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OPINIÃO

Ação israelense em hospital sugere perfídia e execução

João Paulo Charleaux*

Especial para o UOL

31/01/2024 04h00Atualizada em 31/01/2024 11h47

Os membros das forças especiais israelenses que, nesta terça-feira (30), invadiram o hospital Ibn Sina, em Jenin, no norte da Cisjordânia, disfarçados de médicos e de civis, para matar três combatentes palestinos, podem ter cometido pelo menos dois crimes de guerra que turvam o caráter espetacular das cenas parecidas a um inverossímil filme de ficção.

Imagens do circuito interno mostram o momento em que 12 militares israelenses armados com fuzis e pistolas entram pelos corredores do hospital, vasculhando portas e rendendo pelo menos um funcionário local, que é colocado de joelhos, com as mãos na cabeça. Todos os agentes usam roupas civis, incluindo o chador — tecido negro que cobre todo o corpo, deixando visível apenas o rosto da mulher. Pelo menos dois membros do grupo estão vestidos como médicos ou enfermeiros; sendo que um traz consigo, sob o braço, uma cadeira de rodas dobrada.

O grupo de militares israelenses escolheu disfarces de civis, incluindo mulheres, e de pessoal de saúde para acobertar a ação que culminou na morte de três palestinos, sendo o mais conhecido deles Mohammad Jalamneh, líder das Brigadas Al-Qassam, que é um braço do Hamas. Dois outros homens que estavam com ele também foram mortos a tiros e dois membros da equipe médica do hospital Ibn Sina foram levados presos na saída.

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A ação foi considerada um sucesso por Israel, mesmo tendo elementos que indicam a possibilidade de terem ocorrido pelo menos duas graves violações às leis da guerra, chamadas de Direito Internacional Humanitário ou Direito Internacional dos Conflitos Armados.

Essas leis foram criadas pela primeira vez em 1864 e, desde então, vêm sendo aperfeiçoadas para regular meios e métodos de combate, além de proteger certas categorias de pessoas, como os civis, em situações de conflito armado. Tanto Israel como o Hamas são obrigados a respeitar essas normas, mas o conflito na região é marcado por reiteradas violações de ambos os lados.

No caso desta operação no hospital de Jenin, o primeiro crime que pode ter sido cometido é o de perfídia: quando uma força armada regular ou um grupo armado organizado se disfarça de pessoal de saúde para conduzir operações militares ofensivas. Isso é proibido pelo direito da guerra, que trata hospitais, ambulâncias e pessoal médico como pessoas e bens protegidos.

Fazer uso dessa proteção outorgada ao setor de saúde para atacar alguém é proibido porque passa a colocar sob suspeita e sob risco de morte todo o restante do pessoal médico, que pode começar a ser visto com desconfiança pelas partes. Quando essa confusão de identidade ocorre, todas as equipes e os locais sanitários passam a ser tratados como alvos potenciais, o que deixa a população civil ainda mais privada de assistência.

O segundo crime que pode ter havido em Jenin é a execução sumária de combatentes feridos, enfermos, rendidos ou capturados. Pelo menos um dos homens mortos na ação estava fora de combate, de acordo com informações do lado palestino. O direito trata combatentes como alvos legítimos; eles podem ser mortos em combate. Porém, quando já não estão engajados ativamente nas hostilidades porque estão internados, sedados, amputados e doentes, devem ser poupados. No máximo, podem ser capturados.

Matar essas pessoas à queima-roupa pode constituir um crime de execução sumária, o que, mesmo na guerra, é ilegal.

Determinar se de fato houve crime de guerra é função para juízes e tribunais. Antecipar juízo é sempre um risco. Porém, nas cartilhas e manuais do direito internacional, o exemplo clássico de crime de perfídia é exatamente esse tipo de operação realizada por Israel, e captada em vídeo pelo sistema de segurança interna do hospital.

Do lado contrário, combatentes do Hamas também se misturam deliberadamente ao pessoal médico, aos hospitais e às ambulâncias. Não há nada no direito que impeça os membros do grupo armado palestino de receberem tratamento em hospitais civis ou serem evacuados em ambulâncias — pelo contrário, todo combatente, seja quem for, tem esse direito —, mas eles não podem em hipótese alguma usar essas unidades protegidas como esconderijos, cativeiros ou paióis e arsenais, pela mesma razão que os israelenses não podem se disfarçar de médicos: ambos expõem pessoal médico protegido e civis a riscos inadmissíveis.

O uso pérfido das proteções outorgadas pelo direito não é tão incomum quanto parece: em 2011, forças americanas se disfarçaram de agentes de saúde em campanha de vacinação para localizar o esconderijo de Osama bin Laden em Abbottabad, no Paquistão. Os falsos médicos e enfermeiros colheram em suas seringas material de DNA de parentes do líder da Al-Qaeda. A ideia era conferir a identidade e certificar-se de que o alvo de fato estava naquela casa, com a família.

Organizações humanitárias alertaram para o efeito negativo dessa falsidade, que é o fato de governos e grupos armados, acautelados pelo risco de serem enganados, passarem a impedir campanhas de saúde no futuro, com temor de que seja coisa da CIA. Os prejudicados são sempre os civis, sobretudo as crianças.

Não houve consequências para os americanos envolvidos na ação de Abbottabad, como não deve haver também para os militares israelenses e as autoridades políticas engajadas nessa ação na Cisjordânia. Não estão dadas as condições políticas para esses julgamentos.

Além do mais, as medidas ditadas pela Corte de Haia na sexta-feira (26) dizem respeito apenas à Faixa de Gaza, não à Cisjordânia. Portanto, um eventual crime de perfídia cometido por Israel no hospital Ibn Sina não pode ser considerado, ao pé da letra, uma afronta à decisão em si.

Entretanto, genocídio -- crime do qual a África do Sul acusa Israel em Haia -- é algo que pode estar sendo cometido contra o "grupo palestino" como tal, não contra um território geográfico em particular. Logo, mesmo violações às regras da guerra cometidas na Cisjordânia e não em Gaza podem vir a ser juntadas ao processo, que ainda levará anos para chegar a um veredito.

João Paulo Charleaux é jornalista, autor da série "As Regras da Guerra", publicada pela Folha de S.Paulo, e do livro "Ser Estrangeiro - Migração, Asilo e Refúgio ao Longo da História", publicado selo Claro Enigma, da Cia das Letras. Trabalhou durante sete anos (2002-2009) no CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha). Foi editor assistente de Internacional no jornal O Estado de S. Paulo e correspondente em Paris do Nexo Jornal.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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