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Mulheres mutiladas descobrem prazer sexual após cirurgia de reconstrução do clitóris

Ativistas do Femen protestam contra a MGF (Mutilação Genital Feminina) na Praça do Parlamento, no centro de Londres, em julho de 2014 - Cyril Villemain/ AFP
Ativistas do Femen protestam contra a MGF (Mutilação Genital Feminina) na Praça do Parlamento, no centro de Londres, em julho de 2014 Imagem: Cyril Villemain/ AFP

Ondine Debré

02/01/2017 06h00

Mais de 60 mil mulheres que vivem na França seriam circuncidadas. Ainda que existam cirurgias reparadoras, o mais difícil muitas vezes é conseguir falar sobre esse trauma, que pode ser comparado a um estupro

Hoje Mintou é uma jovem “reparada”. Reparada? Quer dizer que ela não é mais circuncidada, e para ela é importante dizer: “Fui circuncidada quando bebê, em Paris. Eu só tinha alguns dias de vida, vivi incompleta até meus 25 anos de idade. Agora sou uma outra mulher, estou reparada, estou completa.”

O reparo do qual Mintou fala não é unicamente o de seu clitóris, ainda que tenha sido feito há oito meses, mas sim o de sua identidade de mulher, de sua psique, enfim, de todo seu ser. É um equilíbrio que ela reencontrou entre seu corpo e sua mente, graças à operação e graças à conscientização que a acompanhou. Para a psicanalista Catherine Bensaide, o trauma da circuncisão é comparável ao do estupro: “Essas mulheres que foram agredidas em sua intimidade ficam fragilizadas de forma irremediável.”

As Nações Unidas calculam que mais de 200 milhões de meninas tenham sofrido alguma forma de mutilação genital feminina nos 29 países da África e do Oriente Médio onde a prática é mais comum. A maioria dos países da África proíbe e condena oficialmente as mutilações genitais femininas. No entanto, um país como o Egito, que proíbe a prática desde 2008, tem 91% de suas mulheres entre 15 e 49 anos circuncidadas, segundo um relatório da Unicef de 2013.

Na França, ainda que os números sejam difíceis de estabelecer, estima-se em mais de 60 mil o número de mulheres circuncidadas. E, segundo a federação GAMS (Grupo pela Abolição das Mutilações Sexuais), 350 circuncisões ainda são perpetradas a cada ano, em uma estimativa por baixo. No dia 23 de novembro, o Ministério dos Direitos das Mulheres apresentou um quinto “plano de mobilização e de combate a todas as violências cometidas contra as mulheres”, incluindo três medidas que visam reforçar a prevenção da circuncisão e manter um acompanhamento sólido junto às mulheres e garotas em questão.

Para aqueles que a praticam, a ideia da circuncisão seria preservar as mulheres da infidelidade quando elas se casam, já que ao não sentirem prazer, elas não irão buscá-lo em outros lugares. Tanto que uma jovem que não seja circuncidada não é considerada boa para se casar. É importante explicar que nenhum preceito religioso exige esse ato cruel.

“Era tabu”

Quanto à questão de se é possível viver sem o clitóris, a resposta é não. Quanto ao aspecto físico, ginecologistas e urologistas são categóricos: uma ablação completa do clitóris, com ou sem os pequenos lábios, leva a inúmeros problemas que podem colocar em risco a saúde das mulheres e de bebês que vão nascer. “A cicatriz é uma região mais dura, e durante o parto a passagem do bebê tem grandes chances de deslocar essa cicatriz”, explica o urologista Pierre Foldès, especialista em reparos de mutilações genitais em mulheres. Essas mulheres mutiladas não sentem nenhum prazer sexual. Pior, as relações sexuais são dolorosas ou desconfortáveis em sua maior parte. Por fim, uma em cada três mulheres circuncidadas sofre de incontinência urinária durante toda a vida.

Mintou, de origem malinesa, não tinha nem um mês quando ela foi “cortada” em Paris pela célebre circuncisadora Hawa Greou, que viria a ser condenada a oito anos de prisão em 1999. Ela foi levada por sua mãe e sua avó, assim como quatro de suas cinco irmãs. Com uma faca à qual ela atribuía a força dos espíritos, a circuncisadora cortou o clitóris da recém-nascida com um gesto seguro e firme, que sua mãe e sua avó repetiram no passado. Uma circuncisão de “tipo 1”, como explicaria mais tarde o Dr. Foldès a Mintou: somente o clitóris foi cortado, e a circuncisadora poupou os pequenos lábios.

A menina cresceu feliz entre vários irmãos, volta com frequência para o Mali e nunca fala sobre sua genitália com sua mãe. “Cresci em meio ao amor de meus pais. Meu pai era faxineiro, ele lutou para nos sustentar. Eu sabia que em nossa terra as meninas eram mutiladas, mas isso era tabu, não se falava jamais sobre isso”, ela explica. Tanto que quando sua mãe morreu, quando ela tinha 18 anos, Mintou sentiu uma dor imensa, é claro, mas também a necessidade de saber. Ela marcou uma consulta com um ginecologista, e perguntou de cara para o médico: “Eu sou circuncidada?” A resposta não a surpreendeu.

Frédérique Martz, que trabalha junto a mulheres mutiladas no Instituto de Saúde Reprodutiva de Saint-Germain-en-Laye, explica que algumas mulheres crescem sem saber que são circuncidadas, e descobrem por acaso durante uma consulta, durante uma gestação, por exemplo. “Mas para todas as que conheci”, ela conta, “o fato de serem circuncidadas provocou grandes sofrimentos físicos, que o tabu que pesa sobre essa prática não ajuda a amenizar. ”

E com o quê se parece um clitóris? Essa pergunta assombra as mulheres circuncidadas. A imagem do pequeno apêndice e o papel que ele tem no prazer que lhe retiraram alimentam a imaginação dessas mulheres incompletas. Tanto que, às vezes, Mintou, que é auxiliar de enfermagem, dá uma espiada no sexo de suas pacientes. Discretamente, por acaso, ela tenta ver, quando está cuidando de alguma delas, o que se esconde entre as pernas das mulheres intactas.

“Eu queria ver como eram os genitais de uma mulher normal. Depois, falei sobre minha circuncisão com meu pai. Ele sentia muito e lamentava que isso tivesse acontecido. Conversamos muito sobre isso, e nunca senti raiva de meus pais por causa disso”, conta a jovem que, alguns anos depois, decidiu fazer a cirurgia de reparo na clínica do Dr. Foldès.

Ele forma dupla com Frédérique Martz e o trabalho dos dois especialistas permitiu que mais de 5.140 mulheres recuperassem sua integridade física graças a essa cirurgia, paga pela Seguridade Social, e que a maioria delas se reapropriasse de sua vida sexual.

“Eu não incentivo necessariamente a cirurgia”, diz Frédérique Martz. “É um trabalho longo, e o reparo sozinho não basta, existe todo um trabalho de readaptação a ser feito que acompanhamos no pós-operatório. Ele envolve massagens no clitóris recém-reconstruído, e algumas mulheres, sobretudo as muçulmanas, se recusam no começo. Só que sem isso, o prazer não vem.” A médica costuma receber ligações desesperadas de mulheres cujas sensações demoram a aparecer. Às vezes, são fotos de seus genitais que as mulheres enviam, para terem certeza de que está tudo bem.

Aida, 32, está esperando por uma consulta de retorno um mês após sua operação. Seu perfil tenso se desenha na luz da sala de espera, e seus cabelos frisados puxados para trás formam uma coroa em torno de seu rosto. Ainda que hoje ela esteja bem, a raiva transparece em sua voz quando a jovem conta sua história.

“Sou fula e originária de Guiné-Conacri, mas cresci em Serra Leoa. Em nosso país, as meninas são circuncidadas por volta dos 6 ou 7 anos de idade. As pessoas não questionam essas tradições, é algo que deve ser feito”, ela conta. “Guardei tudo na memória: a casa suja que eu não conhecia, o pano ensanguentado no chão, o medo que tomou conta de mim ao sentir aquelas mulheres me pegando, os gritos que eu dava, e a dor que senti com os repetidos gestos... Eu certamente conseguiria encontrar esse lugar de novo. Foi minha avó que me levou, ela disse que era uma “etapa de iniciação”. Penso nisso todos os dias, dez vezes por dia...”

Hoje, a jovem sente que renasceu, quase que literalmente: “Roubaram uma parte de mim, e era difícil para me identificar de verdade. Hoje tenho uma filha de 6 anos, e eu tinha vergonha de olhar para ela, não conseguia limpá-la entre as pernas quando ela era pequena.” O ódio por essa parte do corpo é algo que se vê entre as mulheres estupradas.

Da operação, Aida guarda uma lembrança angustiada, pois o gesto cirúrgico, ainda que não tenha sido nem muito longo, nem muito doloroso, despertou as lembranças da circuncisão. “Mas vale a pena, agora sou uma mulher inteira. Falei com minha mãe da circuncisão e da cirurgia há uma semana. Nós nos reconciliamos, de certa maneira, pois ela também sofria por ter deixado me circuncidarem”, ela conta.

30 milhões de meninas podem ser mutiladas em 10 anos

Efe

Tradições, educação, submissão

Essa jovem voluntária sempre foi dona de seu destino: criada em uma família de rapazes, quando era pequena brigou para escapar da escola árabe, e conseguiu ir junto com seus irmãos mais velhos para a escola inglesa. Ela, que chegou à França aos 19 anos de idade e se casou aos 20, deixou seu primeiro companheiro, para quem a total ausência de prazer sexual por parte de sua mulher não era um problema. Foi com seu novo marido que ela percorreu toda a trajetória que a levou até a sala de operações, e que a levará, quando ela decidir, a uma vida sexual que ela espera ser completa e feliz.

As histórias dessas mulheres são histórias de famílias, de destinos onde se misturam tradições, educação e submissão a um modelo patriarcal que as novas gerações precisam abandonar, se quiserem colocar um fim à prática da circuncisão. A França, onde algumas delas nasceram e outras cresceram, condena a circuncisão como crime, assim como todas as mutilações sexuais. Pela lei, o autor do ato e o responsável pela criança mutilada podem ser condenados a até dez anos de reclusão e 150 mil euros de multa.

No Hôtel Dieu de Paris, o mais antigo hospital da cidade, no serviço de emergências médico-legais dedicado às vítimas, a chefe do departamento, Caroline Rey-Salmon, e Céline Deguette usam seu conhecimento de médicas legistas para proteger mulheres e meninas da circuncisão. Meninas jovens, que foram assinaladas por um diretor de escola à brigada de menores da proteção materna e infantil (PMI) como sendo circuncidadas ou em risco de ser, são enviadas a elas. Cabe à equipe fazer um diagnóstico seguro.

“Quando uma menina chega até nós porque seus pais planejavam levá-la ao seu país durante as férias, verificamos seu estado. Se ela não estiver circuncidada, os pais devem trazê-la até a nós na volta das férias. Ela deve estar intacta, senão a Justiça é acionada para puni-los”, explica Caroline Rey-Salmon. Ao evitar o risco de circuncisão através de consultas para crianças “em risco” e condenando os pais cujas filhas tenham sido mutiladas, a França está protegendo da melhor forma as mulheres que vivem em seu território. Mas nem sempre isso é suficiente.

Assa hoje tem 25 anos, vive no norte de Paris, está cursando uma graduação e vive com seu noivo. Assa é uma jovem de seu tempo, exceto por um detalhe: ela também foi circuncidada em Paris quando tinha 2 anos de idade, algo que ela descobriu por intuição. O assunto é tão tabu, que ela teve de esperar até os 20 anos para falar sobre isso com seus pais, muitos anos depois que eles foram condenados pela Justiça francesa.

Ela conta que hoje não sente mais raiva deles, mas quer combater essa prática cruel. “Que direito eles tinham de dispor do corpo de sua filha assim? Se você diz à geração de meus pais que eles são bárbaros, você não conseguirá nada. É preciso ter mais diplomacia e empatia também”, ela sugere.

O que a espanta é o fato de que suas amigas, tão parisienses, tão completamente adaptadas à cultura de sua terra natal, que é a França, são quase todas circuncidadas. Assa se destaca dentre essas mulheres ao dar seu depoimento: “Tenho orgulho de carregar essas duas culturas. A África corre em minhas veias, mas eu nunca deixarei que mutilem minha filha. Cabe à nossa geração romper essa corrente e quebrar as lâminas das circuncisadoras.”