentalmente a pistola. "Jarred sabia lidar com armas e segurança melhor do que eu", afirma Bud. "Ele nunca teria feito nada que causasse aquele disparo."
Geralmente, armas fabricadas pela Taurus custam bem menos do que modelos vendidos por companhias mais famosas. Os materiais e recursos são comparáveis e a diferença de preços reflete os custos de fabricação e o valor das marcas. O revólver Taurus 85 é o mais vendido nos EUA, segundo o website Gun Genius.
Haney tinha a mesma desconfiança de Bud. Ele viu quando Jarred saiu da casa com a Taurus no coldre e jura que seu melhor amigo não tocou na pistola quando ocorreu o disparo. "Eu sabia que havia algo errado com aquela arma", disse Haney. "Por isso, consultei no Google." Ele encontrou um anúncio curioso no website da Taurus: a empresa se oferecia para consertar ou recomprar nove tipos de pistolas. A que matou Jarred estava na lista.
Haney continuou as investigações na internet. Ele descobriu que a oferta da Taurus de consertar ou comprar os produtos era resultado de um acordo feito em 2016 para encerrar um processo judicial coletivo movido por Chris Carter, vice-delegado do Condado de Scott, no Estado de Iowa, contra a brasileira Forjas Taurus SA e duas subsidiárias localizadas na Flórida.
Segundo o processo, Carter estava perseguindo um suspeito de tráfico de drogas, em julho de 2013, quando a pistola dele caiu para fora do coldre, bateu no chão e disparou, atingindo um carro. O processo alega que, devido a defeitos de design e fabricação, nove modelos de pistolas Taurus podem disparar de modo não intencional quando caem ou são empurradas ou quando se aperta o gatilho mesmo com a trava de segurança ativada.
A Taurus concordou em consertar ou recomprar, por até US$ 200, qualquer um desses modelos adquiridos por pessoas nos EUA e seus territórios. Segundo o acordo para encerrar o processo, a oferta se aplica a 955.796 armas. O prazo do programa terminou em 6 de fevereiro. A companhia negou negligência ou ato impróprio ou que exista defeito em suas armas, além de negar que a oferta para consertar as armas configure um recall.
Haney foi até a casa do pai e da madrasta de Jarred para mostrar a eles o que descobriu. Sonie anotou os dados de contato de Todd Wheeles, policial que virou advogado em Birmingham, Alabama, e foi responsável por 16 processos contra a Taurus, incluindo o processo coletivo em Iowa.
Dois dias depois, Wheeles e outro advogado de Birmingham, David Selby, estavam sentados na mesa da cozinha do casal Brown. Wheeles mostrou a eles como a arma Taurus que matou Jarred pode disparar mesmo com a trava de segurança engatada. "Em 10 segundos, ele mostrou para nós três maneiras como a arma pode disparar sozinha", disse Sonie.
Bud não podia acreditar no que via. Ele nunca tinha ouvido falar de qualquer problema com as armas Taurus. Ele nunca viu nenhum aviso na loja de penhores onde pagou US$ 250 pela arma que matou Jarred, nem na loja Walmart onde comprava munição. Naquele mesmo encontro, o casal contratou Wheeles e Selby para processar a Taurus por negligência e defeitos de fabricação. "Eu não podia acreditar que ninguém nos avisou que aquelas armas eram ruins", disse Bud. "Por que a Taurus não nos alertou? Por que o governo permitiu que vendessem essas armas?"
A resposta é simples: nenhuma entidade governamental tem poder para policiar armas de fogo ou munição com defeitos nos EUA, nem poder para obrigar fabricantes de armas a alertar consumidores. A Comissão de Segurança de Produtos de Consumo pode determinar recall e conserto de milhares de objetos -- de torradeiras e ursinhos de pelúcia. Se for preciso reparar um defeito em um automóvel, a ordem fica a cargo do Departamento de Transporte.
A FDA faz o mesmo com alimentos, medicamentos e cosméticos. Somente uma classe de produtos está fora do alcance do governo americano quando se trata de defeitos e segurança: armas de fogo. Nem mesmo a agência que regula álcool, tabaco, armas de fogo e explosivos pode retirar armas defeituosas do mercado. Se um fabricante de armas decidir ignorar uma questão de segurança, não há nada que o impeça.
Para entender como fabricantes de armas de fogo escaparam da supervisão governamental quando se trata da segurança de pistolas, revólveres e rifles, é preciso rever o que aconteceu em 1972, quando o Congresso dos EUA criou a Comissão de Segurança de Produtos de Consumo. Quatro anos antes, o então presidente Lyndon B. Johnson assinou a Lei Abrangente de Ruas Seguras e Controle do Crime, que regulamentava diversos aspectos da venda de armas de fogo. Defensores do controle de armas achavam que a nova comissão poderia supervisionar armas defeituosas.
A ideia foi barrada pelo deputado John Dingell, de Michigan, filiado ao Partido Democrata e caçador com nota máxima em aderência aos princípios da NRA. Em 1975, o deputado repetiu a manobra quando um colega apresentou uma nova proposta para dar à comissão autoridade sobre armas. "Colocamos ali uma proibição expressa para impedir que enfiassem o nariz na regulamentação de armas de fogo e munição", disse Dingell durante um debate no Congresso. A proposta sofreu uma derrota esmagadora por 339 votos contra 80 e o assunto nunca mais foi seriamente considerado.
Para Bud Brown, nada disso explica porque ele nunca soube que a Taurus vendia armas defeituosas. O governo não fazer nada é uma coisa, mas ele lê todas as edições da American Rifleman, a revista oficial da NRA, e nunca viu um alerta sobre armas Taurus. "Por que a NRA não nos alertou? Acho que há muito dinheiro e muita política na NRA, então eles não tinham motivo para nos avisar", ele concluiu.
A NRA elenca a segurança das armas entre suas preocupações. Nos últimos anos, a American Rifleman cobriu voluntariamente recalls por segurança promovidos pelas empresas Colt's Manufacturing, FN America e SIG Sauer.
No entanto, uma busca no website da revista não produziu nenhum artigo sobre o acordo feito pela Taurus para encerrar aquele processo judicial coletivo nem sobre qualquer outro processo. Outra publicação da NRA, chamada Shooting Illustrated, fez uma reportagem de três parágrafos sobre o acordo coletivo.
Taurus e NRA têm uma relação mutuamente vantajosa há anos, graças em grande parte a Robert Morrison, que foi presidente da Taurus International Manufacturing, em Miami Lakes, até 2011. Morrison é amigo íntimo de Wayne LaPierre, vice-presidente executivo da NRA. A Taurus recebeu pelo menos oito prêmios da NRA e foi mencionada em dezenas de reportagens da American Rifleman.
Morrison começou como vendedor independente da Taurus em 1994 e progrediu até chegar à liderança das operações da companhia nos EUA, em 2004. Ele usou a NRA para vender armas, introduzindo um programa, ainda em vigor, sob o qual quem compra uma arma Taurus fica sócio da NRA por um ano sem custo. A estratégia aparentemente funcionou. Em 2016, a American Rifleman escreveu sobre uma loja de penhores no Alabama que, durante um mês, vendeu 1.000 armas Taurus que vinham com a promoção. A anuidade padrão da NRA atualmente é US$ 40.
Muitos modelos Taurus são os mais baratos do mercado. A rede de lojas de armas Bass ProShops, uma das maiores dos EUA, oferece nove modelos Taurus por menos de US$ 400, incluindo o revólver Heritage Rough Rider, que custa US$ 179,99. A título de comparação, o produto mais barato da Glock -- que atua em outro segmento do mercado -- custa US$ 469,99.
A faixa de menor preço tem muita demanda. No ano passado, seis armas Taurus ficaram entre as 10 mais vendidas em suas categorias, segundo o website Gun Genius, que pertence à GunBroker.com, a maior plataforma online de leilões de armas de fogo dos EUA. Um dos campeões é o Taurus Model 85, o revólver mais vendido do país, que chega a custar US$ 219 no GunBroker.com.
A NRA não retornou diversas solicitações de comentário para esta reportagem. A reportagem telefonou para a residência de Morrison na Flórida e não obteve retorno.
Quando Wheeles e Selby movem processos contra a Taurus, a linguagem que usam parece explicitamente elaborada para afastar suspeitas de que os processos configuram ataque ao direito dos cidadãos americanos de portar armas. O processo em torno da morte de Jarred Brown, movido em maio na 11ª Vara Distrital de Miami, afirma que o pai dele "não deseja nem pretende desrespeitar o direito dele ou de ninguém de portar armas, dado pela Segunda Emenda" à Constituição americana. Em vez disso, o objetivo do processo é fazer com que a Taurus se responsabilize "por importar, promover e distribuir uma pistola defeituosa e perigosa além do razoável".
Esta linguagem é crítica, segundo Wheeles. "Como caçador convicto e proprietário de armas, não quero que alguém veja o caso e diga que nossa intenção é só retirar as armas das pessoas", ele explicou. "Nós queremos dizer que essas armas são defeituosas e que eles não deveriam ter permissão para vender armas de fogo defeituosas nos EUA. É este o objetivo."
A Taurus entrou com uma ação pedindo para o processo ser descartado. Em comunicado por escrito enviado à Bloomberg, a companhia afirmou que nenhuma de suas armas tem defeito.
Em uma manhã de novembro, Wheeles coloca uma pistola Taurus na mesa de reuniões do escritório dele em Birmingham. Ele verifica que está descarregada e funcionando adequadamente e depois verifica que a trava de segurança está engatada. "A trava está ativada, portanto não deveria disparar", ele disse, passando a arma ao repórter da Bloomberg. "Agora, puxe o gatilho." Com um clique, a pistola sem balas dispara. "Isso não deveria acontecer", afirma Wheeles, guardando a arma cuidadosamente.
O processo em torno da morte de Brown -- assim como o processo coletivo que a Taurus aceitou terminar com um acordo, além de vários outros processos movidos contra a companhia -- alega que existem falhas nos sistemas criados para impedir disparos acidentais. Esses sistemas incluem o impedimento do movimento para trás do gatilho, uma alavanca manual (para bloquear o mecanismo de disparo quando ativada) e um bloqueio de disparo (que impede o início do disparo a menos que o gatilho seja totalmente puxado para trás).
Executivos da Taurus não dão trégua em seus embates com Wheeles. O primeiro processo que ele moveu contra a companhia foi em janeiro de 2007, motivado pelo que aconteceu quando Adam Maroney tentava colocar uma casinha de cachorro na caçamba de sua picape Ford F-150 em Boaz, Alabama, em fevereiro de 2005. Ele levava uma pistola Taurus PT-111 em um coldre removível, com a trava de segurança ativada.
O objeto escorregou do bolso de trás da calça dele e caiu no chão de concreto da garagem. A bala de 9 milímetros perfurou seu pâncreas, baço, diafragma e pulmão. Os policiais encontraram a pistola com o mecanismo de segurança ainda engatado. A Taurus decidiu não entrar em acordo no processo que a acusava de negligência e falha por não alertar clientes para defeitos na pistola, preferindo apresentar seus argumentos no tribunal.
Morrison agiu provocativamente durante seu depoimento. Quando lhe perguntaram se a Taurus Holdings (holding para todas as operações da Taurus nos EUA) era afiliada à Forjas Taurus no Brasil, ele respondeu que não sabia. Quando Wheeles perguntou quem era dono da Taurus Holdings (a controladora de seu empregador há mais de uma década), Morrison também disse que não sabia. Quando lhe perguntaram se a Taurus testa as armas que importa e distribui nos EUA, Morrison disse que achava que não, a não ser no caso de um teste recente exigido na Califórnia.
Durante um momento especialmente tenso do questionamento, Wheeles ficou frustrado e deu uma risada irônica. "Não estou tentando insultá-lo", disse Wheeles na ocasião. "As respostas que você está me dando são cômicas porque você está sendo tão evasivo."
Morrison por fim admitiu que havia uma questão perigosa com as pistolas: "Minha resposta à pergunta -- se você estiver se referindo a todas as PT-111 -- é: eu acredito que podem disparar se caírem", ele disse. Em agosto de 2009, um júri determinou que Maroney recebesse uma indenização de US$ 1,25 milhão, mais reembolso das despesas médicas.
A Taurus não entrou com recurso contra o veredito.
A Forjas Taurus se recusou a dar entrevistas para esta reportagem. No comunicado enviado à Bloomberg, a companhia afirmou que não há base para acusações de que suas armas são defeituosas. "O acordo celebrado no Carter Case esclarece inclusive que não foram comprovados supostos defeitos", segundo o documento. "Os compromissos assumidos pela Taurus nesse acordo têm o objetivo de garantir a tranquilidade dos seus clientes."
Segundo a companhia, o número de armas enviadas para conserto ou devolução em dinheiro é muito menor do que o número de armas cobertas pelo acordo. A Taurus Holdings também se recusou a comentar.
Para compreender até onde vão as questões de segurança da Taurus, a reportagem conversou com Lívia Nascimento Tinôco, procuradora do Ministério Público Federal em Aracaju, Sergipe. Ela contou que a Taurus tem um longo histórico de vender armas que explodem e disparam acidentalmente, deixando um rastro de mortes, ferimentos e traumas. Quase todas as vítimas no Brasil são agentes de segurança pública, que são obrigados a levar consigo armas feitas pela Taurus.
A procuradora sabia pouco sobre a Taurus até julho de 2016, quando o comandante de uma unidade de operações especiais da Polícia Civil do Estado de Sergipe, Cristian Sobral, foi ao gabinete dela conversar sobre as armas Taurus que seus subordinados eram forçados a usar. Algumas travavam, em outras o dispositivo de segurança não funcionava, e outras simplesmente disparavam sozinhas. Ele colocou diante dela diversos relatos de acidentes e vídeos que mostravam pistolas Taurus caindo da altura da cintura e disparando quando batiam no chão. "Não dava para acreditar", lembra Lívia Tinôco.
Em 15 de julho de 2016, ela abriu uma investigação formal e logo seus investigadores descobriram relatos de defeitos disseminados em armas usadas pelas forças policiais em todo o Brasil -- tanto revólveres quanto armas longas como a submetralhadora SMT-40. Um relatório de 2014 do Departamento de Segurança Pública do Ministério da Justiça apurou taxas elevadas de defeitos em armas Taurus adquiridas pelas forças policiais de 19 Estados brasileiros. Um teste feito em 2010 com 350 pistolas Taurus PT-840 usadas por policiais concluiu que mais de 100 tinham defeito.
Em agosto, a Câmara de Deputados realizou audiências sobre os supostos defeitos das armas Taurus. Policiais contaram como foram feridos quando suas armas dispararam acidentalmente ou como atingiram pessoas que estavam perto e foram mortas ou feridas. Durante o depoimento, um advogado da Taurus revelou que a empresa enfrentava 35 processos no Brasil envolvendo disparos involuntários.
O Exército Brasileiro é o regulador de armas de fogo no País e exige que as forças de segurança comprem armas fabricadas no Brasil. Em 2008, a Taurus comprou sua maior concorrente no mercado doméstico, a Rossi, e agora controla efetivamente 90 por cento da fabricação de armas em território nacional, segundo a procuradora. O monopólio permite à Taurus cobrar preços exorbitantes, segundo a investigação dela. A pistola PT-840, uma das mais usadas por policiais no Brasil, custa aos cofres públicos cerca de US$ 1.500 no país de origem da Taurus, ou cinco vezes o que custa nos EUA.
Em julho de 2017, Lívia Tinôco entrou com uma ação civil pública de 174 páginas na Justiça Federal em Aracaju, solicitando que a Taurus fosse obrigada a interromper a fabricação de 10 modelos de pistolas e submetralhadoras e a fazer o recall de todas as unidades em circulação no Brasil, alegando que tinham defeito. O juiz encarregado determinou que a Taurus apresentasse um plano para realizar o recall dos 10 modelos dentro de 90 dias, mas não chegou a proibir a produção.
A Taurus entrou com recurso em outro tribunal, argumentando que a procuradoria não provou que as armas eram defeituosas e conseguiu uma liminar que bloqueou o recall. Lívia Tinôco entrou com recurso contra o veredito de novembro, mas a solução do caso pode levar anos, segundo ela.
Há alguns anos, policiais brasileiros montaram o grupo Vítimas da Taurus. Em março de 2015, eles formaram um grupo no WhatsApp. Quando um repórter da Bloomberg foi convidado a entrar, em meados de novembro, os participantes relataram uma série de histórias dramáticas: "Disparo acidental", escreveu o primeiro policial; "Matou o carona de uma moto"; "Tive um acidente com minha CTT .40"; "A minha disparou sozinha, no coldre e com a segurança ativada"; "Atirou na minha perna quando bati continência"; "Atirou no meu dedo indicador ... ferimento sério com dano permanente".
Em 2013, a Taurus parou de vender nos EUA nove modelos supostamente defeituosos: PT-111 Millennium, PT-132 Millennium, PT-138 Millennium, PT-140 Millennium, PT-145 Millennium, PT-745 Millennium, PT-24/7, PT-609 e PT-640.
Porém, há acusações de um novo tipo de defeito em pelo menos um modelo popular de revólver que a Taurus ainda comercializa nos EUA. Desta vez, a arma não disparou sozinha, mas explodiu, segundo processo movido em setembro no Tribunal Distrital de Raleigh, na Carolina do Norte.
Em 9 de março de 2016, Michael Coleman, policial veterano do Condado de Durham, entrou em um local para prática de tiro em Raleigh. Ele levava o revólver Rossi .38 Special +P que comprou para a esposa, Joyce. O modelo não está entre os que a Taurus ofereceu consertar ou recomprar. Joyce planejava usar a arma em um curso de tiro, mas notou problemas logo de cara, quando a arma travou após dois disparos, de acordo com o processo. Coleman enviou a arma para a Taurus solicitando reparo. A Taurus informou Coleman que o problema havia sido resolvido e devolveu a arma. O revólver quebrou novamente quando Coleman fazia limpeza e um pino simplesmente caiu, segundo o processo.
Coleman pediu a troca, mas a Taurus decidiu consertar de novo. Coleman quis ver se funcionava mesmo. Ele carregou o revólver com projéteis especiais 100 Winchester .38, para os quais a arma é habilitada.
Coleman conhece armas. Ele foi policial por uma década e agora é responsável por uma equipe do Condado de Durham treinada para reagir a rebeliões na penitenciária local. Antes disso, ele serviu por 10 anos na Força Aérea dos EUA. No local de prática, ele deu alguns tiros, segurando a Rossi com as duas mãos. Quando segurou com uma mão só e disparou, a arma explodiu e se partiu em três pedaços, de acordo com o processo. O impacto foi tanto que dilacerou a ponta do dedo indicador da mão direita de Coleman e esmigalhou o osso, espalhando sangue e carne pelo local.
Coleman demorou três meses e meio para se recuperar a ponto de retornar ao trabalho em regime parcial e seis meses para voltar a trabalhar normalmente. Segundo o processo, os médicos afirmam que a dor e o formigamento que ele sente na mão nunca vão desaparecer. Coleman acusa a Taurus de violação da garantia expressa e de negligência. Por meio de advogados, Coleman se recusou a fazer comentários para esta reportagem. Nos documentos judiciais, a Taurus negou as acusações e afirma que Coleman manuseou errado a arma. Wheeles conta que diversas pessoas entraram em contato com ele recentemente contando sobre episódios de disparo involuntário de modelos da Taurus que estão no mercado.
Muito longe dali, um policial em Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo, ainda enfrenta uma história de horror com a Taurus. Em 2013, Rogério Mello, agente da Polícia Civil e líder de uma equipe da SWAT na cidade, deixou a Taurus PT-640 que usava para trabalhar dentro do coldre, sobre uma prateleira, enquanto usava o banheiro. Ele viu quando a arma escorregou da prateleira, escutou o disparo quando caiu no piso de azulejo, mas jura que não sentiu nada quando a bala entrou na barriga dele, perfurando o fígado e o pulmão direito e se alojando bem perto da coluna vertebral.
"Eu não podia acreditar que tinha levado um tiro. Não doía", ele lembra. Ele passou os anos seguintes entrando e saindo de hospitais e tribunais, já que seus superiores tentaram impedi-lo de receber indenização e benefício por invalidez. O laudo pericial de balística forense concluiu que a pistola talvez tivesse defeito, causando o disparo acidental. Mas o empregador de Mello, o governo estadual de São Paulo, o acusou de erro ao manusear a arma, o que ele nega. Quando se recuperou a ponto de voltar a trabalhar, ele foi transferido para uma cidadezinha próxima chamada Serrana, o que, na prática, foi um rebaixamento na carreira dele.
Mello diz que tolera isso e que o difícil é trabalhar todos os dias com outra pistola Taurus na cintura. Ele é obrigado a carregar a arma, por isso nunca deixa balas no tambor da Taurus -- o que é potencialmente perigoso, porque não pode ser usada prontamente em uma emergência. Ele também leva sua arma pessoal, uma Bersa Thunder 380, sempre pronta para disparar. "É uma fonte constante de estresse e medo, me preocupar como impedir que esta arma me machuque", ele disse. "Mas eu não tenho escolha. A Taurus sempre ganha."
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