Por que três países europeus querem anular o último Nobel da Literatura
Resumo da notícia
- Nobel da Literatura reacendeu divisões étnicas e rancores nos Bálcãs
- Vencedor é um escritor austríaco, de língua alemã, admirador da Sérvia
- Lista de vencedores do Nobel 2019 foi completada ontem
Na região de passado recente mais atribulado da Europa, cidadãos e até governos de três países se dizem ofendidos e querem a anulação do prêmio Nobel de Literatura de 2019, concedido ao escritor austríaco Peter Handke.
A nomeação provocou reações na Albânia, na Bósnia e no Kosovo -oficialmente não reconhecido pelo Brasil como país independente. Um dia antes do anúncio do Nobel da Paz, a escolha da Academia Sueca soou nos Bálcãs como um elogio à guerra.
"O fato de uma instituição renomada como a Academia Sueca dedicar seu prêmio mais alto a Handke é repulsivo e insultante para aqueles que sofreram tudo aquilo que o escritor nega que existiu", disse ao UOL Kemal Pervanic, sobrevivente de um campo de concentração na Bósnia em 1992.
Kemal tinha 24 anos quando, durante a dissolução da Iugoslávia, tropas sérvias invadiram a Bósnia e confinaram populações de origem muçulmana — como a sua família.
O campo de concentração em que Kemal estava preso foi descoberto por jornalistas ingleses após dez semanas. Com o escândalo internacional, 1.200 prisioneiros, incluindo ele e seu irmão, foram liberados, mas tiveram que fugir da Bósnia.
A alguns quilômetros dali, em vilarejos como Srebrenica, os prisioneiros não tiveram a mesma sorte, e mais de 8.000 homens e meninos foram assassinados.
Apesar da extensa documentação e dos julgamentos internacionais, Handke, premiado por sua literatura, diz que não houve campo de concentração, nem genocídio. Ele chegou a dizer que os bósnios muçulmanos haviam fingido tudo para sujar a imagem da Sérvia.
Ao ser anunciado vencedor do Nobel deste ano, Handke, cuja língua materna é o alemão, comemorou em sérvio para TVs de Belgrado.
"Hoje à noite, vamos tomar uma rakija [licor típico da sérvia] e uma taça de vinho branco", disse Handke.
Fã da Iugoslávia
Handke nasceu na Áustria e tinha mãe eslovena — uma das nacionalidades que compunham o caldeirão multiétnico da antiga Iugoslávia.
Ele cresceu admirando a república socialista e a via como um contraponto à sociedade de consumo capitalista. No início da década de 1990, com o início da desintegração iugoslava, Handke tomou partido de Belgrado, que tentava manter a unidade da federação, e ignorou as denúncias de atrocidades cometidas pelas milícias sérvias.
Em 2006, Handke fez um discurso emotivo e elogioso no funeral de Slobodan Milosevic, acusado de liderar forças sérvias nos crimes de guerra contra a Bósnia, a Croácia e o Kosovo.
"Ele faz apologia a crimes como genocídio e nunca se preocupou em encontrar a verdade conversando com aqueles que sofreram nas mãos dos sérvios", afirma Kemal, que hoje mora na Inglaterra e mantém um projeto para promover a integração entre etnias na Bósnia.
Pervanic é um dos que tem se manifestado publicamente contra a nomeação de Handke. E as declarações não se limitam à sociedade civil.
Presidentes da Albânia e do Kosovo
Após a divulgação do prêmio, o presidente do Kosovo, país que declarou unilateralmente independência da Sérvia em 2008, foi ao Twitter protestar.
"O genocídio na Bósnia e no Kosovo tiveram um autor. Handke escolheu apoiar e defender esses autores. A decisão do Prêmio Nobel traz imensa dor às incontáveis vítimas", escreveu Hashim Thaçi.
A população do Kosovo, em grande parte de origem albanesa e muçulmana, também acusa as forças sérvias de crimes de guerra.
Na Albânia, país solidário ao Kosovo pelos laços étnicos, o presidente Edi Rama também demonstrou indignação nas redes sociais.
"Nunca pensei que sentiria vontade de vomitar por um prêmio Nobel", escreveu.
Nas plataformas de petição online, surgem dezenas de ações coletas de assinatura pedindo que o prêmio seja revogado.
O UOL pediu à Academia que se manifestasse sobre a polêmica, mas não teve resposta.
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