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3,7 mil brasileiros ainda esperam repatriação: 'Desamparo' e 'sem dinheiro'

A brasileira Franciele Silveira foi para Malta após proposta de trabalho, mas agora está retida com os dois filhos e corre risco de ficar ilegal se não for repatriada - Arquivo Pessoal
A brasileira Franciele Silveira foi para Malta após proposta de trabalho, mas agora está retida com os dois filhos e corre risco de ficar ilegal se não for repatriada Imagem: Arquivo Pessoal

Luciana Amaral

Do UOL, em Brasília

01/05/2020 04h00

Após 40 dias desde o início das repatriações pelo Itamaraty, 3,7 mil brasileiros no exterior ainda enfrentam problemas para retornar ao Brasil em meio à pandemia do coronavírus, segundo o Ministério das Relações Exteriores. O governo não informa onde se concentra a maioria dos pedidos de retorno.

Desde 21 de março foram repatriados 17.906 pessoas, de acordo com o governo federal.

Nas redes sociais da pasta, é possível perceber que muitos brasileiros ainda buscam orientações de como proceder. Há pessoas que afirmam estar em Malta, Guiné-Bissau, Venezuela e Espanha, por exemplo, sem conseguir um voo para o Brasil.

Questionado pelo UOL, o Itamaraty não respondeu se há prazo para o término das repatriações. "Reiteramos que todos os brasileiros não residentes retidos no exterior estão sendo considerados pelo Itamaraty e que continuamos trabalhando para trazê-los de volta para o Brasil", afirmou, em nota.

O Itamaraty disse não ter consolidados as idades e os motivos da ida ao exterior dos brasileiros que pedem a repatriação, mas há quem estivesse em viagem de turismo ou a trabalho e quem morasse fora, foi demitido, está sem dinheiro e agora busca voltar ao Brasil.

Estudos interrompidos e Itamaraty 'agência de viagem'

Tatiane Faria teve de interromper o doutorado no laboratório e busca voo direto do Canadá para o Brasil, previsto atualmente somente para junho - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Tatiane Faria teve de interromper o doutorado no laboratório e busca voo direto do Canadá para o Brasil, previsto atualmente somente para junho
Imagem: Arquivo pessoal

Tatiane Faria faz parte de seu doutorado na área de solos em Guelph, próximo a Toronto, no Canadá. A coleta de dados para a pesquisa foi concluída em 11 de março, dia em que o governo do país declarou a pandemia seguindo a OMS (Organização Mundial da Saúde).

Devido ao coronavírus, a universidade em que estuda foi fechada e está trabalhando de casa.

Ela relatou que precisa finalizar a tese, mas não está rendendo o tanto quanto gostaria devido à situação de isolamento. "Fica difícil a escrita, a concentração. Cheguei num ponto de 'quero ir embora para minha casa', porque, pelo menos, vou estar com minha família e vou estar calma. Não queria chegar a esse ponto, mas foi uma válvula de escape que me ocorreu", afirmou.

Em contato com o consulado do Brasil em Toronto, o posto respondeu a Tatiane que há outras pessoas na mesma situação e não há voos diretos para o Brasil em maio. Ela não pode pegar voos com escalas nos Estados Unidos por não ter o visto para o país.

"Temos que seguir firme, né? Não tem outra opção. Estou tentando me acalmar. A questão dos voos, se não me engano, só tem voo direto para o Brasil em junho. Pelo jeito, vou ter de esperar até junho. Não vejo muita solução", disse.

Valério Neto foi fazer curso em universidade na Espanha e não consegue voltar. Com dinheiro da bolsa de estudos no fim, mora de favor com amigos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Valério Neto foi fazer curso em universidade na Espanha e não consegue voltar. Com dinheiro da bolsa de estudos no fim, mora de favor com amigos
Imagem: Arquivo pessoal

Valério Neto é natural de São Luís do Maranhão, estudante de mestrado de turismo na Universidade Federal Fluminense e foi fazer um curso na Universidade de Girona, na Espanha, onde terminou os estudos por meio de bolsa em março.

Ele não consegue voltar após sucessivos cancelamentos de voos e afirma que está tendo de se virar com o restante do dinheiro da bolsa previsto para ser utilizado até março.

Agora, está morando de favor com amigos, tendo sido multado pela polícia espanhola ao sair de seu antigo alojamento mesmo explicando a situação, afirmou.

Segundo Neto, apesar do preenchimento de formulários ao ministério, a embaixada na Espanha tem funcionado mais como uma "agência de viagem" ao divulgar voos caros de retorno.

"O apoio do governo federal que tenho tido é ínfimo. Apoio não consigo identificar. Eles acreditam que a 'ajuda' é só focar semanalmente em preço de voo por alguma empresa que está disponibilizando a preços exorbitantes, com critérios dúbios", disse.

Brasileira vive com filhos à base de doações em Malta

Após uma proposta de trabalho, Franciele Silveira chegou a Malta com os dois filhos de 18 e 15 anos em 13 de fevereiro. Diante da pandemia e do fechamento de órgãos públicos, não conseguiu acabar de processar todos os documentos necessários para estender sua permanência no país e seu visto termina em maio.

Ela chegou a ter passagens para voltar ao Brasil em 23 de abril, mas o voo foi cancelado e ainda não recebeu o ressarcimento, diz. A empresa em que trabalha teve de reduzir o horário de funcionamento e acabou recebendo metade do salário por ser recém-chegada.

Atualmente, mora em alojamento na empresa, mas já pediram para que saia do local assim que possível. "Tenho vivido de doações de alimentos e água", relata.

Franciele disse já ter preenchido o formulário de repatriação e mandar emails diários ao Ministério das Relações Exteriores em Malta e na Itália, mas só receber respostas automáticas.

Desamparada e despejada

Danielle, que prefere não ter o sobrenome identificado, é do Paraná e mora em Londres, na Inglaterra, há um ano e meio. Ela afirma estar tentando voltar ao Brasil há três semanas, sem sucesso. Atualmente ilegal, ela ajuda na limpeza de residências, mas foi dispensada por todos os patrões desde a eclosão da pandemia. Sem recursos, foi despejada e está morando de favor na casa de amigos, disse.

Inicialmente, fez contato com a Casa do Brasil, associação não ligada ao governo federal que auxilia brasileiros no Reino Unido, inclusive com retornos voluntários. Informaram que todos os voos estavam cancelados até maio e não poderiam ajudá-la. Em contato com o Home Office britânico, responsável por imigração, entre outros assuntos, informaram que haveria um voo em 3 de maio de Londres rumo ao Brasil e para ela entrar em contato com o Itamaraty.

Segundo Danielle, a Embaixada do Brasil disse desconhecer qualquer informação do Home Office. Ao procurar novamente o posto, informaram que se ainda tivesse lugar no voo, ligariam.

"Trataram meu caso como lixo. Expliquei que estou sem trabalhar, sem dinheiro, fui despejada de onde morava e mesmo assim não deram urgência. Estou extremamente confusa, desamparada, e chateada", afirma.

Procurado pelo UOL, o Itamaraty disse lamentar que Danielle não tenha recebido o atendimento "à altura de suas expectativas" e que vai informar o consulado em Londres do caso.

Itamaraty diz ter auxiliado em 23 voos de repatriações

Para evitar a propagação do vírus, o transporte mundial de passageiros foi reduzido ao mínimo necessário e pessoas têm tido dificuldade para voltar aos respectivos países. Por isso, as embaixadas e os consulados do Brasil no exterior afirmam procurar colher informações de brasileiros interessados na repatriação e oferecer apoio logístico para o retorno deles.

Segundo o ministério, a pasta já auxiliou brasileiros em 23 voos de repatriações até 25 de abril. O Itamaraty considera o começo oficial das repatriações em 21 de março, quando cancelamentos de voos foram intensificados e o ministério passou a atuar de forma mais coordenada para atender aos brasileiros retidos.

O único voo de repatriação antes da data foi o que buscou um grupo de 30 brasileiros que estava em Wuhan, na China, epicentro inicial da pandemia. O grupo chegou a Goiás em aviões da FAB (Força Aérea Brasileira) em 9 de fevereiro e ficou em quarentena na Base Aérea de Anápolis antes de cada um voltar aos estados de origem.

Três operações que repatriaram 106 brasileiros foram realizadas com aviões da FAB - Wuhan (30), Cusco (66) e Caracas (10). O restante das repatriações aconteceu por meio de voos contratados ou auxiliados pelo Itamaraty, o que não significa que os brasileiros estejam isentos de pagar passagem.

Além de brasileiros, o governo ajudou cidadãos de outros países. Em voo fretado pelo Itamaraty para buscar brasileiros na América Central, 60 cidadãos centro-americanos aproveitaram escalas para retornar aos locais de origem. Quatro chilenos aproveitaram espaços disponíveis em voo fretado da África do Sul para o Brasil, de onde partiram para o Chile por conta própria.

Posicionamento do Itamaraty

O Itamaraty também informou ao UOL que a repatriação de migrantes brasileiros está sendo estudada caso a caso e será realizada apenas em caso de absoluta dificuldade financeira.

"No que diz respeito aos migrantes brasileiros residentes permanentemente no exterior, é importante ressaltar que as representações no exterior dispõem de verbas de assistência para casos emergenciais, mas não há previsão orçamentária para a concessão de auxílio continuado. Tendo em vista a maior incidência de casos de desvalimento, em decorrência da crise econômica que acompanha as medidas de isolamento social decretadas, outras soluções estão sendo exploradas, como a organização de redes de assistência, com auxílio de organizações religiosas, associações, cidadãos brasileiros e locais.

Os brasileiros também podem pedir auxílio do Consulado para informações sobre seus direitos e eventuais benefícios aos quais façam jus, garantidos pelo governo do país em que se encontram, no contexto da pandemia.

Temos conhecimento do momento econômico difícil pelo que passam muitos nacionais no exterior. Recordamos, no entanto, que os recursos para repatriação não são ilimitados e precisam ser utilizados criteriosamente, em um momento em que muitos brasileiros no território nacional também passam por dificuldades de grande monta", afirmou, em nota.