Cientista que confrontou Bolsonaro critica atuação militar contra queimadas
O embate público ocorrido há um ano entre o ex-presidente do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) Ricardo Galvão e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em torno da suposta manipulação de dados sobre o desmatamento na Amazônia foi o pano de fundo para que a conceituada revista Nature escolhesse Galvão uma das dez personalidades mais influentes no mundo da ciência.
A revelação foi feita nesta quarta-feira (29) pelo próprio cientista, professor livre-docente na USP (Universidade de São Paulo), convidado da semana do projeto "Conversas na Crise - Depois do Futuro", uma realização do UOL em parceria com o Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp.
Galvão deixou a presidência do instituto em agosto do ano passado, após semanas de confronto com o governo. A crise havia começado em julho daquele ano, depois que dados divulgados pelo órgão mostraram que o desmatamento da Amazônia havia crescido 88% no mês anterior, em comparação ao mesmo período de 2018.
Publicado o levantamento, Bolsonaro refutou os dados e sugeriu que Galvão estaria "a serviço de alguma ONG". À época, o então presidente do Inpe rebateu duramente as críticas: classificou os comentários de Bolsonaro de "sem embasamento", os comparou a "conversa de botequim" e avaliou que a atitude do presidente era "pusilânime, covarde".
Na entrevista desta quarta, o professor da USP afirmou ter ficado surpreso ao ser procurado por um repórter da Nature que o havia informado sobre o interesse da publicação em listá-lo, já que não havia tido um trabalho científico, naquele momento, "que deslumbrasse o mundo".
"[O repórter me disse que] Estavam pensando em me escolher como uma das dez personalidades [do mundo da ciência] porque essa questão de obscurantismo não é só do Brasil. Temos outros países, inclusive os Estados Unidos", afirmou. O brasileiro continuou sobre a justificativa do repórter: "Mas avaliamos que em nenhum lugar do mundo houve uma resposta tão contundente da academia como a do senhor, por isso achamos importante homenageá-lo como um exemplo", citou.
Galvão começou a carreira científica no Inpe em 1970. É doutor pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) e, entre outras posições, presidiu a Sociedade Brasileira de Física de 2013 a 2016 e é membro do Conselho da Sociedade Europeia de Física e da Academia Brasileira de Ciências (ABC).
Indagado se o tratamento do governo brasileiro em relação à ciência poderia trazer algum prejuízo internacional nesse campo, o ex-presidente do Inpe resumiu: "Mas eu não acho que esse governo tenha tanta preocupação assim com a repercussão de seus atos na comunidade científica mesmo internacional."
Marcos Pontes não tem força política
Galvão também fez críticas em relação à presença massiva de militares no governo em assuntos relativos à preservação da floresta Amazônica e analisou que o ministro da Ciência e Tecnologia, o tenente-coronel da Força Aérea Marcos Pontes, não tem força política suficiente para defender o setor.
"O ministro é uma pessoa bem informada; recebeu treinamento de astronauta da Nasa, mas não tem trânsito na comunidade científica", disse, embora avalie que, quando Pontes foi nomeado, o sentimento foi de "grande esperança" entre a comunidade cientifica.
"Ele só demonstrou fraqueza quando vieram os embates [com o governo]. Não teve uma posição forte, que deveria ter. Em muitos casos ele diz que atua para reverter cortes na ciência, mas não faz a coisa correta", pontua.
Galvão comparou a atitude de Pontes com a do ex-ministro da pasta no governo Temer, Gilberto Kassab (PSD), quando também houve corte substancial de verbas para a ciência: "Conversamos com ele, que foi ao governo, botou seu prestígio político e reverteu isso - o problema é que nenhum ministro tem êxito se não tiver apoio político muito forte. Às vezes prefiro um ministro não especialista, mas que tenha um diálogo bom e força política para atuar - isso Pontes não tem."
"Ministro militar não vai contra o governo"
Sobre a ação de militares na questão ambiental, durante o período de pandemia —durante o qual, por sinal, o desmatamento na Amazônia não reduziu, ao contrário do observado no restante do mundo —, Galvão lamentou o que chamou de "desmonte" na estrutura de fiscalização de órgãos como o Ibama (O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Ele disse defender que ambos precisam ter ações geridas e executadas por civis.
"É muito preocupante se serviços de monitoramento do Inpe e sua atividade de desenvolvimento de satélites forem tiradas de sua égide e for dada a outros, especialmente organismos militares", avaliou. "O que o governo fez de errado foi colocar as Forças Armadas atuando na Amazônia com controle da ação: isso está completamente errado; elas têm que dar apoio logístico, mas [ações do tipo] têm que estar sob controle de funcionários civis. Eles que são especialistas nisso. Colocar as Forças Armadas para combater desmatamento é o mesmo que colocá-las no Rio para fazer o trabalho da PM [Polícia Militar]. Dão tiro para todo lugar, mas não sabem como fazer o trabalho de policiamento, porque não foram treinados para isso."
Para o cientista brasileiro, a presença de militares na estrutura do governo, e não só nas questões relativas à Amazônia ou à ciência, de modo geral, é sintomática da falta de contraditório a decisões eventualmente equivocadas da Presidência.
"Antes de responder Bolsonaro [em julho do ano passado], esperei por 12 horas que o ministro da Ciência e Tecnologia me telefonasse", comentou. Pontes não ligou. Galvão disse ter se "sentido largado". "Qual a razão? Ministro militar não vai contra o governo. Não vimos nenhum deles contra o governo."
Assista à íntegra da entrevista
Ciência pós-pandemia: esperança
Por outro lado, o pesquisador se mostrou esperançoso em relação à ciência, no país e no mundo, em um cenário pós-pandemia. Apesar das dúvidas ante a "informação muito superficial" disponível hoje em dia nas redes sociais, ele avalia que "a ciência vai ganhar". "Estou bastante convencido porque temos vários exemplos na história", disse.
Galvão citou o caso do botânico soviético Nikolái Vavílov (1887-1943), um dos biólogos mais admirados do mundo e um dos principais pioneiros no campo da criação de plantas e genética, mas que foi preso e morreu de inanição na cadeia, após perseguição ideológica de um cientista crítico a ele e que acabou convencendo Joseph Stalin (1878-1953).
"A opinião desse cientista caiu nos ouvidos de Stalin. Vavílov foi preso e sentenciado à morte, dois anos depois a pena foi comutada em prisão perpétua, mas ele morreu de inanição. O que vemos agora? Ninguém se lembra, e nem eu, desse cientista que foi contra ele. A ciência soviética venceu e se destacou no mundo todo. Porque em ciência é importante para o futuro sustentável da sociedade. Eu tenho a convicção e a fé que isso vai continuar acontecendo."
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