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Bolsonarismo largou promessas de 2018 pelo caminho, diz cientista político

Ana Carla Bermúdez

Do UOL, em São Paulo

28/10/2020 18h28

Para o cientista político Marco Aurélio Nogueira, não é possível afirmar que o bolsonarismo, movimento de apoio aos ideais do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), tenha componentes revolucionários —por mais que ele tenha, em sua base, princípios de contestação ao sistema. Na avaliação dele, trata-se, na verdade, de um movimento reacionário: "ele quer a recuperação de um passado mitificado e apresenta essa recuperação como se fosse uma inovação extraordinária".

"O bolsonarismo não apresentou nada novo. Anunciou em 2018 uma série de promessas que foram sendo abandonadas, ponto por ponto. 'Vamos sair da velha política', 'vamos reformar a economia'. Nada [disso] aconteceu", afirmou. "As promessas feitas em 2018 foram largadas pelo caminho, ele teve que ceder. O que mostra, paradoxalmente, a força do sistema político brasileiro", disse.

Nogueira participou hoje do ciclo "Conversas na Crise - Depois do Futuro", organizado pelo Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) em parceria com o UOL. A entrevista foi conduzida pelo jornalista Paulo Markun e contou com a participação de Carlos Vogt, presidente do Conselho Científico e Cultural do IdEA; de Marcelo Sevaybricker Vieira, professor da UFLA (Universidade Federal de Lavras); e do jornalista Leonardo Sakamoto, colunista do UOL.

Em sua análise, o cientista político disse ainda que o sistema político "encostou o presidente na parede", deixando a ele o recado de que "seu limite de atuação é a retórica, mas quem vai governar o país é o Congresso". "Bem ou mal, alguma coisa desse tipo aconteceu. Não temos parlamentarismo e um presidente caricato, apenas. Mas o Congresso ganhou uma viabilidade operacional muito maior do que a gente imaginava por conta da falta de operacionalidade do próprio governo", disse.

Nogueira também comparou o bolsonarismo ao que chamou de trumpismo, movimento de apoio aos ideais do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. No Brasil, segundo ele, o bolsonarismo acabou ganhando força pela combinação de uma série de crises e dilemas envolvendo descontentamentos econômicos e sociais.

"A sociedade está assimilando isso e está sofrendo as dores disso, porque perde-se emprego, há uma série de dificuldades de recolocação no mercado. Ou seja, os serviços públicos continuam fracassando, não dando as respostas necessárias. Isso cria uma espécie de balão, de ressentimento, que acaba buscando alguém que seja porta-voz disso", disse.

Para ele, tanto aqui como nos Estados Unidos, "apareceu alguém que colocou a cara nessa linha e que começou a falar a linguagem da raiva, do ódio, da frustração".

Fascismo versus bolsonarismo

Questionado se considera que há no Brasil, hoje, uma ameaça fascista, Nogueira afirmou acreditar que há diferenças entre o bolsonarismo e o fascismo italiano, movimento liderado por Benito Mussolini por volta dos anos 1920.

"Eu acho que vivemos uma ameaça fascista, mas com cores diferentes", disse o cientista político. Para ele, há elementos do bolsonarismo que clonam outros do fascismo, como as referências à violência. Além disso, segundo Nogueira, é importante considerar que o fascismo conquistou parte de sua força graças à ruína deixada após a Primeira Guerra Mundial. Já o Brasil, por outro lado, nunca vivenciou algo parecido.

"Podemos encontrar no bolsonarismo muitas pessoas violentas, mas elas são pessoas mais caricatas do que autênticas. Não quero minimizar a perversão que há nisso, mas é diferente", afirmou. "Não são pessoas provadas em uma batalha de verdade. São pessoas caricaturais, que têm caricaturas de esquadristas", disse o cientista político, que afirmou ainda não ver uma influência dessas pessoas "a ponto de todos os jovens quererem ser bolsonaristas".

Mesmo assim, disse acreditar se tratar de "elementos igualmente perigosos", que "podem envenenar a sociedade". No bolsonarismo, afirmou, há uma influência forte do emocional e do passional —algo que, segundo ele, pode ser relacionado com a força que o "fascismo bolsonarista" encontra, hoje, nas redes sociais.

Parte do efeito bolsonarista vem por causa das redes [sociais]. Os machos bolsonaristas se viabilizam nas redes, não necessariamente nas ruas como faziam os esquadristas.

Para o cientista político, no entanto, o bolsonarismo "é burro intelectualmente, não tem intelectuais", enquanto o fascismo italiano tinha um "caldo de cultura denso". "Aqui, esse caldo de cultura é patético. É o quê, Olavo de Carvalho? Não tem consistência. Isso nos diferenciaria muito do fascismo tradicional."

Falta de articulação e crise no Brasil

Para Nogueira, o país vive uma situação em que "a vida brasileira está, hoje, como se estivesse à beira do abismo". "Qualquer movimento errado que se faça nos próximos meses no Brasil vai tender a cristalizar uma situação extremamente perigosa para a democracia, e, em segundo lugar, para a própria reprodução da vida dos brasileiros", disse.

Temos uma crise sanitária gravíssima, combinada com uma crise econômica, educacional, da própria democracia, e sem lideranças. O Brasil é um país, hoje, sem lideranças. Isso aumenta a cegueira em relação ao futuro.

Na avaliação dele, há coisas que podem ser "mobilizadas" e, outras, "neutralizadas" na sociedade brasileira. Algo a ser mobilizado, segundo o cientista político, é o respeito à Constituição de 1988.

"A Constituição não entrou no DNA da população, até porque é muito difícil a população compreender uma Constituição —ela compreende os efeitos constitucionais, que existiram no Brasil. Você pode buscar um efeito disso na legitimidade que o SUS tem na sociedade brasileira", disse.

Segundo ele, apesar de o SUS (Sistema Único de Saúde) receber diversas críticas, "a população o respeita e vê nele a porta de entrada de um tratamento de saúde".