Gabinete na prisão

Negociação por paz com secretário do Rio e bilhetes do tráfico: como o CV mantém o poder atrás das grades

Herculano Barreto Filho Do UOL, em São Paulo Vinicius Andrade/UOL

O pátio do presídio federal de Catanduvas, no Paraná, que abriga detentos de alta periculosidade, se tornou uma espécie de gabinete do crime organizado. Mesmo atrás das grades, membros da cúpula do CV (Comando Vermelho) negociaram um pacto de paz com o Estado e ainda receberam bilhetes vindos das favelas do Rio em saídas da cela para o banho de sol.

Os dois episódios, que ocorreram entre abril e maio, fazem parte de investigações da Polícia Federal. E ilustram a força do poder paralelo com a participação de agentes públicos. Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, apontado como um dos chefões do CV, aparece como personagem central nas duas investigações.

Ele estava no pátio da penitenciária no dia 28 de maio com outras lideranças da facção para receber Raphael Montenegro, então secretário de Administração Penitenciária do Rio, que sugeriu transferência deles para o sistema prisional carioca. Em troca, pediu trégua na guerra entre as forças de segurança e o tráfico, como registrou escuta ambiental na unidade.

Preso por suspeita de envolvimento em crimes como associação ao tráfico, falsidade ideológica e advocacia administrativa, Montenegro responde ao processo em liberdade. A defesa do ex-secretário disse que não irá se manifestar sobre o caso.

A advogada Paloma Gurgel, que representa Marcinho VP, se posicionou sobre o episódio. "O Márcio está sendo envolvido em ilações abusivas injustificadas", diz a nota, em um dos trechos.

Esse não foi o único episódio recente capaz de revelar o poder da cúpula do CV mesmo atrás das grades.

Na tarde de 11 de abril, um interno foi filmado enquanto lia um recado para VP. "Em nenhum momento foi demonstrado pelas provas que ele [Marcinho VP] era o destinatário dos bilhetes", rebateu Paloma Gurgel.

Com base no inquérito, o Ministério Público Federal apresentou denúncia contra 26 pessoas suspeitas de envolvimento no esquema.

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Entrega dos bilhetes e pagamento

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Às 10h06 de 6 de janeiro de 2020, o policial penal Docimar Pinheiro retira as algemas de Fabiano Atanásio da Silva, o FB, que voltava do banho de sol na penitenciária federal de Catanduvas. Em seguida, entrega um bilhete nas mãos do traficante, um dos chefões do Comando Vermelho, facção criminosa que domina a venda de drogas nas favelas do Rio.

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Quatro dias depois, Docimar espera outros dois agentes chegarem no final de um corredor para se aproximar da cela de FB. Ele então coloca a mão no bolso e repassa outra mensagem. O traficante recebeu seis bilhetes em entregas flagradas por câmeras entre janeiro e junho de 2020. Segundo a PF, o agente recebia R$ 15 mil por bilhete.

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Recado para o chefão do CV

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As trocas de plantão para a ala onde estava Marcinho VP chamaram a atenção da Polícia Federal. Em pouco mais de um ano, Docimar fez 28 alterações para a ala onde estava o chefe da facção. As câmeras flagraram mais de 30 entregas de bilhetes com mensagens também escondidas na marmita dos internos.

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Um desses bilhetes foi flagrado pelas câmeras nas mãos de um detento no banho de sol às 12h20 de 11 de abril. Ele retira bilhetes do uniforme e lê a mensagem, em frente a três membros da facção. E olha diretamente para Marcinho VP. Depois, coloca o papel em um copo com água e joga o conteúdo em um ralo.

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A carta da 'comadre' do traficante

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Marcela Vasconcelos Souza Lima, que está foragida, era o principal contato entre FB e as favelas do Rio, segundo a investigação da Polícia Federal. Ela resolvia até questões particulares do traficante, como pagamentos de despesas da ex-mulher dele. Em email, Marcela se referiu a FB como "cumpadre [sic]" e dizia "orar" por ele.

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"Sei que o que você tá passando é muito difícil, se decepcionar com uma pessoa que você era capaz de dar a vida por ela. Sei que vc sente muita falta [cita o nome dos filhos de FB]. E para completar está nesse lugar horrível, se sentindo impotente de resolver suas coisas. Uma vez por semana vou aqui numa igreja onde moro e estou sempre orando por você."

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Reunião no gabinete da prisão

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No fim de maio, Marcinho VP e outros chefes do tráfico recebem Raphael Montenegro, secretário de Administração Penitenciária do Rio, para uma reunião informal no pátio do presídio. Em pauta, a negociação sobre uma possível transferência para o sistema prisional carioca. Montenegro oferece um pacto de paz ao crime organizado.

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"Você é o cara que fala pela maior facção do Brasil. E a gente respeita isso. Não só o Márcio homem, mas o Marcinho VP, o traficante. Ninguém tem a expectativa de que você vá pro Rio pra largar a vida [do crime]. A gente sabe que você é um cara que no Rio... Pode baixar a poeira, né? Talvez você seja mais importante que o secretário de Segurança Pública no Rio?"

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O que acontece? O sistema penitenciário federal, ao invés de ter sido um mecanismo de combate ao crime, ele foi um estímulo ao crime na verdade

Marcinho VP, Afirmação feita a Raphael Montenegro, então secretário de Administração Penitenciária do Rio, flagrada por escuta ambiental na penitenciária de Catanduvas

Vinicius Andrade/UOL

'Tem que maneirar nos relatórios': o que o traficante disse ao secretário

Em 2017, quase quatro anos antes do encontro informal entre Marcinho VP e Raphael Montenegro, o criminoso reclamou, em entrevista ao UOL, do presídio federal por causa da dificuldade que seus familiares tinham em visitá-lo. "Eles perdem dois dias para visitar seu ente querido em uma penitenciária federal (...). A nossa pena tem sido estendida aos nossos familiares. As cadeias do Brasil são escolas do crime", disse na ocasião.

Agora, na conversa entre o chefe do CV e o ex-secretário, que o UOL teve acesso à transcrição com base em escuta ambiental na penitenciária de Catanduvas, Marcinho VP diz ver o sistema federal como um "estímulo ao crime". Confira:

Raphael Montenegro - Você é um cara que fala bem. Você é um cara inteligente, todo mundo sabe. Então, irmão... A bola contigo. Vende teu peixe aí, porra.

Marcinho VP - O que você quer saber?

Montenegro - Você é o frente do Comando. Ninguém tem a expectativa de que você vá pro Rio pra largar a vida [do crime] (...). Agora... A gente também sabe que você é um cara que no Rio, pô... Pode baixar a poeira pra caralho, né?

Marcinho VP - Verdade.

Montenegro - Talvez você seja o cara mais importante do que o secretário de Segurança Pública no Rio.

Marcinho VP - O que acontece? O sistema penitenciário federal, na realidade, assim. Ele ao invés de ter sido um mecanismo de combate ao crime, ele foi um estímulo ao crime na verdade.

Montenegro - Mas a minha preocupação não é se você vai continuar vendendo ou deixar de vender teu negócio. Até porque o negócio que você vende... Se você sair, alguém vai vender. Essa porra vende no mundo inteiro, cara. A minha questão é a seguinte: eu preciso deixar o Marcinho 15 anos longe do Rio de Janeiro? Isso pra mim é um atestado de incompetência (...). Você é um cara fundamental nessa virada de cultura, você é o cara que hoje fala pela maior facção do Brasil (...). Esse cara tem que ser respeitado (...). A gente quer que o Márcio, como homem, volte. E volte num espírito cooperativo.

Marcinho VP - Não é nem a área de vocês. Mas assim, aquela Secretaria lá também. Com todo o respeito, tem que maneirar naqueles relatórios lá. Naquele extrato de inteligência. Porque... Um absurdo aquele extrato de inteligência lá.

Montenegro - Então, Márcio. A gente aqui exatamente pra não mandar o mesmo relatório que a gente manda há 20 anos pra VEP. O próximo relatório que o juiz da VEP receber é o relatório que eu vou confeccionar não pelas informações que eu recebi. É pela conversa que eu tive com você.

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MAGA JR/O FOTOGRÁFICO/ESTADÃO CONTEÚDO

Celular em presidio 'tá no jogo'

No encontro com os traficantes no presídio de Catanduvas, Montenegro ainda falou abertamente sobre possíveis vantagens que Marcinho VP teria em uma eventual transferência para o sistema prisional do Rio, conforme conteúdo obtido pela reportagem do UOL. Como o uso de celulares com a conivência da Seap (Secretaria de Administração Penitenciária).

E ainda citou como exemplo o episódio ocorrido com Marco Antônio Pereira Firmino, o My Thor, que também faz parte da cúpula da facção. Após mais de 13 anos em presídios federais, ele foi transferido em março deste ano para o Complexo de Gericinó, no Rio, como também ocorreria com outros chefões da organização, segundo Montenegro. Em maio, um print capturado da tela do celular registrou uma videochamada feita pelo traficante mesmo atrás das grades.

Se eu te pegar usando telefone, eu vou te mandar para a federal? Claro que não, cara! A gente mandou o My Thor para a federal? (...). Uma vez que entrou [para o sistema prisional do Rio], você falar ou deixar de falar? Tá no jogo, tudo certo. Agora o My Thor, quando ele faz um vídeo, ele expõe todo o sistema. Ele expõe a forma como a gente ali conduzindo o sistema no diálogo

Em cumprimento de mandado de prisão na casa do então secretário de Administração Penitenciária do Rio, foi apreendido R$ 200 mil em espécie. A PF diz não saber se Montenegro ganhou alguma vantagem financeira com os encontros. Mas afirma que o principal objetivo do secretário era o "capital político".

Em nota, o governo do Rio afirmou que "se compromete a auxiliar no aprofundamento das apurações" sobre os crimes atribuídos a Montenegro.

Reprodução/PF Reprodução/PF

Especialistas criticam despreparo do governo do Rio: 'Não foi a 1ª vez'

Especialistas ouvidos pelo UOL criticaram o que entendem ser uma demonstração de "despreparo" do governo do Rio no episódio e alertam para a repetição desse tipo de procedimento envolvendo o poder público e o crime organizado.

"Não acho que tenha sido uma demonstração de poder da facção. É muito mais uma demonstração de despreparo do secretário de Administração Penitenciária do Rio. É a falta de noção de realidade do papel dele como governo e de noção sobre o que é certo e o que é errado", analisa Bruno Paes Manso, jornalista especializado em Segurança Pública.

Segundo ele, o episódio revela ainda a falta de confiança de Montenegro no próprio poder público.

Ele [Montenegro] sabia que estava em um ambiente onde poderia estar sendo gravado. Parece que pessoas em cargos importantes não fazem ideia do que pode ou não. É como se os representantes do Estado não acreditassem na própria instituição que representam
Bruno Paes Manso

Roberto Uchôa, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, lembra que esse tipo de negociação já ocorreu, sobretudo em meio a crises em presídios ou a conflitos em áreas dominadas pelo tráfico. Mas não de forma tão explícita.

Estamos falando de um secretário de Estado diretamente ligado ao governador. Isso me deixou mais assustado, porque significa que esses representantes do governo estão se sentindo mais livres para ter esse tipo de atitude que antigamente ficava mais nos bastidores
Roberto Uchôa, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Ele vê no episódio uma forma de "desmoralização" do próprio poder público. "Não se pode negociar concessões com líderes de facções criminosas. Isso não é normal, não é legal, não é ético e enfraquece o próprio Estado", observa.

Uchôa também criticou o momento em que Montenegro demonstra ter conhecimento do uso de celulares no sistema prisional carioca. "O crime organizado só prospera com essa permissividade estatal, que permite que esses chefes do tráfico consigam administrar todo o seu império criminoso mesmo atrás das grades".

Ele também critica o governador Cláudio Castro pelo episódio. "Ou temos um governador envolvido nesse caso ou temos um governador que sequer sabe o que está acontecendo no seu entorno. As duas opções são péssimas para a população".

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