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ANÁLISE

De 'mama África' a terra marcada por fome: visão sobre continente é míope

Angelique Kidjo posa no tapete vermelho da edição de 2022 do Grammy Awards em Las Vegas, nos Estados Unidos. A cantora do Benin levou o prêmio de World Music. - Maria Alejandra Cardona/Reuters
Angelique Kidjo posa no tapete vermelho da edição de 2022 do Grammy Awards em Las Vegas, nos Estados Unidos. A cantora do Benin levou o prêmio de World Music. Imagem: Maria Alejandra Cardona/Reuters

Especial para o UOL

25/05/2022 04h00

Em 25 de maio de 1963, 32 estados independentes africanos se uniram para fundar a Organização da Unidade Africana (OUA), mais tarde União Africana. Por isso, celebramos nesta quarta (25) o Dia Internacional da África. Mas pergunto a você: o que conhece da África?

É com essa questão que inicio a disciplina de história africana nos cursos de graduação na Universidade Estadual de Feira de Santana, onde leciono. Em geral, as respostas são difusas. Variam entre a visão de uma África atrasada, marcada por guerras, conflitos e fome - resultado de anos de cobertura midiática enviesada para enfatizar tão somente as mazelas do continente - e a mama África, a mítica terra dos ancestrais.

Costumo oferecer um quiz online na primeira aula do curso: os estudantes precisam identificar no mapa do continente oito países cujos nomes aparecem aleatoriamente na tela do computador ou do celular. Enquanto isso, um cronômetro conta o tempo. Mais importante do que o tempo gasto para realizar o desafio, os resultados revelam uma dura realidade: sabemos muito pouco sobre um continente com ligações históricas profundas com o Brasil.

A África no Brasil e o Brasil na África

Por meio do tráfico transatlântico de africanos escravizados, milhões de homens, mulheres e crianças deixaram a África para as Américas. Só o Brasil recebeu 5 milhões de pessoas. Trocando em miúdos, quase 45% dos 10 milhões de africanos que sobreviveram à travessia do Oceano Atlântico a bordo de navios europeus e americanos desembarcaram aqui entre os séculos 16 e 19.

Esses africanos vinham de variadas regiões: Senegal, Guiné-Bissau, Togo, Benim, Nigéria, Congo, Angola e Moçambique. As regiões brasileiras estabeleciam ligações particulares com certas áreas africanas. O Maranhão mantinha contatos intensos com a região da Guiné-Bissau; Bahia e Pernambuco, com o que era conhecido à época como Costa da Mina (Togo, Benim e Nigéria); o Rio de Janeiro, com Angola, que, aliás, foi a principal zona de embarque de escravizados. É possível consultar essas e outras informações sobre a história do tráfico na base de dados Slave Voyages, disponível online em português.

Os reinos africanos, por sua vez, observavam com atenção o que acontecia no Brasil. Quer exemplos? O rei Adandozan, que governou o Daomé entre 1797 e 1818, escreveu a D. João VI, naquela altura príncipe regente de Portugal, sobre a fuga da família real para o Brasil. Durante a independência, um grupo de pessoas de Benguela, uma localidade ao sul de Luanda, capital de Angola, sugeriu unir-se ao Brasil após a separação de Portugal. E o rei de Lagos, na atual Nigéria, foi um dos primeiros a reconhecer a independência brasileira.

A África também foi o local de retorno de africanos libertos. Após a Revolta dos Malês, em 1835, a perseguição das autoridades da Bahia levou os libertos a retornarem à África, algo bastante parecido com o que apresenta o filme "Medida Provisória". Muitos foram deportados compulsoriamente pelo governo baiano; outros migraram com seus próprios recursos para as cidades litorâneas do Togo, Benim e Nigéria, formando comunidades de "retornados" ou "agudás".

Mesmo com o final do tráfico negreiro brasileiro, em 1850, o vaivém transatlântico continuou até o final do século 19. Linhas regulares de vapor ligavam o Brasil ao continente africano e só foram descontinuadas no início do século 20, quando uma política migratória republicana, de teor higienista, passou a impedir a entrada de indivíduos africanos no Brasil.

O continente africano continuou (e continua) como uma referência importante para os movimentos sociais. Vários clubes carnavalescos no final do século 19 e início do século 20 usavam a África como símbolo de identidade: Congos da África, Nagôs em Folia, Chegados da África, Filhos d'África, Lembranças da África, Guerreiros da África e por aí vai. Era uma África imaginada, redescoberta no Brasil, mas não menos significativa. Nos anos 70 do século 20, novamente a África foi - e continua sendo - referência para a criação de blocos afro como o Olodum, Ilê Aiyê, Filhos do Congo, Malê Debalê e outros. Assim como as escolas de samba, que frequentemente recuperam a África em seus desfiles.

amazonas - Edmond Fortier - Edmond Fortier
Guerreiras veteranas do reino de Daomé, também chamadas de "Ahosi" ou "mino", que serviram o rei Beanzin em celebração de 1908; elas eram conhecidas como "amazonas do Daomé".
Imagem: Edmond Fortier

A África além do tráfico, da escravidão e do colonialismo

Sim, o tráfico negreiro é um momento crucial da história da África, mas está longe de ser o seu aspecto mais relevante. Assim como o colonialismo, fenômeno que ganhou seus principais contornos a partir da Conferência de Berlim, entre 1884-1885, que dividiu o continente entre as nações europeias. Alguns podem ter lido ou ouvido falar sobre a brutalidade do governo de Leopoldo II sobre o Congo.

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Retrato da rainha Jinga, dos reinos do Dongo e de Matamba, no século 17
Imagem: National Portrait Gallery London

Mas com certeza muito menos gente conhece as lutas pela independência na África. E, mesmo nesses casos, a história africana não se resume à luta contra a conquista colonial europeia. A África tem uma rica história de impérios, reinos, de migrações, de conexões. Longe de ser um continente isolado do resto do mundo, a África se conectava comercial e culturalmente com a Europa, com a Ásia e com as Américas. Era uma África Global.

Mas poucos ainda conhecem essa história. Quantos de vocês já ouviram falar de Mansa Musa, imperador do Mali no século 14, dono de uma fortuna estimada em trilhões de dólares, considerado o homem mais rico que já existiu? E sobre a grande rainha Jinga, dos reinos do Dongo e de Matamba no século 17? Essa figura histórica governou poucas décadas após Elizabeth I iniciar seu reinado na Inglaterra, e um século antes de Catarina, a Grande, ascender na Rússia. E, apesar dos seus feitos, especialmente a luta pela autonomia política na região hoje pertencente a Angola, ainda não recebe a mesma atenção de outras personagens da história europeia.

Olaudah - Divulgação - Divulgação
O africano liberto Olaudah Equiano escreveu uma autobiografia no final do século 18 que se tornou um best seller e foi peça-chave na campanha britânica pela abolição do tráfico de escravizados
Imagem: Divulgação

Ou Olaudah Equiano, um africano liberto que escreveu uma autobiografia no final do século 18 que se tornou um best seller (nove reedições em cinco anos) e foi peça-chave na campanha britânica pela abolição do tráfico de escravizados?

E as ahosis, as amazonas do antigo e poderoso reino do Daomé (atual Benim), o bravo exército de mulheres que lutou ao lado do rei Behanzin contra a conquista colonial francesa? E os impérios do Mali, de Songhay e de Gana, o império iorubá de Oyó (atual Nigéria) - origem de vários africanos nagôs no Brasil do século 19 - ou o império ashanti (atual Gana)?

Se Nelson Mandela é razoavelmente conhecido, o que dizer do reverendo Desmond Tutu, que assim como Mandela lutou contra o apartheid na África do Sul e recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1984? No campo musical, quem já ouviu o nigeriano Fela Kuti ou a beninense Angélique Kidjo, vencedora do Grammy em 2007 com o melhor álbum de música do mundo? Quantos intelectuais africanos contemporâneos você já leu ou ouviu falar? O que realmente você, leitor/a, conhece da África?

A África no Brasil, hoje

Ações têm sido tomadas para mudar esse cenário de miopia sobre o continente africano. No âmbito educacional, a lei 10.639, de 2003, instituiu o ensino de História da África e afro-brasileira nos currículos escolares. No espaço acadêmico, a publicação da coleção História Geral da África contribuiu para introduzir materiais sobre o continente em língua portuguesa. Com a expansão do ensino de África, as universidades públicas brasileiras têm produzido materiais em diversos campos (História, Antropologia, Sociologia, Geografia, Literatura, Letras) sobre o continente africano. Associações foram criadas para dinamizar os estudos sobre a África. Nas últimas décadas, um número de intelectuais africanas e africanos têm sido publicados no Brasil. No campo da literatura, Paulina Chiziane, Chimamanda Ngozi Adichie, Yaa Gyasi, Chinua Achebe; Achille Mbembe, Valentim Mudimbe e Manthia Diawara na área das ciências sociais e da filosofia.

É pouco. Ainda há uma África a ser descoberta no Brasil. Há um longo caminho a percorrer para tirar a história do continente da obscuridade a que foi lançada pelo racismo. Mas estamos caminhando. Para iniciar a viagem pelo continente africano, sugiro algumas obras:

  • "A Enxada e a Lança" e "Um Rio Chamado Atlântico", de Alberto da Costa e Silva;
  • "O Alegre Canto da Perdiz", de Paulina Chiziane;
  • "Meio Sol Amarelo" e "Americanah", de Chimamanda Ngozi Adichie;
  • "O Caminho de Casa", de Yaa Gyasi;
  • "História da África e do Brasil Afrodescendente", de Ynaê Lopes dos Santos;
  • "O Mundo se Despedaça" e "A Flecha de Deus", de Chinua Achebe;
  • "Necropolítica" e "Crítica da Razão Negra", de Achille Mbembe;
  • "A Invenção da África", de Valentim Mudimbe;
  • "Em Busca da África", de Manthia Diawara.

*Carlos Silva Jr. é integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros