Na sucessão do papa Francisco, ultraconservadores disputam futuro da Igreja

A disputa pelo futuro da Igreja Católica já começou, e não será apenas uma questão de fé.

Enquanto o papa Francisco, 88, segue internado em Roma e fiéis ao redor do mundo rezam por sua recuperação, nos bastidores do poder do Vaticano, a ala ultraconservadora católica se articula por um novo nome alinhado ao tradicionalismo.

O que aconteceu

Francisco enfrenta problemas respiratórios crônicos. A situação é agravada pela ausência de um dos lobos do pulmão, retirado ainda na juventude.

Fragilidade do papa reacendeu as movimentações da ala ultraconservadora da Igreja. São setores que há tempos buscam influenciar sua sucessão.

Novo papa mais alinhado ao tradicionalismo abriria possibilidade de retrocesso nas pautas progressistas da Igreja. Desta forma, a instituição se aproximaria ainda mais de figuras da nova direita mundial, como Donald Trump, Javier Milei e políticos bolsonaristas.

O que motiva a movimentação ultraconservadora?

Francisco se consolidou com contraponto progressista ante o avanço da extrema direita global. Em seus discursos, denunciou a desigualdade, a destruição ambiental e o populismo autoritário.

Pontífice nunca contrariou as doutrinas centrais da Igreja. Mas seu estilo pastoral, voltado ao diálogo e à inclusão, colocou-o em rota de colisão com setores tradicionalistas.

Francisco tem disposição para o debate teológico entre diferentes vertentes do catolicismo. Essa postura irrita profundamente os ultraconservadores, que o veem como uma ameaça à identidade tradicional da Igreja, conta a vaticanista brasileira Mirticeli Medeiros.

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Papa não tem medo de colocar temas espinhosos na mesa. Entre eles, a união civil de casais homoafetivos, o papel das mulheres na Igreja e a acolhida a divorciados Mirticeli Medeiros, vaticanista brasileira

Francisco enfrenta uma oposição organizada dentro da própria Cúria Romana. Desde o início de seu pontificado, em 2013, cardeais de viés ultraconservador atuam para minar sua autoridade —algo impensável em outros tempos, quando a obediência ao papa era um princípio inquestionável.

Ala ultraconservadora nunca aceitou plenamente o estilo de governo de Francisco. A afirmação é do vaticanista Marco Politi, autor de diversos livros sobre o Vaticano.

Ele desmantelou redes de poder, atacou a corrupção e afastou figuras influentes. Isso criou inimigos poderosos dentro da Igreja Marco Politi, vaticanista

Quem forma e como se organiza a ala ultraconservadora católica?

Entre cardeais que criticam Francisco está autor de livro que traça perfil de futuro papa mais tradicionalista. Ele é Gerhard Müller, ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. O livro de Müller, In Buona Fede (De Boa Fé, em tradução livre) lançado em 2023, é interpretado como um primeiro movimento para influenciar a sucessão de Francisco.

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Além de Müller, grupo inclui signatário de carta com provocações a Francisco. Trata-se de Raymond Burke, ex-prefeito do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica. Burke assinou a "Dubia", um conjunto de perguntas enviadas ao Papa em tom de desafio sobre questões doutrinárias.

Com conexão com a nova direita, Igreja americana ganha peso

Igreja Católica nos EUA abriga grupos ultraconservadores influentes. Possuem forte presença em redes de mídia e alto poder financeiro.

Eles são alinhados à extrema direita. Usam a religião para apoiar campanhas políticas e promover uma visão rígida de moralidade cristã.

Nos EUA, grupos católicos ultraconservadores atuam abertamente em campanhas eleitorais e fazem propaganda contra líderes progressistas Franca Giansoldati, jornalista vaticanista do Messaggero e coautora do livro In Buona Fede, com Gerard Müller

Os grupos ultraconservadores americanos foram fundamentais para a ascensão de Donald Trump. Promoveram uma agenda baseada em pautas morais, como a oposição ao aborto e ao que os ultraconservadores costuam chamar de "ideologia de gênero".

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Influência americana chegou ao Brasil. No país, ela se reflete no fortalecimento de movimentos católicos tradicionalistas alinhados ao bolsonarismo. A estratégia se repete: usam a defesa da moral cristã para mobilizar eleitores e consolidar uma base política ultraconservadora.

Na sucessão papal, há chance de a Igreja norte-americana mostrar sua força. Os cardeais dos EUA possuem influência financeira e midiática.

Nem toda a Igreja norte-americana está alinhada ao ultraconservadorismo. Há bispos e cardeais que apoiam as reformas de Francisco.

Um deles é o cardeal Robert McElroy, de San Diego. Ao defender uma Igreja mais inclusiva e próxima dos marginalizados, ele mostra que o cenário não é monolítico e que a sucessão papal ainda é incerta.

Guerra de desinformação contra Francisco

Outro elemento fundamental da disputa é o uso das fake news contra o pontificado de Francisco. Desde o início de seu governo, sites e mídias ultraconservadoras espalham notícias falsas sobre suas declarações e estado de saúde.

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Episódio mais recente aconteceu com sua internação no hospital Gemelli. Veículos italianos ligados ao tradicionalismo publicaram que o Papa teria apenas "72 horas de vida".

Vaticano se viu obrigado a soltar um áudio com a voz de Francisco. A voz debilitada tentava acalmar os rumores.

Há uma máquina de propaganda muito bem estruturada, com blogs, canais no YouTube e até bispos que abertamente criticam o papa
Mirticeli Medeiros, vaticanista brasileira

Vaticano tem reagido aos ataques, mas a batalha da comunicação é desigual. Com um público altamente engajado e algoritmos que favorecem o discurso radical, os ultraconservadores conseguem influenciar a percepção pública sobre o pontífice e criar uma narrativa de crise dentro da Igreja.

O que esperar do próximo conclave?

Sucessão de Francisco será decisiva para o futuro da Igreja. Se a ala conservadora conseguir eleger um papa alinhado às suas pautas, a tendência é um endurecimento doutrinário e um afastamento da linha pastoral de Francisco.

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Mudança pode significar reaproximação com governos autoritários de viés religioso. Também pode provocar o abandono do papel do Vaticano como mediador em conflitos globais.

Ainda há resistência dentro da Igreja. Francisco nomeou a maioria dos cardeais que votarão no próximo conclave, o que pode favorecer um sucessor que siga sua linha pastoral. Boa parte desses cardeais são moderados e o jogo de poder dentro do Vaticano continua imprevisível.

O clero é muito internacional, e os bispos não se conhecem bem, o que torna difícil saber como pensam uns sobre os outros. Até o momento da eleição, articulações e alianças podem redefinir o equilíbrio de forças Franca Giansoldati

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