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Precarização da vida é motivo do desencanto da periferia nas eleições

Os resultados das últimas eleições, principalmente na cidade de São Paulo, levantaram muitas perguntas sobre a periferia e o voto periférico. Ela sempre votou e continua a votar na esquerda? O fenômeno do "pobre de direita", que não é novo, está ditando os resultados?

Na periferia, principalmente nos bairros mais pobres, há uma tendência histórica de voto à esquerda. Foram os votos da periferia de São Paulo que garantiram as vitórias de Erundina, Marta e Haddad, além das expressivas votações em Lula e Dilma. Também foram os votos da periferia que derrotaram Bolsonaro em 2022.

É necessário lembrar que "esquerda" não é apenas uma turma intelectual de classe média externa à periferia. Muito além do período eleitoral, muita gente de quebrada é de esquerda. Desde movimentos populares a coletivos culturais, passando por sindicatos de trabalhadores e artistas, na periferia sempre se lutou e se reivindicou por igualdade e justiça social. Assumindo que a periferia é parte da esquerda, não dá pra afirmar que a esquerda não tem nada a dizer a periferia. É um contrasenso. A esquerda não morreu e continua sendo um farol importante para um mundo mais justo.

Tiaraju Pablo D'Andrea autor de "40 Ideias de Periferia".
Tiaraju Pablo D'Andrea autor de "40 Ideias de Periferia". Imagem: Arquivo pessoal

No entanto, não é certo afirmar que a periferia só vota na esquerda. Afinal, desde sempre teve gente na quebrada que apoiou a ditadura militar e votava no Maluf.

O mais realista é dizer que a periferia é um território em disputa constante.

O resultado de uma eleição não encerra toda a verdade de como as pessoas pensam, mas são um indício. O mais importante é entender as ideias que circulam na sociedade e, hoje, é verdade dizer que as ideias da direita têm maior abrangência.

Para entender esse processo é necessário voltar algumas décadas no tempo.

A década de 1980 foi marcada pela redemocratização do Brasil. Um dos objetivos do movimento que derrubou a ditadura era fazer o Estado atender as demandas dos mais pobres. Nesse sentido, a universalização da política pública tinha papel central. A luta era por educação, saúde, moradia e transporte para todo mundo - e de graça.

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Essa época marca também uma reorganização dos trabalhadores. Cabe lembrar as greves que ajudaram a derrotar a ditadura e criaram lideranças políticas ainda não superadas, como é o caso do presidente Lula. Fundado em 1980, o Partido dos Trabalhadores é fruto desse processo social e a esquerda no Brasil cresceu defendendo essas bandeiras: a democracia, a política pública e a melhoria das condições de vida do trabalhador.

No entanto, essa aposta durou pouco tempo. Já nos anos 1990 passa a ser implementado no Brasil o sistema neoliberal. Seu intuito principal era aprofundar o capitalismo e concentrar renda no topo da pirâmide social. Para tanto, era necessário destruir duas coisas: as políticas públicas e a organização dos trabalhadores. Juntamente a essas ações práticas, houve toda uma propaganda ideológica.
Fazendo um balanço do Brasil dos últimos trinta anos, nota-se que o projeto neoliberal se aprofundou e ganhou cada vez mais espaço.

Mas o que isso tem a ver com as periferias e o resultado das eleições? Tudo.

Nas últimas décadas, mesmo com a esquerda tendo ganho eleições, não conseguiu implantar totalmente suas bandeiras políticas. Por um lado, é verdade, cometeu seus equívocos. Por outro lado, percebeu que a chamada arena institucional tinha uma série de limitações. O poder, de fato, é o econômico, que está nas mãos dos grandes banqueiros e empresários. Com o tempo, as políticas implementadas pelos governos de esquerda passaram a ser cada vez mais tímidas, mudando pouco a vida concreta da população.

Essa sensação de que a vida não muda tem, pelo menos, duas consequências: a primeira delas é fazer as pessoas não acreditarem nas eleições. Disso decorre o alto número de abstenções ou de votos para políticos que prometem acabar com o sistema.

A segunda consequência é quando a população passa a não acreditar mais na capacidade da política pública de melhorar a vida: falta remédio no posto, a escola é precária e o transporte público lotado. Neste ponto, vale uma ressalva: as limitações das políticas públicas também são consequências das privatizações e da diminuição do Estado.

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Há então um ciclo vicioso: o Estado é desmontado; a política pública se precariza; a população passa a ter raiva da política pública; a população fica mais sensível ao discurso de que o serviço privado é melhor, e esse discurso fomenta a prática de desmonte do Estado. E se volta ao ponto inicial.

Não é à toa que a precarização da política pública foi acompanhada do surgimento de uma série de serviços de saúde e de educação para pobres. A consulta é barata, mas é paga. O pobre, aos poucos, deixa de ser cidadão e passa a ser cliente. Os direitos sociais são substituídos pelos direitos do consumidor.

O discurso neoliberal, presente em todos os cantos, tem eficácia porque há uma razão prática: de fato, a política pública funciona mal. No entanto, nada garante que em uma sociedade onde tudo seja privatizado as coisas funcionem melhor. Os indícios dizem que não, basta observar os seguidos episódios de falta de luz na cidade. Basta observar como funcionam mal as linhas de trem privatizadas. Os mais prejudicados são os mais pobres.

Nesse debate, os principais candidatos pensam mais ou menos assim: Boulos acredita na política pública. Nunes defende a iniciativa privada. E Marçal vai dizer pra você mesmo resolver o problema. Em termos mais gerais, o enfraquecimento da política pública enfraquece o discurso da esquerda.

Para reverter essa dinâmica privatista, os governos de esquerda teriam que fazer a população confiar nos serviços. Seria necessário muito investimento, mas políticas públicas de austeridade levadas a cabo por esses mesmos governos de esquerda não ajudam a reverter o quadro.

O fato é que as novas estruturas da sociedade também movem as peças eleitorais.

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A outra ponta dessa dinâmica está no mundo do trabalho. Gerações mais velhas acreditaram no trabalho fixo em um mesmo local com direitos sociais, aposentadoria e salário todo mês. Essa possibilidade de renda permanente, mesmo que pouca, possibilitou sonhos a longo prazo. A compra de uma casa própria paga em parcelas só é possível se há salário todo mês. Essa estrutura de sociedade baseada no trabalho assalariado foi sendo desmontada. As reformas trabalhista e da previdência diminuíram os direitos sociais do trabalhador assalariado e a possibilidade de se aposentar. Também diminuiu a quantidade de pessoas com trabalho regido pela CLT.

Quem ainda usufrui da CLT está descontente, pois ganha pouco e se sente infeliz no trabalho. Como o setor formal não consegue absorver toda a mão de obra, muita gente recorre à informalidade. Sobreviver é preciso. É a tiazinha que faz bolo pra vender, a manicure, o motoboy entregador e o motorista de aplicativo. Chamados de empreendedores, são, na verdade, trabalhadores informais, sem direitos e precarizados. O discurso da direita pega mais forte aqui, quando afirma que quem impede as pessoas de subirem na vida é o Estado que cobra imposto. O argumento é falacioso, mas reverbera.

O desejo de ascensão social também é mais forte nesse setor que "está fazendo seu corre". São nessas brechas que o discurso de Marçal penetra. O trabalhador informal mal chamado de "empreendedor" ainda se move sob a ética do trabalho, ou seja, acredita que o esforço será recompensado.

No entanto, hoje, há um outro ator nesse cenário: aquele que percebeu que a ascensão social, e mesmo a sobrevivência, por meio do trabalho é uma farsa.

Disso decorre as apostas em Bets, no Jogo do Tigrinho e similares. Há que se resolver o aqui e o agora. Se ganhar no jogo, realiza o sonho. Não dá pra esperar juntar dinheiro mês a mês. Neste ponto, também há um espelhamento no discurso de Marçal, que fez dinheiro por meio de arranjos na internet, muito mais do que trabalhando sol a sol como informal, e muito menos como CLT.

A esquerda, apegada à ética dos direitos trabalhistas, não está conseguindo dialogar com esta importante fração da classe trabalhadora. O mundo da CLT nunca foi bom, o trabalhador sabe disso. No entanto, as soluções para um mundo pós-CLT são piores.

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De verdade, o mundo do trabalho que a gente quer ainda não existiu: trabalhar poucas horas; ganhar bem; possuir direitos sociais; ter tempo para a família, para o lazer e o descanso; não agredir o meio ambiente; não precisar de chefe, patrão ou dono de empresa.

Enquanto esse dia não chega, o que a gente está vendo é pobre brigando com pobre. O trabalhador informal acusa o CLT de "privilegiado". O CLT acusa o trabalhador informal de não querer pagar imposto.
Uma coisa une: na quebrada, tá todo mundo ferrado.

*Tiaraju Pablo D'Andrea é morador de Itaquera e coordenador do CEP (Centro de Estudos Periféricos), formado por pesquisadores, moradores das periferias e vinculado ao campus zona leste da Unifesp.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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