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Ditadura militar apresentou aos EUA plano de invasão do Uruguai em 1971

O general-presidente Emílio Garrastazu Médici e o presidente Richard Nixon queriam evitar que a esquerda chegasse ao poder no Uruguai em 1971 - Yasmin Ayumi
O general-presidente Emílio Garrastazu Médici e o presidente Richard Nixon queriam evitar que a esquerda chegasse ao poder no Uruguai em 1971
Imagem: Yasmin Ayumi

Eduardo Reina

Colaboração para o UOL, em São Paulo

29/10/2021 04h00Atualizada em 29/10/2021 15h19

Documentos do governo dos Estados Unidos confirmam e revelam detalhes da chamada "Operação 30 Horas", o plano da ditadura militar brasileira de invadir o Uruguai em novembro de 1971, caso a eleição presidencial do país vizinho fosse vencida pela coalização de esquerda, a Frente Ampla.

A mesma documentação aponta ainda que o Brasil, então governado pelo general Emílio Garrastazu Médici, ajudou a fraudar o pleito uruguaio naquele ano.

O UOL analisou documentos secretos produzidos pelo Departamento de Estado dos EUA à época, por meio de embaixadas e consulados no Brasil e países da América do Sul. Telegramas, relatórios, memorandos mostram como era acompanhada a situação política nos países do Cone Sul.

Fundada em 5 de fevereiro de 1971 sob a liderança do general Líber Seregni, a Frente Ampla só obteve 18% dos votos na eleição vencida por Juan María Bordaberry (41%). Quase dois anos depois, Bordaberry deu um golpe de estado, com o apoio dos militares uruguaios, iniciando uma ditadura que durou até 1985.

Procurado a se pronunciar a respeito do assunto, o Ministério da Defesa brasileiro não respondeu aos questionamentos do UOL.

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Juan Maria Bordaberry (esq.), presidente do Uruguai , cumprimenta Emílio Garrastazu Médici em março de 1974, em Brasília
Imagem: Folhapress

Pedido do presidente uruguaio

A intervenção brasileira foi um pedido do próprio presidente uruguaio Jorge Pacheco Areco, do Partido Colorado. O plano foi apresentado e contava com o apoio do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon.

Documentos estadunidenses que vieram a público em anos anteriores já revelavam que Nixon e Médici concordaram em golpear países governados pela esquerda, a exemplo do Chile de Salvador Allende e da Cuba de Fidel Castro.

A invasão do Uruguai foi batizada no Brasil como Operação 30 Horas, em referência ao tempo que as tropas brasileiras demandariam para chegar e ocupar a capital Montevidéu a partir da fronteira com o Rio Grande do Sul.

Três meses antes das eleições que definiriam o novo presidente uruguaio, documento da embaixada dos EUA em Montevideu, de 25 de agosto, já falava sobre "possíveis planos brasileiros de ação no Uruguai para impedir a Frente Ampla de assumir o controle, incluindo o uso de forças armadas".

Informativo secreto da embaixada dos EUA em Buenos Aires ao Departamento de Estado em Washington, de 27 de agosto de 1971, relata que a "Argentina não tem planos de intervir nas eleições, mas apoiaria um golpe para reintegrar o atual presidente Pacheco se a esquerdista Frente Ampla vencesse".

Em 20 de julho de 1971, o embaixador argentino no Rio de Janeiro, Osiris Villegas, já confirmava o plano de invasão do Uruguai.

O objetivo da invasão era evitar que o Uruguai tivesse um governo de esquerda, como já ocorria no Chile, com a eleição de Salvador Allende em setembro de 1970. Os militares brasileiros, incentivados pelo presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, deveriam enfrentar mobilização sindicalista e estudantil, além do movimento guerrilheiro Tupamaro, que no ano anterior havia sequestrado o chefe do programa de Segurança Pública dos EUA no Uruguai, Dan Mitrione (que foi morto) e o cônsul do Brasil Aluysio Dias Gomide —libertado após sete meses de cativeiro e pagamento de resgate pela família.

De acordo com relatório confidencial do embaixador dos EUA Willian Rountree, a ajuda brasileira aos militares do Uruguai, após o golpe, "se daria na forma de armas, treinamento, assistência financeira etc.".

O plano ofensivo organizado pelos brasileiros envolvia diretamente Médici, o chefe do gabinete militar, general João Baptista Figueiredo, e o ministro do Exército, general Orlando Geisel, além de outros comandantes militares.

À época, o Uruguai passava por um momento delicado. Vivia uma crise social, política e econômica. Médici conhecia muito bem a situação do Uruguai —sua mãe nasceu em Paysandú, no interior uruguaio— e desenvolvia ação atrelada aos planos dos Estados Unidos desde que chefiou o Serviço Nacional de Informações (SNI), de 1967 a 1969. Estava alinhado à "Doutrina Nixon".

O golpe de estado no Uruguai se daria sob o comando do general Breno Borges Fortes. As tropas brasileiras chegaram a entrar em prontidão em novembro de 1971. Seriam deslocados contingentes dos quartéis de Bagé, Santana do Livramento, Chuí, todas cidades situadas na fronteira com o Uruguai, e Uruguaiana, na fronteira com a Argentina.

Médici determinou que o III Exército, com sede em Porto Alegre, hoje denominado Comando Militar do Sul, preparasse a invasão do Uruguai.

As tropas brasileiras sairiam de Porto Alegre, Uruguaiana, Santana do Livramento e de Bagé. Cruzariam as fronteiras em direção a Montevidéu e tomariam até mesmo a então maior hidrelétrica existente no país, Rincón del Bonete, em Paso de Los Toros, que abastece a capital uruguaia.

O golpe deveria ser consumado rapidamente, para evitar represálias internacionais.

Militares brasileiros falaram sobre a invasão

Ao longo dos anos, militares brasileiros que estiveram envolvidos no planejamento da invasão do Uruguai deram seu testemunho dos fatos.

A Operação 30 Horas foi chamada dentro dos quartéis brasileiros como Operação Charrua, conforme descreve o tenente Marco Pollo Giordani no livro "Brasil Sempre".

"Participei da preparação à 'Operação Charrua'. Íamos 'invadir' o Uruguai, já quase em mãos dos Tupamaros. A vibração era tanta entre nós que parecíamos viver um momento grandioso. A 'Operação Charrua' só não foi desencadeada porque os uruguaios resolveram o problema através das urnas", escreveu Giordani, que integrou a 2ª Seção (serviço secreto) do Comando Militar do Sul.

O nome Operação Charrua descrito pelo tenente Giordani se refere à 2ª Brigada de Cavalaria Mecanizada de Uruguaiana, a Brigada Charrua. Os charrua eram um povo que habitava a região dos pampas do Rio Grande do Sul, do Uruguai e da Argentina.

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Médici e Nixon planejaram derrubar governos de esquerda na América Latina no começo dos anos 1970
Imagem: Reprodução

Testemunha da organização do golpe militar, Giordani, que depois se tornou agente do DOI-Codi gaúcho, também ficou por 15 dias no quartel do Exército em Porto Alegre aguardando o início da ofensiva.

O coronel Dickson M. Grael, pai dos velejadores e medalhistas olímpicos Torben e Lars Grael, servia em Uruguaiana como comandante do 22º Grupo de Artilharia de Campanha e chegou a acompanhar Arthur Moura, adido militar dos Estados Unidos no Brasil, em viagem a terras uruguaias para observar a situação local no início de 1971.

O general Moura, segundo relatos de Grael, fez fotografias de grupos de Tupamaros acampados às margens do rio Uruguai, próximo da cidade de Bella Unión. "Juntamente com o coronel Newton Álvarez Rodriguez, representante do Estado-Maior do Exército, descemos o rio Uruguai de onde o militar americano pôde ter visão nítida (e fotografar) um acampamento de militantes de esquerda", descreve Grael no livro "Aventura, Corrupção e Terrorismo: à sombra da impunidade", publicado em 1985. Grael morreu em 2011.

"No início de 1971, fui designado para fazer os primeiros estudos das diretrizes a serem seguidas pela divisão, buscando participar de um plano de intervenção militar abrangente no Uruguai, caso a Frente Ampla ganhe as eleições. A Segunda Divisão de Cavalaria, comandada pelo general Jacobus Pelegrinni, estava diretamente subordinada ao general do Exército Breno Borges Fortes, comandante do III Exército", escreve no livro.

Grael conta ainda que nos dias anteriores às eleições uruguaias de 1971, acompanhou três oficiais da Força Aérea Brasileira, vindos do Rio de Janeiro, com a missão de "obter informações para uma provável intervenção militar no Uruguai."

O general Ruy de Paula Couto, que exerceu a função de adido oficial militar da Embaixada do Brasil em Montevidéu entre 1967 e 1969, disse, em entrevista à TV no Rio Grande do Sul em 2007, que foi o próprio Pacheco Areco quem tramou a interferência brasileira no Uruguai. A entrevista teve pouca repercussão em território brasileiro.

Num ato de recuo, Couto fez nota dúbia depois da declaração, solicitando "retificação por não haver feito tal revelação". "Por mais de uma vez afirmei que nada houve de interferência com a eleição. Tratava-se, isto sim, de preocupação com a agitação promovida pelos Tupamaros. E a solicitação não se referia a invasão que, como citei, era balela. O caso restringia-se à organização de um serviço de inteligência e possível cooperação do nosso 3º Exército, ao longo da fronteira sul como afirmei, com o exército daquele país irmão, cujos detalhes desconhecia", disse.

Em 2007, o governo uruguaio chegou a distribuir nota oficial dizendo que "a invasão de tropas brasileiras ao nosso país em 1971 —solicitada pelo presidente de então, Jorge Pachecho—, no caso da Frente Ampla vencer as eleições nacionais, as Forças Armadas nacionais não teriam resistido. Da mesma forma, documentos recentes divulgados pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos confirmam a intenção dos militares brasileiros".

Fraude na eleição

O Brasil ajudou a fraudar as eleições uruguaias em 1971. A afirmação está em relatório de Carlos Osorio, diretor do Projeto de Documentação Cone Sul do Arquivo de Segurança Nacional, com sede nos Estados Unidos, e da Universidade George Washington. O arquivo guarda documentos do Departamento de Estado dos Estados Unidos da época das ditaduras, nos anos 1960, 1970 e 1980.

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Médici visita Nixon em Washington, em dezembro de 1971
Imagem: Associated Press

Os documentos da coleção de Nixon no Arquivo Nacional dos EUA revelam que o então presidente norte-americano admite que o "Brasil ajudou a fraudar as eleições uruguaias". A informação, segundo os papeis, foi feita em reunião com o então primeiro-ministro britânico Edward Heath.

Os registros do Departamento de Estado dos EUA e da Agência para o Desenvolvimento Internacional (AID) no Uruguai —15 documentos contidos no Projeto de Documentação do Cone Sul do Arquivo de Segurança Nacional— mostram a relação dos EUA, Brasil e Uruguai e como o governo dos EUA tentou impedir uma vitória eleitoral da Frente Ampla no Uruguai.

Duas semanas depois das eleições uruguaias de novembro de 1971, o general Médici se reuniu com Richard Nixon em Washington. Os encontros entre os dias 7 e 9 de dezembro tiveram as participações do conselheiro do Conselho de Segurança Nacional Henry Kissinger, do secretário de Estado William Rogers e de Vernon Walters, adido militar, que depois viria a ser vice-diretor da CIA (Agência Central de Inteligência), entre 1972 e 1976.

"Nossa posição é apoiada pelo Brasil, que é, afinal, a chave para o futuro. Os brasileiros ajudaram a fraudar a eleição uruguaia... Há forças em ação que não estamos desencorajando", diz o memorando secreto de Henry Kissinger sobre a reunião entre Nixon e Heath, em 20 de dezembro de 1971.

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O ex-ditador Juan Maíra Bordaberry cumpriu pena no Uruguai por responsabilidade por mortes e desaparecimento de opositores políticos durante o período de exceção.
Imagem: France Presse-AFP

Depois de assumir a presidência, Bordaberry exterminou o movimento Tupamaro. Morreu em 2011, aos 83 anos, em prisão domiciliar. Cumpria pena por responsabilidade por mortes e desaparecimento de opositores políticos durante o período de exceção.

A Frente Ampla venceria uma eleição presidencial no Uruguai pela primeira vez no ano de 2004, com Tabaré Vázquez. Ele seria sucedido pelo ex-tupamaro José Pepe Mujica.

Errata: este conteúdo foi atualizado
O presidente uruguaio Juan María Bordaberry não era militar. O texto foi corrigido.