'Minha professora protegeu o criminoso nazista mais procurado do mundo'
A jornalista Betina Anton resgatou memórias da infância para escrever o livro "Baviera Tropical" (Editora Todavia, 384 páginas), que conta a vida de Josef Mengele no Brasil. O médico nazista chamado de "anjo da morte" passou 18 anos no paÃs e morreu em Bertioga, no litoral paulista, em 1979.
A obra ganhou o Jabuti —mais tradicional prêmio da literatura brasileira—, na categoria biografia e reportagem, em novembro. Ao UOL, Betina conta o que descobriu sobre a trajetória de Mengele no Brasil —e relata uma conexão improvável de sua infância com uma personagem do caso.
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'Estranhei perder a minha professora'
Mengele era da SS (Esquadrão de Proteção, na tradução para o português), a tropa de elite do regime nazista.
O médico tinha o objetivo de terminar a guerra com o status de um grande pesquisador. Por isso, ficou famoso por experimentos sem base cientÃfica, feitos no campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, em que usava os prisioneiros como cobaias.
Ele priorizava pesquisas com ciganos e gêmeos, para provar a suposta superioridade da raça ariana, uma das bases ideológicas do nazismo.
Betina tinha 6 anos quando sua professora Liselotte Bossert foi descoberta por acobertar Mengele no Brasil. O nazista viveu em São Paulo entre 1961 e 1979, quando morreu aos 67 anos afogado na Praia da Enseada, em Bertioga, nos braços da famÃlia Bossert.
Mengele e os Bossert conviveram por 10 anos. Eles foram apresentados por Wolfgang Gerhard, seu aliado de fuga, um austrÃaco "nazista de carteirinha", como define a autora. Mengele mentiu sua identidade de inÃcio, mas não foi rejeitado ao revelá-la e era chamado de "tio" pelos filhos do casal.
Foi Liselotte quem cuidou do enterro do nazista em Embu das Artes, usando o nome de Gerhard.
Em 1985, autoridades alemãs interceptaram cartas dos Bossert e avisaram a polÃcia brasileira, que fez buscas. Mengele, morto, foi encontrado. Liselotte demitiu-se, e a famÃlia ficou na mira da imprensa e das autoridades do mundo todo.
Betina conta no prefácio do livro que as memórias da tante (tia) Liselotte são também algumas das primeiras que tem na vida.
A autora estudava em um colégio alemão na zona sul de São Paulo, e a ausência repentina da professora e o alvoroço subsequente lhe davam a impressão de algo grave acontecendo, mesmo sem saber o que era.
"Era um mistério, eu ouvia o nome 'Mengele', mas não sabia o que era nazismo, o que ele tinha feito, não sabia o que eram os campos de concentração, mas foi algo que teve um impacto forte na minha infância", conta.
Eu tinha seis anos de idade e estranhei perder a minha professora de uma hora para outra. Por que ela não viria mais? O que aconteceu? Eu sentia que o zum-zum-zum dos adultos em torno desse assunto guardava um ar de gravidade. Não sabia exatamente o que era, mas na minha percepção infantil entendi que havia algo errado. Tante Liselotte, a quem nossos pais nos confiavam todas as manhãs, tinha dado proteção ao criminoso nazista mais procurado do mundo naquele momento: Josef Mengele.
Baviera Tropical, pág. 8
Betina foi à procura de Liselotte Bossert enquanto apurava o livro. Sozinha, foi ameaçada por ela, que não quis falar sobre o passado com o nazista. A jornalista também diz que sofreu ameaças de processos, não relatadas no livro.
Liselotte Bossert e seu marido, Wolfram, nunca tentaram negar o vÃnculo com o nazista.
À época da exumação do corpo de Mengele, em 1985, a ex-professora disse que o nazista se arriscou em Auschwitz para tratar pessoas doentes e que reclamava de ser "pintado como o diabo" no mundo todo. Wolfram afirmou que Mengele "era um homem bom" e que alegava ter ser sido forçado a cumprir ordens. Ambos negaram sofrer ameaças para mantê-lo escondido.
A PF indiciou o casal por esconder um estrangeiro clandestino, em 1986. Liselotte também respondeu por falsidade ideológica, por enterrá-lo com nome falso. Apenas ela foi denunciada, em outubro daquele ano. Em 1994, foi condenada a pagamento de multa e dois anos de prisão, mas a defesa recorreu e, três anos depois, a Justiça disse que o crime já havia prescrito.
Liselotte morreu em 2018, segundo uma vizinha, meses após falar com Betina.
'É uma história internacional'
A autora tinha receio de como a comunidade alemã receberia a história, mas o retorno foi positivo aqui e fora do Brasil: a obra foi traduzida e está à venda em 15 paÃses.
É uma história internacional, com vÃtimas de diversas nacionalidades, e acho que todo mundo quer entender como esse cara passou tanto tempo no Brasil incólume, e qual a nossa reação, como brasileiros. A história já foi contata por gringos, mas nunca a fundo do nosso ponto de vista.
A autora encontrou documentos inéditos nos arquivos da PF. Eram cartas, trocadas entre Mengele, seus amigos e familiares.
Os registros mostram detalhes da vida do fugitivo no Brasil, que passou por Nova Europa, Serra Negra e pelo bairro de Eldorado, onde tinha uma casa às margens da represa Billings.
Filho de Mengele, o advogado Rolf disse que o nazista teve uma vida "miserável" no Brasil, mas a autora rebate.
Betina reconstituiu o dia a dia do alemão. Mengele passou seus últimos anos em um sÃtio, ia à praia com os Bossert, gostava de ler e tinha acesso a livros em alemão vindos de uma loja no Brooklin, na zona sul da capital paulista. A preocupação com o intelecto era constante, e ele gostava de manter conversas de "alto nÃvel".
Mengele reclamava, sim, mas a vida dele não era miserável. Tem relato dele indo à churrascaria, tomando banho de cachoeira, indo para o sÃtio. Ele ia à praia, tanto é que ele morreu lá, nos braços dos amigos. Que vida miserável é essa? É uma vida melhor do que muita gente tem, que muito aposentado no Brasil tem.
Racismo e medo da solidão
Mengele dizia ter pavor de negros. LuÃs, jardineiro que trabalhava em sua casa, citou à PF falas racistas de "seu Pedro", como o alemão era chamado. "O racismo dele contra os judeus na Europa se tornou um racismo contra os negros no Brasil", explica Betina.
Com base nesse racismo odioso, ele criticava a novela Escrava Isaura, um dos maiores sucessos da televisão brasileira. Dizia que não gostava da produção porque havia muitos negros. Mas assistia mesmo assim pelo prazer em ver os escravizados serem maltratados. Baviera Tropical, pág. 269
O nazista se dizia solitário e citou o medo de morrer só. "Mengele era bem quisto na região do Eldorado, mas na passagem de uma carta dá para entender o que ele pensa internamente e ele tinha muito medo de morrer sem afeto", diz Betina.
Trocas de cartas mostravam também que Mengele valorizava a amizade e apreciava a natureza brasileira.
'Tinha muitas perguntas'
Mesmo com a ligação pessoal, a autora diz que a ideia de contar a passagem de sua infância surgiu só ao longo da apuração. Seu intuito com o livro era entender os impactos da vinda de Mengele e de outros nazistas ao Brasil, além do contexto histórico da época —a jornalista também é mestre em história internacional pela Escola de Economia e Ciência PolÃtica de Londres.
Tive a ideia em 2016 e tinha muitas perguntas para começar a pesquisa, como: o que era verdade nas pesquisas de Mengele em Auschwitz? Como foi a recepção dessa história na comunidade alemã em São Paulo? Quem sabia e quem não sabia que ele se escondia aqui? Foi uma parte grande da pesquisa, porque tive muitas perguntas que eu mesma fazia e queria saber a respostas. Betina Anton
Betina conta que Mengele não citava os crimes de guerra que cometeu. "Em nenhum momento ele fala de Auschwitz, repensa o que fez ou faz uma mea culpa."
O filho do nazista também já havia dito em entrevistas anteriores que ele não mencionava o passado como integrante da SS. Por isso, Betina dedica capÃtulos ao histórico do nazista na Segunda Guerra.
Para a autora, por mais que o foco do livro seja a vida dele no Brasil, apresentar o contexto é importante para entender o que ele fez.
Além de usar os prisioneiros como cobaias, ele tinha como assistentes vários dos grandes médicos da Europa, que eram prisioneiros também. Todos trabalhavam de graça e ainda ficam agradecidos, porque estava salvando a vida.