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Crianças se tornam soldados dispostos a matar na guerra civil do Iêmen

Kahlan, uma ex-criança-soldado de 12 anos, demonstra como usar uma arma, em um campo para pessoas deslocadas, onde se refugiou com sua família, em Marib, no Iêmen - Nariman El-Mofty/AP
Kahlan, uma ex-criança-soldado de 12 anos, demonstra como usar uma arma, em um campo para pessoas deslocadas, onde se refugiou com sua família, em Marib, no Iêmen Imagem: Nariman El-Mofty/AP

Maggie Michael

Da AP, em Marib (Iêmen)

04/01/2019 04h00

Aos 13 anos, Mohammed era um combatente determinado dos rebeldes houthis. Doutrinado nos acampamentos dos guerrilheiros, ele foi combater em meio a balas e bombardeios aéreos. Ele diz que torturou e matou e que não se importava se iria viver ou morrer.

Ele se consolava pelo número da pulseira que os houthis deram a ele, seu "número de jihadista". Se ele morresse, sabia que o bracelete garantiria que seu corpo seria entregue à sua família.

"Quando eu for um mártir, eles colocarão meu número em um computador, obterão minha foto e meu nome, imprimirão e, sob meu nome, dirão: 'Mártir'", afirmou Mohammed.

O menino foi um dos 18 ex-combatentes menores de idade entrevistados pela Associated Press, que descreveram a forma os houthis recrutam crianças de até 10 anos de idade para lutar contra uma coalizão militar liderada pela Arábia Saudita e que conta com o apoio dos Estados Unidos.

Os houthis incorporaram 18 mil menores em suas fileiras desde o início da guerra em 2014, segundo reconheceu um oficial houthi à Associated Press. Ele falou sob a condição de não ser identificado por se tratar de um tema delicado.

Esse número é maior do que qualquer outro que foi divulgado até agora. As Nações Unidas verificaram 2.721 recrutamentos de crianças para combater em todos os envolvidos pelo conflito, a grande maioria para os houthis. Mas as autoridades dizem que esse número certamente é menor do que a realidade.

Uma quantidade indeterminada de jovens combatentes voltou para casa em caixões. Mais de 6.000 crianças morreram ou foram mutiladas na guerra, de acordo com um relatório das Nações Unidas publicado em outubro, mas não foi possível determinar quantas delas eram combatentes.

O brigadeiro-general Yahia Sarie, porta-voz militar dos houthis, nega que haja um recrutamento sistemático de menores de 18 anos e diz que a força deu a ordem de enviar para casa qualquer menor que queira se alistar em suas fileiras. Ele contou que há crianças tentando se juntar às fileiras rebeldes por causa das atrocidades cometidas pela coalizão, mas rejeitou as declarações feitas pelos menores à AP, algo que ele descreveu como sendo propaganda de coalizão.

A AP entrevistou as ex-crianças soldados em um acampamento para desabrigados e em um centro de reabilitação financiado pelos sauditas na cidade de Marib, que é controlada pela coalizão. Elas chegaram a Marib depois de escapar de suas unidades rebeldes ou serem capturadas pela coalizão.

Devido à idade delas e ao fato de algumas admitirem terem cometido ações brutais, a AP as identifica apenas pelos seus primeiros nomes. 

A guerra começou quando os houthis, um movimento insurgente xiita próximo ao Irã, tomaram o norte do país no final de 2014, incluindo a capital Saná, antes de se mudar para o sul. O governo internacionalmente reconhecido buscou a ajuda da Arábia Saudita, que montou uma coalizão apoiada pelos Estados Unidos, determinada a conter o que considera ser parte das ambições expansionistas do Irã. Assim, a guerra civil tornou-se uma "guerra por procuração", em que um acaba lutando as batalhas dos outros.

É possível ver soldados jovens encarregados de postos de controle, com fuzis AL-47 pendurados em seus ombros magros. Outros são vistos na frente de unidades de combate.

Alguns jovens disseram à AP que se juntaram às fileiras rebeldes por vontade própria, principalmente porque lhes foi prometido dinheiro, porque queriam portar armas ou porque garantiam o fornecimento de qat, uma planta estimulante. Outros dizem que foram removidos à força de suas escolas ou de suas casas, ou ordenados a se juntar às fileiras em troca da libertação de algum parente aprisionado.

Os recrutas são levados primeiro para "centros culturais", onde passam quase um mês fazendo cursos religiosos. Eles são informados de que estão entrando em uma guerra santa contra os países judeus, cristãos e árabes que sucumbiram às influências ocidentais.

Depois, eles são levados para campos de treinamento e em seguida para a guerra.

"Quando você sai do centro cultural, não quer mais voltar para casa", disse Mohammed. "Você quer ser um jihadista."

Mohammed se lembra do dia em que seus camaradas que lutavam na cidade de Taiz capturaram um combatente da coalizão e o levaram para um restaurante destruído por bombas.

O comandante deu a ordem: "Livre-se dele". Mohammed disse que pegou uma ferramenta de metal pesado, aqueceu-a nas chamas e golpeou a cabeça do inimigo capturado com ela.

"Ele é meu mestre", disse Mohammed, referindo-se ao seu comandante. "Se ele me disser para matar, eu mato. Eu morro por ele."

Um menino de 13 anos chamado Riyadh diz que metade dos combatentes que estavam com ele na frente de batalha era menor de idade. Ele contou que ele e seu irmão de 11 anos atiraram em dois inimigos que se recusaram a entregar suas armas. Na maioria das vezes, admitiu, ele fechou os olhos tomado pelo medo que sentia ao disparar sua arma.

O pior momento que ele viveu foi quando seu irmão desapareceu durante um combate.

Ele começou a virar os cadáveres ensanguentados em busca do irmão, quando ele e seus companheiros foram atacados. Eles atiraram de volta, até perceberem que aquele que atirou neles era o irmão de Riyadh, que no meio da luta havia se desconectado de sua unidade e pensado que eram inimigos.

Um menino de 12 anos chamado Kahlan disse que os combatentes houthis levaram ele e outros dez colegas de escola e lhes prometeram novas mochilas. Eles acabaram em um campo de treinamento, ainda em seus uniformes escolares.

Kahlan se lembra dos caminhões que vieram recolher os mortos após os ataques aéreos da coalizão.

"Os cadáveres davam medo", disse ele, gesticulando que estavam sem suas cabeças, membros ou tiveram seus intestinos arrancados.

O centro de reabilitação de Marib já atendeu quase 200 meninos desde setembro de 2017. Os jovens sofrem de comportamento agressivo, ataques de pânico e déficit de atenção. Naguib al-Saadi, fundador da organização que criou o centro, disse que o problema real será sentido em dez anos, "quando as crianças desta geração que sofreram lavagem cerebral e hoje mostram ódio ao Ocidente virarem adultos".