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Em uma Rússia culturalmente indócil, um Tolstói é um rosto amistoso no Kremlin

Trineto de famoso escritor russo é um dos conselheiros do presidente Vladimir Putin - Sergei Karpukhin/Reuters
Trineto de famoso escritor russo é um dos conselheiros do presidente Vladimir Putin Imagem: Sergei Karpukhin/Reuters

Rachel Donadio

21/03/2015 06h00

Em uma tarde de inverno ensolarada aqui, Vladimir Tolstói, um trineto de Liev Tolstói e um conselheiro de assuntos culturais do presidente Vladimir Putin, caminhava por uma trilha margeada por vidoeiros que leva à propriedade bucólica da família, onde seu antepassado escreveu "Guerra e Paz" e "Anna Karenina". Ela agora é um museu público. A cada passo, ele era cumprimentado por funcionários voltando para casa após o expediente.

"Boa noite", dizia Tolstói com um sorriso caloroso. "Boa noite", respondiam os funcionários do museu, a maioria mulheres. "Por favor, envie nossos cumprimentos ao nosso czar e diga-lhe que nós o respeitamos muito", uma mulher disse a Tolstói, que assentiu com a cabeça alegremente.

Ao mesmo tempo amistoso e feudal, o cenário da propriedade, a cerca de 200 quilômetros ao sul de Moscou, capturava algo do humor atual na Rússia, onde Putin é considerado um czar, especialmente fora das grandes cidades, mesmo enquanto a intelligentsia liberal o condena e lamenta sua popularidade. Também reflete os benefícios para Putin de alistar o apoio de um membro de uma família ilustre enquanto ele busca estimular o orgulho nacional.

Desde que foi escolhido por Putin em 2012, Tolstói, 52 anos, despontou como o rosto mais conciliador, culto e amistoso em relação ao Ocidente da política cultural do Kremlin. Ele trabalha com o mais combativo, mas de temperamento diferente, ministro da Cultura russo, Vladimir Medinsky, que é conhecido por suas afirmações agressivas da superioridade russa e dos valores conservadores.

Tolstói disse que trabalhou para remover linguagem de uma minuta de política do ministério que vazou no ano passado, declarando que a "Rússia não é a Europa". Mas, como a maioria dos russos, Tolstói apoia vigorosamente a invasão e anexação pela Rússia da Crimeia, um território que muitos russos acreditam que não deveria ter sido cedido para a Ucrânia por Khruschov, em 1954.

"Liev Tolstói foi um oficial russo que defendeu a Rússia no Quarto Bastião em Sebastopol", ele disse, falando por meio de um tradutor tomando um chá em um café próximo do museu. "Para nós, em nossa mente, ela sempre foi russa."

Ele se referia ao cerco de Sebastopol em 1854-1855 na Guerra da Crimeia, na qual a Rússia combateu as forças aliadas da França, Reino Unido, Sardenha e o Império Otomano, e no final perdeu o controle da cidade. "É claro, como descendente do oficial russo Liev Tolstói, eu não posso ter outra atitude a respeito", ele acrescentou.

Tolstói foi criado em uma família de classe média na região de Moscou e se formou como jornalista. Em 1994, ele foi nomeado diretor do Yasnaya Polyana, que fica na casa onde o escritor escrevia e foi preservada como era na época de sua morte, em 1910. Também há uma fazenda produtiva e pomares, e o túmulo de Tolstói fica em uma ravina arborizada, que o escritor associava ao seu querido irmão mais velho, que morreu jovem.

O trineto melhorou a qualidade e escopo das atividades do museu, adicionando palestras, um prêmio literário e aulas de russo. Sua esposa, Ekaterina Tolstaia, assumiu como diretora depois que ele se tornou conselheiro de Putin.

Tolstói disse que Putin lhe ofereceu o cargo após uma reunião dos diretores do museu em abril de 2012, na qual Tolstói criticou a estratégia cultural do governo e o conselho consultivo do presidente para cultura como ineficazes. "Quando a reunião acabou, o presidente me pediu para permanecer por mais um pouco e perguntou se já que eu era tão crítico, eu podia fazer um trabalho melhor?" disse Tolstói. Agora, ele informa Putin sobre as questões culturais e age como ponte entre o mundo cultural da Rússia e o Kremlin.

Em uma tarde recente, ele estava recebendo chamados de Irkutsk, Sibéria, para ajuda para os arranjos para o funeral do escritor Vladimir Rasputin, que morreu na semana passada aos 77 anos e expressou preferência por ser enterrado em Irkutsk, a cidade onde nasceu.

Tolstói disse que considerava Rasputin o melhor escritor do último meio século. Ele era conhecido por seus retratos vívidos da devastação ambiental causada pela industrialização na Rússia rural e também por seu conservadorismo: ele pediu para que o grupo punk ativista Pussy Riot fosse processado após sua apresentação provocadora em uma igreja de Moscou a atacou a perestroika, a liberalização iniciada por Mikhail Gorbatchov antes da desintegração da União Soviética.

O senso de que a Rússia de algum modo perdeu seu rumo desde a queda da União Soviética é generalizado aqui atualmente, e Tolstói e outros apoiadores fiéis de Putin tentam reviver um senso de orgulho nacional, expressado por meio da política cultural.

Guiado por Tolstói, um comitê de importantes figuras culturais e autoridades produziu um documento de política de 18 páginas que define a cultura de modo amplo, dizendo que ela é tão valiosa para a Rússia quanto seus recursos naturais. Ela também toca em preceitos morais, na importância da religião na moldagem dos valores e o lugar da língua russa na união de um país com mais de 140 milhões de habitantes e diversas etnias. O documento também acentua a distinção da Rússia "como um país que une dois mundos, o Oriente e Ocidente".

De volta ao café, Tolstói se animou ao falar sobre o orgulho russo. "A Rússia atual não pode ser forçada a fazer o que não quer", ele disse. "É impossível obter algo por meio de sanções ou mesmo por meio de um ataque aberto. A Rússia respeita a si mesma e apenas deseja justiça, nada mais."

Naquela tarde de inverno, dezenas de visitantes seguiam para Yasnaya Polyana. Havia neve no solo e gelo no lago, e os vidoeiros pegavam a luz vespertina. O espírito do antigo lar do escritor "é amor", refletiu Tolstói.

Nos romances de Tolstói, "não há nenhum personagem que seja um vilão por completo", disse seu trineto. "Todos os personagens dele são pessoas reais."