Ocupações de escolas mostram que intelectuais não desapareceram
Émile Zola desafiou militares e juízes franceses que haviam enviado o oficial Alfred Dreyfus à Ilha do Diabo por suspeita de espionagem alemã. Ele não redigiu petições ou incitou greves, apenas denunciou a série de manipulações que construíram a certeza coletiva de que o culpado só podia ser um judeu. Zola conseguiu reverter o processo pela força da palavra e, ao mesmo tempo, fundou um novo tipo social: o intelectual.
Jornalista e escritor, ele escreveu o seu “Eu Acuso” contra o judiciário e os militares. Não pediu licença para dizer a verdade. Os intelectuais engajados, como Sartre ou Foucault, acabaram, nos anos 1980, absorvidos pelo sistema universitário ou pelo jornalismo especializado, que eles se incumbiram de fazer de sua função.
Contudo, os recentes escândalos envolvendo a compra por encomenda de opiniões de eméritos professores de economia e política de Harvard ou Yale e a participação massiva de pesquisadores de psiquiatria na carteira de indústrias farmacêuticas mostraram que a corrupção também chegou ao coração dos pensadores profissionais. Nos eventos que cercaram o afastamento de Dilma Rousseff, a parcialidade da cobertura da imprensa e a manipulação de vazamentos pelo Poder Judiciário também sugerem que perdemos a confiança na pureza de nossos críticos profissionais.
Os jovens que cruzam seus caminhos com a educação brasileira têm de enfrentar os efeitos de uma cultura anti-intelectual, herdeira do que Sergio Rouanet chamou de “novo irracionalismo brasileiro”. Muitos recriminam as redes sociais como um lugar de barbarização da cultura, mas poucos lembram que ela é também o meio pelo qual podemos comparar discursos, práticas e valores.
Dessa comparação, surge a céu aberto, e para horror de muitos, o abismo que, calculadamente, se criou entre ricos e pobres em torno desse simbólico, público e coletivo bem –que é a educação. A antiga tensão entre a alta e a baixa culturas (erudita e popular) foi substituída pela farta distribuição das não cumpridas leis de acesso fácil e universal ao saber. Como se nossa Maria Antonieta estivesse a dizer: “se eles não têm merenda, porque não lhes dão alguns tablets?”.
Antes, a educação deveria formar, por meio do trabalho, ao modo profissionalizante. Depois, nos obcecamos com a formação voltada para o mercado. Hoje, o negócio da educação inclui subvenções estatais seletivas, mercado de apostilas e ensino à distância, produção de métricas manipuladas e aquisição de escolas e universidades por fundos bancários.
Se nossos alunos tornaram-se um consumidor de referência, nada melhor do que vender-lhes o truque perfeito, ou seja, educação sem dedicação, resultados sem meios, aulas sem professores, saber sem cultura, permanência sem merenda. Não é um acaso que, junto com o negócio da educação, emergiram métodos magistrais de ensino e de gestões profissionais, que anunciam grandes resultados a custos módicos e em um tempo diminuído. Tudo para conseguir provar ao consumidor que é possível ter boa educação sem ter que pagar por ela, seja em dinheiro ou em dedicação. O golpe, portanto, depende de uma justa combinação, que está diminuindo, entre ingenuidade e desejo ativo de ser enganado.
A vida digital barateou a informação, como se só por isso a experiência de saber se tornasse gratuita. Professores mal pagos e entulhados de normas são gentilmente convidados a tornarem-se administradores de desempenho. Não transmissores de pensamento, muito menos críticos e ainda menos intelectuais. O que não rende, não produz ou então não se contabiliza deve ser encostado no depósito arcaico das ideologias, das ciências humanas e de seus pseudointelectuais. Aqui, o sufixo “pseudo” é obrigatório, afinal, onde já se viu um que não fosse impostor.
O primeiro gesto de Temer é uma síntese e um símbolo dessa atitude: extinguir o Ministério da Cultura e reduzir as verbas previstas para a educação, dois luxos para as atuais circunstâncias. Um ministério de machos incultos e que começa por receber Alexandre Frota, um ator que fala a linguagem da sabedoria popular em matéria de ensino, a voz do bom senso e da praticidade que estaria faltando aos especialistas. Nossa Maria Antonieta continua a dizer: “Qualquer um é melhor do que o que está aí, não é?”.
Mesmo que seja um estuprador confesso, afinal a cultura do estupro é apenas o estupro da cultura. No fim das contas, por que o Bonde do Tigrão seria menos nobre do que Villa-Lobos, o compositor? Por que a complexa hermenêutica bíblica e a controversa história da teologia teriam mais valor do que o fast food temático de uma religiosidade de resultados? Nunca na história deste condomínio Brasil a mediocridade se fez passar tão facilmente por democracia.
Mas a quem realmente interessa a cultura anti-intelectual?
A resposta não vem do jornalismo nem das universidades, não vem das ruas “terceirizadas”, nem vem do Supremo Tribunal Federal. Ela está nas escolas ocupadas e nesses jovens que, como Émile Zola, em 1898, estão dizendo: nós acusamos!
Os intelectuais não desapareceram, eles mudaram de forma. Não são mais indivíduos iluminados e dotados de superpoderes de esclarecimento das massas. São pequenos movimentos coletivos, regidos por aquilo que define um intelectual verdadeiro, que não é a posse e a acumulação de saber, mas o desejo de saber. Uma nova geração que quer boas escolas nas quais embarcar, mais e melhores meios para a aventura do saber, além de comida e água para a longa jornada.
Seu gesto repete o enfrentamento de juízes e de policiais, em uma ação que é política e intelectual, não porque sábia ou informada, mas por que fundada nesse bem de todos nós que é o desejo de mais e de melhor educação. Os efeitos são reais e imediatos. Professores universitários, alunos de escolas particulares, gente de todo canto vêm para as escolas, não para fazer comício, mas para ter aula de verdade. Um ato que mostra, em toda sua minudência, como educação e cultura são o antídoto para o país.
Acusam o discurso do bom e barato, da aula dada pelo filme, do trabalho em grupo e do curso por PowerPoint e Moodle. Acusam que esse discurso só interessa àqueles que já possuem acesso garantido à alta cultura, às viagens de aprendizagem e à educação privilegiada. Acusam esses que, sentados em cima de seu imenso patrimônio de saber e geralmente a serviço da ostentação, continuam a vender o conto da ascensão social apenas pelo crescimento do bolso. Para essa posição, quanto mais cultura industrial e “zueira” melhor. “Tá tranquilo? Tá favorável!”, dirá a nossa Antonieta, mais uma vez.
Quando ingressam na universidade –se pobres, negros ou indígenas– muitas vezes continuam a sentir a exclusão na pele, ainda que não por causa dela. Mudar de classe não é apenas ganhar mais dinheiro e ter acesso ao lugar de ensino, é ser reconhecido e reconhecer as regras da partilha do saber.
Uma educação faz de conta só pode gerar um reconhecimento faz de conta. Apesar de produzido por um truque, o efeito disso é um ressentimento social verdadeiro. A promessa de que a educação muda a vida das pessoas é sentida como enganadora. É para isso que o conto anti-intelectual serve, para produzir uma educação pirata, enquanto os donos do poder continuam a brincar e abusar da original.
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