Lei para coibir protestos na Copa trata manifestante como terrorista
No aniversário de 50 anos do golpe, os fascistas resolveram sair do armário no Brasil. Em vez de soprarem as velinhas e as línguas de sogra nas comemorações fechadas de seus clubes, como sempre fizeram, as viúvas da ditadura puseram as asas de fora.
É verdade que as passeatas foram voos de galinha verde – como eram conhecidos os integralistas, pupilos de Mussolini na década de 30 – mas o fato de centenas de pessoas se articularem nacionalmente para defender de forma escancarada ideias tão caducas mostra que ainda não nos livramos dos entulhos do regime militar.
Essas ideias ganham eco e corpo no Congresso Nacional. No Senado, tramita um projeto de lei 499/2013, chamado de antiterror, que, na prática, pretende inviabilizar as manifestações através da intimidação. A proposta é uma das muitas exigências feitas pela Fifa para a realização da Copa do Mundo. O projeto chegou a ser debatido na sessão do dia 20 de fevereiro, mas saiu de pauta.
Se aprovado, teremos uma legislação mais retrógrada do que a produzida pela tara repressora da ditadura. Para piorar, há uma mistura perigosa e oportunista neste processo, que envolve o medo das consequências das manifestações – sentimento aguçado após a lamentável morte do cinegrafista da TV Bandeirantes, Santiago Andrade, em fevereiro deste ano – e as eleições.
Em épocas como esta, a maioria dos políticos brasileiros, sejam legisladores ou ocupantes de cargos executivos, fica mais sensível aos humores e temores da dita opinião pública. Não digo que, em outros períodos, eles sejam apreciadores de debates mais refinados. Mas quando vislumbram as urnas no horizonte, o instinto fala mais alto, e os candidatos fogem das polêmicas como o diabo da cruz.
Como bem escreveu Elio Gaspari, os surtos de histeria política acabam mutilando as liberdades públicas. A escalada de violência nos protestos é inaceitável – seja ela praticada pelo Estado ou por parte dos manifestantes –, mas o exercício da democracia não pode ser transformado num delito, como prevê a proposta, cujo cerne é a tipificação do crime de terrorismo.
O texto é perigosamente vago. Segundo o documento, é delito inafiançável "provocar ou difundir terror ou pânico generalizado". A pena mínima é de 15 anos de reclusão. O que isso quer dizer? O fechamento da avenida Rio Branco às 18h de uma quarta-feira para protestar contra o aumento da tarifa de ônibus no Rio de Janeiro poderia ser tratado como forma de difundir o pânico?
Se um jovem divulgar um protesto em seu perfil numa rede social e neste evento atos violentos ocorrerem, ele poderá ser enquadrado? Sobram interrogações, e a inexatidão permite múltiplas interpretações e arbitrariedades.
O secretário estadual de segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, também deu sua singela contribuição à matéria. Dois dias após o anúncio da morte de Santiago, ele entregou à Subcomissão de Segurança Pública do Senado uma proposta que tipifica o crime de desordem, que pode render de 2 a 6 anos de reclusão.
Acrescento mais interrogações. Por exemplo, os bombeiros que acamparam em frente à Assembleia Legislativa, no centro do Rio, em 2011, para pedir a anistia administrativa e criminal aos colegas grevistas, poderiam ser enquadrados no texto?
Este é um problema que, inclusive, invade a seara da reforma da legislação penal, que tenta substituir a prisão por medidas cautelares. O absurdo chega a tal ponto que, se esse projeto for aprovado, as penas para punir crimes contra o patrimônio serão mais duras do que as dos crimes contra a vida, como homicídio culposo.
É importante lembrar que todos estes delitos já estão previstos no Código Penal. O objetivo do governo e de parte dos congressistas é agravá-los, associando-os ao terrorismo. Em vez de investir no treinamento policial, para tornar as abordagens mais efetivas e melhorar os mecanismos de investigação e inteligência, o Estado investe no terror e na mutilação da democracia.
Pelo jeito, grande parte dos mandatários brasileiros deve sofrer do complexo de Pangloss, mentor intelectual do personagem Cândido na sátira "Cândido ou o Otimismo", do filósofo francês Voltaire. O mestre não cansava de repetir o mantra: "tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis".
Talvez eles acreditam que vivemos num país tão maravilhoso que a verdadeira aberração está naqueles que decidem expressar seus descontentamentos. Recorro a outra passagem da mesma obra para respondê-los: “precisamos cultivar o nosso jardim”, a democracia.
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