Proibição do "burquíni" provoca revolta após repressão da polícia armada contra banhistas na França
Policiais armados cercando mulheres muçulmanas na praia e ordenando que elas retirem suas roupas recatadas ou saiam. Pessoas gritando “voltem para o lugar de onde vieram”. Humilhação pública e ostracismo que lembram a polícia da moral de países teocráticos como Irã ou Arábia Saudita, não um país que vê seus valores como um modelo de liberdades ocidentais.
Essas incômodas imagens passaram a dominar o atual debate sobre identidade e assimilação à medida que prefeituras do litoral da França tentam impor novas proibições sobre o “burquíni”, o traje de banho de corpo inteiro pensado para se adaptar às normas de recato islâmicas.
Na quarta-feira, circularam pelas mídias sociais do mundo inteiro fotos de policiais franceses obrigando mulheres muçulmanas vestidas de forma recatada nas praias a pagarem multas, irem embora ou se despirem. Choveram críticas, seguidas de alguns recuos políticos, uma semana depois que o primeiro-ministro do país, Manuel Valls, denunciou o pouco usado burquíni como uma ferramenta de “escravização”.
Pelo menos 20 prefeituras do Mediterrâneo, bem como várias outras no norte da França, determinaram proibições contra a vestimenta alegando que ela não é “apropriada”, que ela “desrespeita a boa moral e o secularismo” e “desrespeita as regras de higiene e de segurança de banhistas em praias públicas.”
Organizações que incluem o Coletivo Contra a Islamofobia na França e a Liga dos Direitos Humanos se opuseram às restrições em tribunais locais, mas até o momento as regras foram mantidas.
Agora que as proibições, redigidas de forma vaga, aparentemente atingiram não somente mulheres usando burquínis, mas outras em um amplo leque de vestimentas recatadas, algumas organizações e políticos franceses que pouco disseram antes agora começaram a se preocupar com o fato de que talvez as novas regras sejam discriminatórias e impossíveis de serem impostas.
O ministro do Interior francês, Bernard Cazeneuve, que se encontrou com o Conselho Francês da Fé Muçulmana após um pedido urgente da organização, disse que a execução da lei não deveria “estigmatizar” as pessoas ou “colocá-las umas contra as outras.”
O próprio Partido Socialista de Valls disse em uma declaração que a execução da lei estava colocando o país em uma “espiral particularmente perigosa”, citando “a atitude da multidão” que se formou em torno de uma mulher que estava sendo confrontada por três policiais em Cannes na semana passada.
Os policiais cercaram a mulher, que estava usando uma túnica, legging e um lenço na cabeça, a multaram e ordenaram que ela fosse embora da praia. A mulher estava na praia com os filhos, e disse que era uma cidadã francesa de terceira geração, de Toulouse.
Uma multidão se formou. “Ouvi coisas que nunca tinham me dito antes na cara”, disse a mulher, que se identificou somente como Siam para a revista francesa “L’Obs”. “Coisas como ‘Volte para o lugar de onde veio’, ‘Senhora, lei é lei, estamos cansados dessas histórias’ e ‘Aqui somos católicos’.”
Em lágrimas, a mulher disse que “porque pessoas que não têm nada a ver com minha religião mataram, eu não tenho mais o direito de ir à praia.”
Quando parentes que estavam com ela perguntaram à polícia por que eles não estavam perseguindo pessoas usando crucifixos, já que exibições ostentatórias de fé religiosa eram o alvo da nova lei, um policial respondeu: “Não vamos fazer uma caça aos crucifixos. Vamos andando, senhora, vocês receberam uma ordem de sair da praia.”
A conversa foi testemunhada por uma repórter, Mathilde Cusin, jornalista do canal de TV France 4, que por acaso estava na praia e deu seu relato à revista “L’Obs.”
No entanto, foi uma série de fotos de um episódio similar em Nice que desencadeou a grande polêmica nas mídias sociais. As fotos mostravam quatro policiais municipais armados, usando coletes à prova de balas, abordando uma mulher que usava um turbante informal, uma camisa azul larga e legging.
As fotos mostram os policiais cercando a mulher e aparentemente emitindo uma notificação, esperando enquanto ela tira a camisa. Ela usava uma regata por baixo. As fotos foram publicadas pelo jornal britânico “The Daily Mail” e depois pelo “The Guardian”. Ambas as publicações disseram que a polícia mandou que ela tirasse a camisa.
Como o fotógrafo estava um tanto distante da cena, não ficou claro o que de fato os policiais disseram. No entanto, as imagens sugeriam que a mulher foi humilhada deliberadamente na frente dos outros banhistas.
Alguns usuários do Twitter reagiram postando fotos de freiras entrando na água de hábito e questionando se a polícia francesa “faria essas senhoras tirar suas roupas também.”
Outros compartilharam fotos de um homem usando uma roupa de mergulho e uma mulher usando um burquíni, observando que o traje de mergulho era considerado apropriado pelo governo francês.
A ONU também criticou a França pela forma como aparentemente tratou mulheres muçulmanas nas fotos das mídias sociais.
Questionado sobre a restrição em uma coletiva de imprensa, Stéphane Dujarric, porta-voz do secretário-geral Ban Ki-moon, disse: “Acho que é importante que a dignidade dos indivíduos seja respeitada. Não sei se ela foi respeitada, nesse caso em particular, a julgar por essas fotos.”
Até mesmo um grupo feminista, o Osez Le Féminisme, condenou a repressão contra o burquíni, dizendo que as mulheres estavam sendo vítimas duas vezes: de racismo e de machismo.
Muitas feministas francesas assumiram a posição de que usar o véu ou outra vestimenta muçulmana oprime as mulheres e apoiaram as restrições sobre o uso desse tipo de traje em público.
Mas nessa ocasião, disse o Osez Le Féminisme, as mulheres não só estavam sendo potencialmente privadas de seus direitos por sua religião “patriarcal’, como o governo francês também estava as forçando a “viver sob uma opressão religiosa” e contradizendo “suas liberdades fundamentais.”
Aheda Zanetti, a estilista libanesa-australiana que foi a primeira a vender o burquíni em 2004, disse que as autoridades que tentavam evitar que as mulheres se cobrissem interpretaram mal a intenção do traje de banho, que permitia que mulheres mais recatadas nadassem e praticassem esportes mais confortavelmente.
“Eles entenderam errado o burquíni”, disse Zanetti, 49, em uma entrevista por telefone a partir de Sydney. “Como o burquíni significa liberdade, felicidade e mudanças no estilo de vida, você não pode tirar isso de uma muçulmana, ou de qualquer outra mulher, que decida usá-lo.”
No entanto, o ex-presidente Nicolas Sarkozy, que está concorrendo à candidatura da centro-direita nas eleições presidenciais francesas de 2017, disse à “Le Figaro Magazine” que “não fazer nada” contra o burquíni seria “outro recuo” para a França.
Ele defendeu que a proibição de vestimentas e símbolos religiosos em cargos governamentais e em escolas públicas francesas de 1º e 2º grau seja estendida para as universidades e as empresas privadas. O véu de rosto inteiro e a burca já são proibidos em locais públicos.
Christian Estrosi, vice-prefeito de Nice, apoiou a atitude da polícia, dizendo que eles haviam emitido 24 multas por violações à proibição da prefeitura de “vestimentas inadequadas” e que ele viu mulheres usando tais roupas tentando deliberadamente provocar o público.
“Eu condeno essas provocações inaceitáveis nesse contexto muito particular com o qual nossa cidade está familiarizada”, disse Estrosi, referindo-se ao ataque terrorista no dia 14 de julho que matou 86 pessoas, 30 delas muçulmanas.
O vice-presidente da Liga dos Direitos Humanos em Cannes, Henri Rossi, concordou que o contexto do ataque recente em Nice é importante para entender por que as pessoas estão tão sensíveis, mas disse que isso não justifica a adoção de medidas que aprofundam o abismo cada vez maior entre os muçulmanos e não-muçulmanos da França.
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