Protesto durante posse no RS joga luz em hino estadual considerado racista
Durante cerimônia de posse da Câmara Municipal de Porto Alegre, na última sexta-feira (1º), cinco parlamentares do PSOL, PT e PCdoB protestaram contra o hino do Rio Grande do Sul.
Componentes da chamada bancada negra, eles se recusaram a cantar a canção devido a um trecho que diz que "povo que não tem virtude acaba por ser escravo". Eles consideram a frase racista.
Acadêmicos consultados pelo UOL concordam com os políticos, mas o Movimento Tradicionalista Gaúcho refuta a análise. A atitude incomodou outros vereadores.
Matheus Gomes (PSOL) disse no plenário que "não tem obrigação nenhuma" de cantar o verso. Ao UOL, reiterou que a letra é racista.
O hino foi elaborado em um contexto de guerra, no qual a única forma de escravização era sobre a população negra, que lutou na guerra sob promessa de liberdade, que não tiveram.
Matheus Gomes, vereador de Porto Alegre (PSOL)
Gomes lembrou ainda que a UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) deixou de tocar o hino pelo trecho. Por meio da assessoria, a instituição confirmou a decisão, de 2018, tomada "após reunião com diretores das unidades, em função de a execução do hino estadual não ser obrigatória em instituições federais".
Como o hino foi criado?
O hino foi escrito em 1838, durante a Guerra dos Farrapos (1835-1845), que tinha caráter separatista. A abolição da escravatura só ocorreu em 1888.
A canção foi criada quando a cidade de Rio Pardo (RS) foi tomada por revolucionários contrários às regras do Império, segundo explica ao UOL o professor do departamento de história César Guazzeli, da UFRGS. "Encomendada" a uma banda da cidade ocupada, foi escrita de um dia para o outro, mas só foi oficializada em lei como hino rio-grandense em 1966. Para Guazzeli, a música é "carregada de racismo".
Nós tivemos sociedade escravista aqui no Rio Grande do Sul e, como o resto da sociedade brasileira, vivia e se fundamentava da escravidão. Há uma lenda de que o Rio Grande do Sul se constituiu em trabalho livre, mas isso não é verdade. Em 1800, foi a terceira província em importação de escravos, só perdendo para a Bahia e o Rio de Janeiro
César Guazzeli, professor do departamento de história da UFRGS
Na época do conflito, os escravos ganhavam a alforria para lutar como lanceiros. Porém, de acordo com o historiador, a maior parte deles acabou sendo morta no Massacre dos Porongos, um ano antes do fim da revolução.
Segundo Guazzeli, a morte de mais de 600 negros teria sido planejada como forma de evitar fugas para o Uruguai ou a Argentina, que haviam acabado com a escravatura em 1842 e 1813, respectivamente, e assim impedir a formação de um Exército negro e armado.
Para o sociólogo e professor da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) André Salata, o hino rio-grandense reflete a maneira como a sociedade brasileira encarava a questão racial.
"A gente sempre gostou de acreditar no mito da democracia racial. Esse questionamento do hino é um sintoma de mudança da sociedade brasileira", afirma.
"O hino do Rio Grande do Sul gira em torno da Revolução Farroupilha. Não era um conflito que tocava na questão racial. Mas a letra pode ser interpretada como uma culpabilização dos povos negros, por mais que não fosse a intenção original", diz Salata.
No passado, o hino já havia sido alterado, tendo um trecho excluído. Em 1966, foi eliminado o verso "Entre nós, reviva Atenas, para assombro dos tiranos. Sejamos gregos na glória, e na virtude, romanos".
A remoção foi pedida pelo deputado estadual Getúlio Marcantonio, sob o argumento de que muitas pessoas não viam conexão com o povo gaúcho e deixavam de cantá-lo.
Vereadora e movimento tradicionalista defendem hino
Na sessão de posse, a vereadora Comandante Nádia (DEM) disse que os colegas contrários ao hino deveriam "sair da sala".
"Atitudes dessa forma desrespeitosas, de indisciplina, não estão [permitidas] aqui dentro dessa Câmara Municipal de Vereadores. Nós temos, sim, que fazer a correção dos atos para que isso não aconteça dentro da Câmara que legisla Porto Alegre."
O MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho) disse que o trecho "não tem nada de discriminatório". Em comunicado, assinado pela diretora Julia Graziela Azambuja, que se autodeclarou negra, a entidade salientou que a frase "diz respeito a uma submissão da então Província de São Pedro ao Império, no período da Revolução Farroupilha".
Para o movimento, ao se prender a esse tipo de polêmica, a comunidade negra "perde um precioso tempo de ser protagonista de uma nova história que cabe aos próprios negros e brancos escreverem".
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