Decreto regula força policial, mas não muda realidade, dizem especialistas
O decreto publicado pelo presidente Lula (PT), nesta terça (24), define novas regras para o uso da força por policiais e proíbe o uso das armas de fogo em circunstâncias que não representam riscos aos profissionais de segurança regula políticas de segurança pública.
Especialistas ouvidos pelo UOL, porém, afirmam que as normas não devem causar mudanças nas realidades dos estados.
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O que aconteceu
Normas são avaliadas por especialistas como forma de padronizar políticas de segurança pública. "Não acho que esse decreto vai mudar a realidade de uma forma tão abissal, mas é importante que o Governo Federal, ele comece a falar um pouco sobre isso, ele comece a lidar por um assunto que é um assunto tão relevante."
Muito do que está colocado no decreto está colocado nos protocolos das polícias. A polícia não pode atirar a esmo, a polícia não pode atirar sem que haja uma necessidade efetiva. A lei, embora não tenha um poder de forçar as polícias a atuarem dessa forma, tem o poder de sensibilizar a sociedade e se mais um instrumento legal para cobrar instituições policiais.
Rafael Alcadipani, professor da FGV-SP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Decreto não traz nenhuma novidade, diz Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. Segundo ela, as novas regras são uma atualização de uma portaria de 2010, que também tratava do uso da força policial. "Foi criado um grupo de trabalho com representantes de diferentes polícias do governo, da sociedade civil, para fazer essa atualização", afirma ela. "A publicação no formato de um decreto é um pouco mais forte do que se fosse uma portaria, mas não tem nenhuma grande novidade".
É uma política que tenta colher dados, talvez sistematizar do que for possível e fazer uma leitura cuidadosa do Brasil. [A segurança pública] é uma agenda de uso político que pressiona muito o governo, não acho que [o decreto] venha com essa pretensão de sair apontando o dedo para os estados. É um desenho institucional que tentar padronizar procedimentos, vincular repasse de recursos, coletar dados e, sobretudo, organizar para aqueles estados que queiram diretrizes para melhorar o uso da força nas polícias estaduais.
Carolina Ricardo, diretora-executiva do instituto Sou da Paz
Governo federal tem "obrigada de regular o uso da força policial", afirma Samira Bueno diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. "Durante a gestão [Flávio] Dino e agora finalizada com Lewandowski, a Secretaria Nacional de Segurança Pública entendeu que precisava de uma regulamentação da legislação e, mais do que isso, decidiu atualizá-la diante dos novos desafios que o Brasil enfrenta."
Criação de Comitê Nacional de Monitoramento de Uso da Força poderá ser diferencial em política de segurança pública. Samira lembra ainda que o Brasil tem condenações em corte internacionais —como o caso da Favela Nova Brasília e da operação Castelinho, pelo uso excessivo da força policial.
O que o governo está fazendo está certo e a grande novidade é a criação desse comitê que vai produzir relatórios e será composto pela sociedade civil
Samira Bueno diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Reação a decreto é política, dizem especialistas
Governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União) se manifestou nas redes sociais contra o decreto presidencial. "Um decreto que lhes garante mais liberdade de ação e promove o engessamento das forças policiais. É o modelo PT-venezuelano, que parece querer incendiar o país", afirmou em uma publicação do X.
Alcadipani afirma que a crítica de Caiado é uma tentativa de politização de tema técnico. "O que a gente não precisa no Brasil é essa disputa política, essa 'rinha' política, em relação a um assunto de segurança pública para querer ter protagonismo para a próxima eleição. Esse é mais um exemplo muito ruim de como governantes não devem se comportar."
O governador de Goiás chamou o decreto presidencial de "chantagem explícita contra os estados". Isso porque o decreto determina que os repasses dos Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Penitenciário Nacional de segurança pública estejam condicionados ao cumprimento das diretrizes pelos estados.
Decreto pode ajudar em estados com maior aceitação do uso da força policial e não punição de policiais que cometem abusos. Isso porque um dos principais pontos da nova norma é que não é legítimo o uso de arma de fogo contra pessoas em fuga que estejam desarmadas ou que não representem risco imediato de morte ou lesão ou lesão para policiais.
Nível da força policial deve ser compatível com a gravidade da ameaça apresentada, diz decreto. Para Alcadipani, medir o uso da força policial é algo já feito pela polícia.
O que a gente vê, muitas vezes, é que em alguns estados, principalmente no centro-oeste, no norte e nordeste do Brasil, a polícia ela apresenta uma liberalidade grande, você tem uma aceitação muito grande e uma não-punição efetiva de policiais que cometem abusos.
Rafael Alcadipani, professor da FGV-SP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Policiais de São Paulo dizem que decreto "não muda nada"
A avaliação de agentes de segurança pública de São Paulo é que as diretrizes mencionadas no decreto são adotadas pelo estado. O UOL conversou com policiais militares que afirmam que a corporação organiza há mais de 20 anos os POPs (procedimentos operacionais padrão) com o objetivo de evitar a abordagens que possam colocar em risco a vida do policial e de pessoas inocentes.
Policiais afirmaram ainda que tiro em carro em fuga "se justifica se o deslocamento causar risco concreto a vida". Em relação ao uso de arma que, segundo as regras do governo, não será legítimo contra pessoas em fuga desarmadas ou que não apresentem risco de morte ou lesão para outros, agentes ouvidos pela reportagem disseram que a utilização dos equipamentos da polícia de São Paulo é "o mais austero do mundo".
SSP disse em nota que forças de segurança do estado recebem treinamentos contínuos. Segundo a pasta, comandada pelo secretário Guilherme Derrite, as forças têm "seus procedimentos constantemente aprimorados considerando a política de Direitos Humanos". "Por parte da Polícia Militar, as abordagens obedecem aos parâmetros técnicos disciplinados por Lei e são padronizadas por meio dos chamados Procedimentos Operacionais Padrão (POP)."
Decreto estabelece que policiais terão de fazer anualmente capacitação sobre o uso da força. Em relação a isso, a secretaria disse que "os policiais são submetidos a capacitações teóricas e práticas para atualizar e aprimorar as atividades de policiamento e o relacionamento com a sociedade." Sob a gestão do governador Tarcísio de Freitas, a pasta enfrenta uma crise na segurança pública após um policial ter arremessado um homem de uma ponte na zona sul de São Paulo.
Entenda o decreto sobre o uso da força
Documento foi elaborado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, do ministro Ricardo Lewandowski. As novas regras estabelecem que não é legítimo o uso de arma de fogo em duas circunstâncias: contra pessoa em fuga desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou lesão para policiais ou terceiros.
O decreto também prevê que não é legítimo o uso de arma contra veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública. A exceção é para quando houver risco de morte ou lesão.
Profissionais de segurança pública devem priorizar "comunicação, a negociação e o emprego de técnicas que impeçam uma escalada da violência", diz o documento. A pasta será responsável por financiar ações para implementação do decreto, formular e monitorar ações relacionadas ao uso da força policial.
Diretrizes não são imposições aos estados — entes responsáveis pela segurança pública e pelo comando das polícias militares. As ações, segundo o governo federal, são uma tentativa de padronizar a política pública de segurança.
Repasses para os fundos de segurança pública estarão condicionados ao cumprimento das diretrizes pelos estados. O Ministério da Justiça deve criar um Comitê Nacional de Monitoramento do Uso da Força para acompanhar os resultados das novas diretrizes.