Opinião: Rostos de Aleppo nos pedem salvação. Nós apenas olhamos, impotentes
Elas continuam vindo, as bombas e as imagens de Aleppo, muitas delas, as munições chovendo indiscriminadamente sobre famílias presas em armadilhas, equipes de socorro e crianças. As forças dos governos russo e sírio não as deixam sair.
Mas as fotos e os vídeos chegam a nós. Os rostos dos sitiados, olhando para a câmera, para nós, para a morte, suplicando por ajuda, atônitos diante de nossa indiferença pelo massacre, descrevendo as atrocidades fora de seus quartos ou apenas do outro lado da porta. Vemos seus rostos de um ângulo em que geralmente vemos o rosto de um amigo --de perto, olhando diretamente em nossos olhos.
Eles são testemunhas em tempo real, recusando-se a desaparecer sem deixar vestígio. Nesta era de conexão, eles se recusam a nos deixar escapar do anzol. Essas imagens, disseminadas pelas redes sociais, sem edição, confirmam que as pessoas que as fazem continuam vivas --pelo menos naquele momento.
Nunca antes recebemos tal inundação de imagens de qualquer frente de batalha, nunca tivemos um olhar tão íntimo, minuto a minuto, do que para o comissário de direitos humanos da ONU provavelmente constituem crimes de guerra, segundo disse na quarta-feira (14).
"Por favor, salvem-nos, obrigado", diz Bana al-Abed, uma menina síria de 7 anos, em um vídeo postado no Twitter. Bana vem tuitando há alguns meses com sua mãe do leste de Aleppo, onde forças russas e do governo sírios bombardearam sua família para fora de casa. Esta semana ela disse que sabe que vai morrer. É difícil para mim imaginar alguém vendo esse vídeo sem sentir um horror e uma vergonha intensos.
A postagem de Bana levou canais de notícias do Ocidente a discutir se seus tuítes e vídeos são propaganda, se Bana ou sua localização podem ser autenticadas.
E Aleppo continua queimando.
"Quando um acordo de livre comércio com os EUA leva centenas de milhares de pessoas às ruas, mas esses bombardeios terríveis em Aleppo não provocam qualquer protesto, algo não está certo", disse a chanceler alemã, Angela Merkel.
Não, não está. Fotos da guerra e do sofrimento instigaram a consciência pública e provocaram ações antes. Houve a foto de Kevin Carter de 1993 de um bebê faminto e um abutre no Sudão. Ou a foto do soldado americano morto arrastado por Mogadíscio, que apressou a retirada dos EUA da Somália. Houve a foto de Nick Ut de 1972 do sul do Vietnã, com a menina Phan Thi Kim Phuc, de 9 anos, nua e gritando, queimada por napalm. Essas imagens conduziram os ciclos de notícias durante semanas, meses, anos, ajudando a inclinar as balanças da política.
É claro, a reação política foi geralmente a retirada. O que se poderia fazer em uma situação como Aleppo não é tão claro. Mas essa não é a história toda.
Importa que as vítimas na Síria sejam muçulmanas? O presidente eleito americano ganhou a eleição jogando com o preconceito contra os muçulmanos. Ele se vendeu ao público americano como um líder transacional, prometendo acordos, não necessariamente decência. Ele disse admirar o homem-forte da Rússia, o presidente Vladimir Putin, e fez campanha sobre o recuo isolacionista do envolvimento global.
Cada um de nós recorre às notícias de que gosta. Durante a guerra do Vietnã, os americanos viram as mesmas transmissões de redes e folhearam as mesmas fotos de revistas. Havia um recrutamento. A guerra estava nos lares de todos.
Hoje, uma pequena porcentagem de americanos luta nossas batalhas. Vemos jovens estrangeiros desesperados na distante Aleppo do conforto de uma postagem no Facebook. As imagens e as vozes começam a se confundir. Um tuíte do presidente eleito Donald Trump ou algum escândalo sobre notícias falsas nos distraem.
Em suma, lamentamos em escala significativa duas fotos, as de Alan Kurdi, o menino de 2 anos morto na praia na Turquia, e a de Oman Daqneesh, 5, retirado das cinzas de Aleppo, sentado na ambulância, limpando o sangue de seu rosto. Também paramos para ver a filmagem de drone de um bairro de Aleppo pulverizado pelo governo sírio e a Rússia. Então essas imagens também caíram pelo buraco da memória coletiva.
Isso porque todas as imagens são testes de Rorschach. Meio milhão de pessoas foram mortas em Aleppo, milhões estão deslocadas pela Síria. As forças sírias, russas e iranianas arrasaram a metade do país, instigando uma crise de refugiados que ameaça desfazer a Europa e os EUA.
Mas Washington encolhe os ombros. Não houve sanções como houve pela anexação da Crimeia pela Rússia. Não houve linhas vermelhas, mesmo depois que armas químicas mataram e feriram centenas de pessoas, nem marchas no Mall ou grandes comícios nos campus. A Rússia e a Síria bombardeiam civis impunemente.
E tudo o que fazemos é olhar, impotentes, enquanto os sírios se recusam a partir silenciosamente, decididos a nos mostrar a si próprios, suas vidas, tudo o que perderam.
Parte da indiferença do público, é claro, pode ser atribuída ao cansaço da compaixão e à desilusão com uma guerra que está no sexto ano. Promessas de encerrar o conflito foram descumpridas várias vezes. Houve garantias sobre revoltas populares. Hoje as redes sociais estão sobrecarregadas de movimentos de protesto, que se extinguem com a mesma rapidez. Tais movimentos costumavam precisar de uma construção lenta, tijolo a tijolo. Eles não contavam com vídeos no Facebook e fotos no Instagram.
Verdade seja dita, nenhuma pessoa sã quer ver essas imagens. O que está acontecendo em Aleppo é quase insuportável de se olhar.
Mas essa é a questão. Bana olha para nós bem nos olhos e nos pede para salvá-la, por favor.
Não fizemos nada para ajudar.
O mínimo que deveríamos fazer é olhar de volta.
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