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Grilagem e desmatamento avançam sobre assentamento da reforma agrária em MT

Área de reserva do assentamento está em processo de invasão, dividida, loteada, sendo desmatada - Felipe Abreu
Área de reserva do assentamento está em processo de invasão, dividida, loteada, sendo desmatada Imagem: Felipe Abreu

João Peres e Tatiana Merlino

De O Joio e o Trigo

17/02/2022 04h00Atualizada em 18/02/2022 17h00

Cai uma chuva fina enquanto o carro da reportagem avança entre as ruas de terra do Assentamento 12 De Outubro, em Cláudia (MT). A lama e as poças de água são parte do desafio de entrar e percorrer a área de reserva, depois de passarmos uma porteira e avistarmos uma placa que indica "Área de preservação permanente". Logo em seguida, há uma faixa com os dizeres "Máquina trabalhando na estrada" e "O meio ambiente agradece".

Parece ironia, mas não é: logo depois, o cenário encontrado é de grilagem e desmatamento. Estamos na Amazônia Legal e isso fica visível pela opulenta vegetação. Há árvores altas, partes de mata fechada e o som de pássaros e insetos. Mas, mais para frente, encontramos troncos queimados; árvores de itaúba, peroba e jatobá derrubadas; e vemos restos recentes de fogo.

Também estamos numa das regiões-chave do agronegócio brasileiro. Sinop, a capital informal do Norte de Mato Grosso, e Sorriso, a capital oficial do agronegócio, estão a poucos quilômetros de distância. De dentro do assentamento, é possível avistar a BR-163, que escoa soja e milho durante todo o ano em direção ao Pará e aos portos do Sul-Sudeste.

O 12 De Outubro é um Projeto de Desenvolvimento Sustentável, ou PDS, que, por definição do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), é destinado ao desenvolvimento de atividades ambientalmente diferenciadas, dirigido para populações tradicionais e que prevê que 80% da área seja de reserva legal.

E é nessa área de reserva que entramos e presenciamos um processo intenso de grilagem. Entre poças e buracos, percorremos 12 quilômetros por dentro do grilo. Há áreas loteadas, numeradas e nomeadas e com placas, como o Sítio Três Irmãos e o Sítio Araras. Há também áreas abertas, picadas, e alguns barracões.

Por meio de sua assessoria, o Incra informou que já fez vistoria no projeto de assentamento 12 de Outubro, e que "será feita uma outra vistoria, desta vez com a presença da Conciliação Agrária, para identificação dos ocupantes irregulares" (leia mais abaixo).

Procurado, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais) disse que assuntos relacionados a assentamentos da reforma agrária devem ser tratados com o Incra.

Na entrada da área da reserva, faixa avisa que há máquinas na estrada - João Peres - João Peres
Na entrada da área da reserva, faixa avisa que há máquinas na estrada
Imagem: João Peres

Motosserra e desmatamento

Quando a chuva para, descemos do carro e começamos a andar pelas trilhas. Encontramos um barracão de madeira, com sinais de uso recente, possivelmente como abrigo para os homens que desmatam a área. Avançamos mais um pouco, e escutamos alguns barulhos no meio da mata. Não demora para que as motosserras sejam ligadas novamente.

Também conseguimos entrar em um dos lotes e encontramos uma casa em fase de construção, quase pronta, à beira da represa. Já tem piscina e churrasqueira às margens da represa formada pelas hidrelétricas do rio Teles Pires. Por toda a região, a especulação avançou junto com as usinas, construídas em especial durante o governo Dilma Rousseff (PT, 2011-2016).

Área de reserva do assentamento está em processo de invasão, dividida, loteada, sendo desmatada - Fellipe Abreu - Fellipe Abreu
Área de reserva do assentamento está em processo de invasão, dividida, loteada, sendo desmatada
Imagem: Fellipe Abreu

A situação é tensa. Os assentados do 12 De Outubro com quem conversamos contaram que não entram nesta área de grilagem por receio de serem recebidos a tiros. Os relatos também são de que a grilagem aumentou nos últimos anos, desde o início do governo de Jair Bolsonaro (PL) e o processo de desmonte dos órgãos de proteção.

"No começo, a gente enfrentava os grileiros. A gente optava por fazer esse enfrentamento, mas a gente começou a correr risco de vida. E a gente recuou porque quem deveria cuidar das nossas reservas, as autoridades que têm papel e dever legal de acompanhar isso, não faziam", afirma um assentado do 12 de Outubro, do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

Marcada pelos latifúndios divididos durante a ditadura, essa região de Mato Grosso só foi receber ocupações de sem-terra no começo do século. Em 2003, no início do governo Lula (PT), o MST mobilizou famílias na periferia das cidades do entorno.

Mas a criação oficial do assentamento só veio em 2009, quando as 140 famílias assentadas decidiram criar uma reserva de uso coletivo para os 6.300 hectares, em vez de reservas individuais. Nas reservas de uso coletivo, os lotes de produção ficam agrupados em uma área. Já na reserva individual, cada beneficiário tem seu lote de produção.

"É importante frisar que nós, as lideranças do movimento, propusemos, e foi muito difícil convencer a comunidade de deixar a reserva para uso coletivo", conta outro assentado. "A gente reduziu o tamanho das nossas propriedades para deixar a reserva legal. E hoje, por exemplo, ela não existe, ela foi grilada. E isso é uma coisa que angustia muito a gente."

Vende-se terra grilada pelo Facebook

A área de preservação permanente que está sendo dividida em chácaras não é o único espaço do assentamento em processo de grilagem. Mas é o que mais chama a atenção pela destinação: enquanto algumas famílias pobres ocuparam áreas para a produção de alimentos, outras, ilegalmente, decidiram criar chácaras para lazer.

No caminho, meio perdidos, paramos em um pequeno sítio onde um senhor, depois de uma conversa muito breve, nos ofereceu um lote de 1.500 metros quadrados por R$ 60 mil. Um lote dentro do assentamento da reforma agrária.

A oferta de terras dentro do assentamento também ocorre no mundo virtual. Em grupos de compra do Facebook, encontramos vários anúncios de venda de chácaras em pleno assentamento. "Sítio na região do alagado do PDS 12 de Outubro, já tem um pequeno clarão aberto, com nascente de água, projeto de energia para ser ligado em 2022, já tem internet na região", diz um dos anúncios.

A reportagem encontrou barracões dentro da área de reserva do assentamento - João Peres - João Peres
A reportagem encontrou barracões dentro da área de reserva do assentamento
Imagem: João Peres

Entramos em contato com um vendedor mostrando interesse em comprar o sítio. Ele informa que a área segue disponível, e que "a pedida do proprietário é R$ 400 mil". Questionado se o sítio fica em um assentamento, ele responde que sim. "Mas que já é um lugar bem consolidado há mais de dez anos."

Também perguntamos a ele se, por ser uma área de reforma agrária, não há risco de tensão com os assentados. "Não. Todos já estão com suas áreas demarcadas", responde.

Ainda foi questionado sobre como ficaria a documentação (já que essa é uma área de reserva de propriedade da União). "Conseguimos fazer a transferência. Então você terá o documento de posse", disse o vendedor. "Eu tenho um rancho nessa mesma região, na beira do alagado, lá é muito lindo."

Também conversamos com outro homem que anunciou uma venda de sítio via Facebok. Ele informou que o espaço segue à venda, pelo valor de R$ 45 mil. Questionado se o sítio não está em uma área de reforma agrária, disse: "Todas as chácaras têm contrato de compra e venda com o dono da área".

'Além de nós, quem vai cuidar da reserva?'

Um casal que vive no 12 De Outubro desde 2007 conta que partiu do Incra o pedido de que a área de reserva fosse demarcada de forma coletiva, e não por lote.

"E nós questionamos várias vezes o Incra sobre como seria essa área de reserva coletiva de 80%. 'Quem vai cuidar dessa reserva além de nós?'", afirma o homem. Em outras vezes, os assentados conseguiram expulsar os grileiros. "Nós, do movimento, tentamos resistir. Fizemos desocupações de grileiros de dentro da reserva várias vezes." Mas a mudança de conjuntura política deixou os assentados sem ter a quem recorrer.

Consultamos a plataforma MapBiomas, que utiliza dados de satélites para monitorar focos de desmatamento. Em 2003, havia 3.700 hectares de florestas no 12 de Outubro, número que ficou praticamente igual durante os 15 anos seguintes. Em 2018, tem início uma forte derrubada, com a supressão de quase mil hectares. Em 2019, a área já havia sido reduzida à metade, e continuou caindo em 2020, quando atingiu apenas 1.600 hectares. Nesse exato momento, a área de pastagens avança quase mil hectares.

O pai de um dos assentados com quem conversamos é um veterano da região. Participou da "abertura" das fazendas, trabalhando no desmate para a chegada do arroz e, mais tarde, da soja. Depois, foi um líder da população pobre e candidato a vereador, participou das ocupações de terra e, hoje, também é assentado no 12 de Outubro.

Numa tarde de novembro de 2021, enquanto o temporal toma conta da paisagem, a conversa com o pai vai da Bíblia aos latifundiários, das memórias da ditadura às angústias do presente. "No ano passado, meu filho, você não podia andar como daqui até ali, de tanta fumaça", conta.

"Tinha tanta criança que ia para o médico com problema de respiração. Ave Maria. Puxa, eles queimaram tudo. Tu tá vendo ali da sede pra lá? Aquela reserva era nossa. Acabaram com aquela reserva ali. Você viu? Aquilo era um mato tão perfeito, tão bonito. Vieram e aproveitaram que não tem governo, entraram e acabaram com tudo."

Apesar do aviso informando que é uma área de preservação permanente, a floresta está sendo desmatada - Fellipe Abreu - Fellipe Abreu
Apesar do aviso informando que é uma área de preservação permanente, a floresta está sendo desmatada
Imagem: Fellipe Abreu

Desmonte do Incra

Conversamos com um ex-funcionário do Incra sob sigilo de fonte. Ele atuou no órgão até 2014 e acompanhou, em anos anteriores, ações conjuntas com o Ibama e a Polícia Federal para a retirada de invasores da área de reserva do 12 de Outubro. "Naquela época, os invasores retiravam madeira ilegalmente, mas não tinha esse tipo de loteamento que tem hoje. Isso é completamente ilegal", afirma.

Para ele, o aumento do desmatamento e a grilagem do assentamento têm relação com o desmonte dos órgãos federais. "Antes, conseguia-se expulsar os invasores, hoje já não se consegue. O Incra é um órgão que já não tem mais servidores, a maioria se aposentou. Mas os assentados precisam levar às autoridades essa agressividade que a reserva do assentamento está sofrendo."

O ex-funcionário reforça que em área de assentamento os lotes são intransferíveis, já que é firmado com os moradores um Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU).

O que diz o Incra

Em nota enviada à reportagem, o Incra afirma que "o projeto de assentamento 12 de Outubro já foi objeto de prévia vistoria ocupacional. No relatório produzido, sugeriu-se a desocupação da área de reserva e retomada dos lotes ocupados irregularmente".

"Será feita uma outra vistoria, desta vez com a presença da Conciliação Agrária, para identificação dos ocupantes irregulares. Após isso, a Procuradoria Regional Especializada tomará as providências jurídicas cabíveis para reintegração de posse da área", diz o texto.

O instituto informa ainda que denúncias de irregularidade em áreas de reforma agrária —como grilagem, desmatamento e venda de lotes— podem ser formalizadas neste link.

*Após publicação da reportagem, os nomes dos assentados foram suprimidos a pedido dos próprios entrevistados, que temem pela segurança.