Análise: 2013 será lembrado como um ano de agressão ao cidadão digital
Bem que eu gostaria de analisar os últimos doze meses na tecnologia digital com carinho. Infelizmente, pelo visto, 2013 vai acabar sendo lembrado como um ano trágico e sombrio nesse universo, tanto em termos de dispositivos pessoais como redes, apesar dos avanços sensacionais que ocorreram. Foi o ano em que coisas maravilhosas aconteceram em termos tecnológicos, mas com implicações terríveis para o nosso futuro.
Sem dúvida, foi o ano em que a computação se espalhou e se firmou. Foi o ano em que os tablets se tornaram onipresentes e dispositivos avançados como impressoras 3D e interfaces usáveis despontaram como um fenômeno pop. Tudo muito divertido, afinal, era só uma questão de tempo. Os eletrônicos ampliaram o nosso acesso ao mundo. Hoje podemos nos comunicar regularmente com gente de quem nem nos dávamos conta antes da era digital. É possível encontrar informações sobre praticamente tudo a qualquer hora.
Entretanto, 2013 também foi o ano em que percebemos a sinuca de bico em que nos metemos. Descobrimos, através de Edward Snowden, ex-analista da Agência de Segurança Nacional dos EUA, e do trabalho de jornalistas investigativos corajosos, que nossos brinquedinhos eletrônicos e nossas redes digitais, motivadas por ideais tão nobres, estão sendo usados por organizações remotas e ultrapoderosas para nos espionar. Estamos sendo mais dissecados do que podemos dissecar.
Eu gostaria de poder separar as duas grandes tendências do ano em termos de tecnologia -- os aparelhos bacanas e as revelações da espionagem digital -- mas não posso.
No início da era da computação pessoal, a ideia que nos motivava era a de que os computadores eram ferramentas para elevar a inteligência humana a conquistas e realizações inéditas. Eu me lembro de que os primeiros panfletos da Apple os descreviam como "bicicletas para a mente". Esse era o conceito arraigado nos corações de pioneiros como Alan Kay que, há meio século já fazia ilustrações de como as crianças, um dia, usariam tablets.
Acontece, porém, que ele faz algo que não foi previsto; estabelece uma nova estrutura de poder. E o fato de ser levinho e ter uma tela sensível ao toque conta menos que o fato de que seu dono tem menos liberdade do que aqueles que tiveram aparelhos digitais de gerações anteriores. Ao contrário do computador pessoal, ele só opera com programas e aplicativos aprovados por uma autoridade comercial central. Na grande maioria dos casos, você não consegue usá-lo se não fornecer pelo menos algumas informações pessoais. Na verdade, ele não permite que você faça o que bem entender do jeito que quiser; seria difícil, por exemplo, administrar um negócio ou fazer um curso à distância através dele. Se conseguisse, porém, com certeza teria terceiros observando todos os seus movimentos com atenção para calcular que vantagens poderiam levar.
O falecido Steve Jobs, que orquestrou a introdução do retumbante sucesso do iPad da Apple, declarou que os computadores pessoais de hoje eram "caminhões", ferramentas de gente simples, de camiseta e boné e que, sem dúvida, a maioria dos consumidores ia preferir um carro. Todo descolado, ainda por cima. A implicação óbvia é a de que o público exclusivo prefere status e lazer a influência e autodeterminação. E o problema nem é a Apple, mas as características de todo o ramo. Houve um tempo em que a Microsoft se via como uma empresa de ferramentas, mas parece que o que conquista o consumidor de hoje é a sua Xbox, que não passa de um sistema de conteúdo.
Ver a prevalência da passividade do consumidor sobre o seu poder de decisão é doloroso, mas não sei realmente de quem é a culpa. Será que nos entregamos fácil demais?
Por si só esse fato já seria bastante sombrio; acrescente-se a ele o crescimento da economia de vigilância, ou seja, não só o consumidor passou a dar prioridade ao exibicionismo e à preguiça sobre a liberdade de escolha como também concorda em ser espionado o tempo todo.
Na verdade, as duas tendências são uma só. A única maneira de vender a perda da liberdade -- para que as pessoas a aceitem voluntariamente -- é fazendo com que pareça uma proposta irresistível. Os consumidores "ganham" coisas (como ferramenta de busca e redes sociais) em troca da permissão de ser espionado. Como dizer não a essa oferta? Só transcendendo o papel de consumidor.
Nossa liberdade fica restringida quando damos a organizações terceiras o poder sobre nossas informações. Um dos motivos é puramente econômico. Antigamente, os indivíduos mais ricos do mundo controlavam poços de petróleo, empresas de transporte naval e outros recursos de valor físico; na era da informação, os mais abastados são aqueles que estão mais próximos dos computadores maiores, administram empresas de internet ou operadoras móveis. Fortunas incalculáveis podem ser acumuladas por aqueles que usam melhor os dados pessoais que lhe são entregues de bandeja. (O Instagram, lançado em 2010, tinha apenas treze funcionários e nenhum plano de negócios quando foi comprado pelo Facebook menos de dois anos depois, por US$1 bilhão em dinheiro e ações.)
Infelizmente, o tipo de riqueza centralizada promovida por uma sociedade de vigilância não beneficia a todos. Ao contrário, é um padrão que aos poucos vai transformando o mundo numa loteria "ganhou-levou", na qual todo mundo sonha com um negócio que já comece arrebentando, um vídeo campeão no YouTube, um aplicativo maneiro de iPhone. A classe média está sendo substituída por uma longa fila de esperançosos fracassados.
Há quem diga que a tecnologia de rede está reforçando a democracia porque permite, por exemplo, que você tuíte suas reclamações; só que reclamar não é o mesmo que ter sucesso. As redes sociais não criaram empregos para os jovens no Cairo durante a Primavera Árabe e não está criando empregos nos EUA. Você pode fazer o barulho que quiser, mas a verdadeira influência também se concentra entre os superricos que administram os seus dados.
A perda da liberdade transcende a influência econômica. Ser livre é ter um espaço só seu, onde pode ficar só com seus pensamentos e experimentos; é aí que tem oportunidade de se diferenciar e aumentar seu valor pessoal. Quando carrega para cima e para baixo um smartphone com GPS e câmera e fornece dados o tempo todo para um computador de uma corporação paga pelos anunciantes para manipulá-lo, você se acorrenta um pouco mais, e não só beneficia a corporação e os anunciantes como aceita a agressão ao seu poder de escolha.
A publicidade era uma forma de retórica, o uso de um meio de expressão; agora significa que você está sob vigilância constante. Embora distantes, os algoritmos de um computador gigante foram programados para tentar modificar o seu comportamento alterando o conteúdo de sua experiência on-line.
Você recebe uma atualização de um amigo de uma cafeteria exatamente quando está passando por ela. Coincidência inocente? Imagine receber um anúncio com detalhes de sua vida quando estiver passando por um local de votação. Você quer viver num país onde as eleições são definidas pelo poder relativo dos computadores de nuvem de um partido político?
A ascensão dessa economia de vigilância ao consumidor nada mais é que um pano de fundo irônico e incômodo para a indignação em relação à espionagem da NSA. Nós nos sentimos violados. A Agência de Segurança Nacional xeretou correspondências amorosas, empresas petrolíferas, governos estrangeiros amigos e o público europeu. Não sabemos quem anda lendo nossos e-mails mais comprometedores. A sensação é péssima, mas se nos acostumarmos a ela, vai ficar ainda pior.
Por que então despejamos todos os nossos dados pessoais em corporações distantes e obscuras? Por que achamos que o suporte ao consumidor de um setor privado de vigilância não se tornaria um estado permanente?
É uma pena que tecnologias tão interessantes, que estavam sendo aguardadas há décadas, tenham surgido justo quando a economia de vigilância prevalece. Dispositivos como o Google Glass são invenções maravilhosas, que oferecem não só benefícios práticos como novos prazeres e expressões estéticas. Durante anos eu montei e brinquei com protótipos e me vi animado, contando nos dedos a data de sua disponibilidade ao público, mas hoje o primeiro modelo em grande escala comercial nem funciona se você não aceitar a vigilância total.
Para que a tecnologia volte a ser um instrumento pessoal de poder, temos que querer usá-lo. Temos que aprender a exigir aparelhos que funcionem mesmo que ninguém clique automaticamente nos termos de acordo que nos coloca em desvantagem enviando todos os nossos dados a corporações remotas. Enquanto abaixarmos a cabeça e aceitarmos essas condições em troca de algumas vantagens, não podemos impedir que o governo também se beneficie deles.
Se exigimos serviços grátis no presente, devemos ter consciência de que pagaremos um preço salgado por eles no futuro. Devemos exigir uma economia de informação que beneficie a todos da mesma maneira porque a opção a ela é uma concentração de poder desenfreada. Uma economia de vigilância não é nem sustentável nem democrática.
Assim, o ano na tecnologia foi, como sempre é, mais um período em que a humanidade ainda está decidindo como proceder enquanto vê seus recursos aumentarem. Descobrimos o quanto nos tornamos passivos. Não podemos definir o futuro da tecnologia somente em termos do que as outras pessoas fazem. Os cidadãos da era da informação têm que aprender a ser mais que apenas consumidores; temos que aprender a estar à altura de nossas próprias invenções.
*Jaron Lanier é cientista da Computação e criador da expressão “realidade virtual“. Entre os livros que já escreveu estão "Gadget - Você Não é Um Aplicativo!", "Bem-vindo ao Futuro - Uma Visão Humanista Sobre o Avanço da Tecnologia"
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