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O dia em que Silvio contou para Lula que cogitou contratar âncora argentino

Silvio Santos não estava em sua ampla sala quando lá entramos, levados por José Roberto Maluf, então vice-presidente do SBT. A visita estava marcada há tempos, várias vezes remarcada, por dificuldades para conciliar as agendas do apresentador e de Lula, em meio à campanha presidencial de 2002.

De repente, abre-se uma porta no fundo da sala, onde fica o banheiro, e Silvio sai de lá com aquele sorrisão aberto, que era sua marca, como se estivesse subindo no palco para mais um programa de domingo.

"Ha, ha, ha", então vocês vieram mesmo, que coisa boa... O de barba eu já conheço, mas esse outro aí quem é, Maluf?"

Era o deputado José Dirceu, que já tinha sido candidato a governador de São Paulo, agora comandando a terceira campanha de Lula a presidente, e figura lendária da esquerda brasileira.

Lula se divertiu com a cena, mas Dirceu, do alto do seu ego robusto, e Maluf, o preocupado anfitrião, ficaram meio sem graça. O que mais poderia acontecer neste inusitado encontro entre personagens tão distintos?

Assim era o grande empresário e artista Silvio Santos, com a sem-cerimônia de quem vive em seu mundo de fantasia particular, movido pelas palmas do auditório, achando graça de tudo, alheio à vida política, preocupado apenas com seus negócios e programas, o Ibope e a Bolsa.

Sem mais, ele foi contando para Lula o problema que o afligia naquele momento: encontrar um âncora para o principal jornal da emissora.

"Não tá fácil, seu Lula. Eu cheguei a oferecer um caminhão de dinheiro para a Ana Paula Padrão largar a Globo e vir trabalhar com a gente, mas ela não quis nem conversa..."

Ficamos um olhando para o outro, sem saber o que dizer, quando ele emendou a outra ideia que teve.

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"Outro dia, eu vi um fantástico âncora na televisão argentina e pensei que ele poderia ser a pessoa certa para o nosso telejornal. Boa estampa, voz firme, seria o maior sucesso. O problema, Lula, é que ele não fala português..."

Jornalismo nunca foi uma prioridade da emissora do ex-camelô carioca, que chegou a se apresentar em circos no início da carreira, antes de chegar à Globo, onde alugava horário para apresentar o próprio programa e vender seu peixe do Baú da Felicidade. Silvio sempre se interessou mais em divertir a plateia, embora tenha produzido bons programas jornalísticos, como o SBT Repórter, onde cheguei a trabalhar, na equipe original.

Caprichamos, sob a direção de Mônica Teixeira, na produção de um piloto para mostrar ao patrão. Silvio não gostou do que viu.

"Tá muito bom, alto padrão, boas reportagens, bem acabado, mas não é para o nosso canal (ele chamava sua TV de canal). Ficaria bem na Globo, não aqui. Para o meu público, tem que ser alguma coisa mais popular, mais simples entenderam?"

Durante aquela divertida hora de conversa, não houve espaço para falar dos problemas brasileiros e das propostas do candidato a presidente, como acontecia nos encontros com outros empresários da mídia. Silvio não criou um personagem. Era ele mesmo full-time, altamente profissional, sem deixar de brincar com tudo e todos, com incrível capacidade para saber o que o seu público queria ver, uma intuição e empatia raras, que fizeram seu sucesso e sua fortuna por mais de seis décadas no ar.

Anos depois, já com Lula presidente, a direção do SBT, sem Silvio, pediu uma audiência, para falar dos planos da empresa e manifestar "irrestrito apoio ao governo", como me falaram. Não queriam pedir nada, garantiram. Silvio sempre apoiou todos os governos, desde a ditadura militar, que lhe deu a concessão para ter sua própria emissora.

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Já quase no final da audiência, depois de uma longa conversa de cerca lourenço, sem ficar claro qual o motivo que os trouxe ao gabinete, um diretor foi direto ao assunto. "Sabe, Lula, a gente só veio pedir para o senhor falar com o presidente do BNDES porque precisamos de financiamento para nossos projetos."

Lula depois reclamou comigo, que era secretário de imprensa, pelo tempo perdido nesta reunião. "Os caras vêm aqui só pra que eu marque um encontro com o Lessa (Carlos Lessa, então presidente do BNDES)? Por que não pediram direto pra ele?"

Dono da segunda maior rede de televisão do pais e de mais de 30 empresas, Silvio Santos era uma lenda viva, com uma trajetória de vida tão improvável e singular quanto a de Lula, "o de barba", dois autodidatas intuitivos que saíram do nada e chegaram ao poder, cada um no seu quadrado.

Vida que segue.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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