Topo

Esse conteúdo é antigo

Drive-thru de exames e contêiner de atendimento: o 'plano de batalha' dos ingleses contra o coronavírus

Profissional de saúde usa um cotonete para coleta de amostras pela janela do carro em um "drive-thru" de exames em Edimburgo - PA Media
Profissional de saúde usa um cotonete para coleta de amostras pela janela do carro em um 'drive-thru' de exames em Edimburgo Imagem: PA Media

Ricardo Senra - @ricksenra - Da BBC News Brasil em Londres

05/03/2020 16h42

Conheça os detalhes do megaplano de contenção do vírus no Reino Unido, onde autoridades preveem que até um quinto dos funcionários de empresas fiquem doentes e se ausentem do trabalho.

O mundo já enfrentou graves surtos de gripes infecciosas desde o início século passado — da gripe espanhola (1918-19), que matou entre 20 e 50 milhões de pessoas, a variações como a Sars (2002), na China, e a Mers (2012), no Oriente Médio, que deixaram centenas mortos.

Esses episódios serviram como base para que cientistas criassem, nas últimas décadas, planos minuciosos de controle de doenças hipercontagiosas como a causada pelo coronavírus.

Chegou a hora de colocá-los em prática.

Divulgado no início da semana em Londres, um extenso planejamento que vem sendo chamado de "plano de batalha" revela detalhes sobre como o poder público britânico pretende se comportar em diferentes fases da doença.

Cenários mais dramáticos preveem que médicos e profissionais de saúde aposentados sejam convocados para reassumirem suas funções. Em um contexto de expansão generalizada do vírus, segundo o documento, a polícia poderá ter suas atividades reduzidas e redirecionadas no caso de muitos agentes ficarem doentes ou morrerem.

As autoridades preveem que até um quinto dos funcionários de empresas fiquem doentes e se ausentem do trabalho nas semanas de pico do coronavírus. O alto potencial de expansão se justifica pela novidade: como se trata de um vírus inédito, as pessoas não têm anticorpos para combatê-lo e se ficam vulneráveis.

O plano detalhado por autoridades britânicas também inclui medidas imediatas — incluindo algumas surpreendentes, como um drive-thru de exames, semelhante ao de redes de fast-food, e a instalação de contêineres para atendimento de doentes fora de hospitais, ambas já colocadas em prática.

Nesta reportagem, a BBC News Brasil traz detalhes sobre o plano elaborado pelo Reino Unido, que enfrenta um estágio mais avançado da doença e pode dar pistas sobre o que pode ser feito pelos brasileiros, caso a tendência de expansão do vírus se repita no país.

uk1 - PA Media - PA Media
Objetivo dos contêineres é evitar a superlotação das áreas de atendimento de emergência já existentes e reduzir o impacto da nova demanda que o coronavírus pode trazer
Imagem: PA Media

Eixos do plano

Os dados mais recentes apontam que, enquanto o Brasil tem quatro casos da doença, todos em São Paulo, há pelo menos 90 confirmações no Reino Unido — que "muito provavelmente será significativamente afetado" pelo coronavírus nas próximas semanas, segundo autoridades médicas locais.

À BBC, o médico chefe do Departamento de Saúde do Reino Unido, professor Chris Whitty, disse que até 80% da população podem se infectar com o coronavírus "no pior cenário". Outros cenários preveem contaminação de 50% ou 30% da população.

"Espera-se que 50% de todos os casos aconteçam em um período de três semanas e 95% dos casos em um período de nove semanas, se o vírus seguir a trajetória que acreditamos que vai acontecer", afirmou o médico nesta quinta-feira (05/03).

O megaplano de combate à doença se apoia em quatro eixos: conter, desacelerar, pesquisar e mitigar.

O primeiro item, "conter", é detalhado em 16 pontos no documento.

O plano inclui a criação de novas regras que ampliam o poder de médicos, profissionais de saúde e policiais, que poderão "deter e encaminhar" pessoas que estejam em locais sob suspeita de contaminação.

As regras preveem, além de detectar e isolar casos suspeitos em áreas de quarentena, reforçar operações em portos, aeroportos e fronteiras.

Na Escócia, membros de conselhos de saúde agora têm o poder de proibir pessoas expostas à doença de entrarem ou permanecerem em qualquer lugar que possa oferecer riscos.

Segundo o texto, o Reino Unido mantém estoques estratégicos dos medicamentos e materiais de proteção para equipes de saúde que possam entrar em contato com pacientes com o vírus. "Esses estoques estão sendo monitorados diariamente, com estoques adicionais sendo solicitados sempre que necessário", diz o texto.

Drive through e contêineres

uk2 - Getty Images - Getty Images
Contêiner instalado no Dorset County, em Dorchester, na Inglaterra
Imagem: Getty Images

O NHS, sistema nacional de saúde britânico, determinou que, até o dia 7, todos os hospitais com tratamento de emergência do país tenham implementado áreas de isolamento para o atendimento de pessoas com suspeita de contaminação pelo vírus.

No Brasil, alas dentro das emergências de hospitais têm sido isoladas para a avaliação e o tratamento de doentes. No Reino Unido, isso tem acontecido do lado de fora — e na grande maioria dos casos, contêineres transportados de caminhão foram a estrutura escolhida para este tipo de atendimento.

A ideia é evitar a superlotação das áreas de atendimento de emergência já existentes e reduzir o impacto da nova demanda que o coronavírus pode trazer, tanto em termos medicamentos e exames, quanto no que se refere à proteção dos doentes que ocupam leitos por outros motivos.

Os contêineres servem para avaliações prioritárias de coronavírus. De acordo com o procedimento criado pelos britânicos, pessoas que apresentem sintomas devem telefonar para o ramal público de emergências médicas e receber um diagnóstico preliminar.

uk3 - AFP/Getty Images - AFP/Getty Images
Atendimento por 'drive-thru' também está sendo usado na Coreia do Sul, onde o surto avança de forma dramática
Imagem: AFP/Getty Images

As autoridades têm repetido exaustivamente que ninguém deve ir direto para o hospital para que os atuais doentes não sejam expostos.

Uma vez no contêiner, as pessoas que tiverem sintomas já confirmados pelo atendimento telefônico recebem uma avaliação rápida, enquanto o resto do hospital funciona normalmente. Estas áreas são desinfetadas várias vezes por dia, sempre que receberem pacientes que testaram positivo ou tiverem altas chances disso.

Estratégia parecida está sendo usada na Itália - onde barracas de exames foram montadas em frente a hospitais, fora dos prédios principais, para a realização de exames.

Outra inovação é o drive-thru de exames. Como nos contêineres, os pacientes só podem usar o serviço se receberem aprovação por telefone. Elas são orientadas a chegar ao local do atendimento de carro e a continuar dentro do automóvel, enquanto profissionais de saúde colhem amostras do nariz e da boca.

Os pacientes são liberados e orientados a ficarem isolados em casa por 72h — tempo necessário para que os resultados dos exames saem.

Isso também está acontecendo na Coreia do Sul, onde o vírus chegou com força e já atingiu mais de 5 mil pessoas.

A Dra. Joanne Medhurst, diretora médica do NHS em Londres, explicou o serviço 'drive-thru' foi montado "para garantir que as pessoas da nossa comunidade possam obter verificações seguras, convenientes e rápidas de coronavírus" ao mesmo tempo em que a comunidade 'pode ser mantida em segurança".

Além dos contêineres e do drive-thru, consultas em vídeo também estão sendo estimuladas na tentativa de reduzir o número de pessoas nos hospitais e diminuir o potencial de transmissão.

'Desacelerar'

A estimativa é que a grande maioria dos pacientes tenha sintomas leves ou moderados, parecidos com os da gripe comum: febre, tosse e dificuldade para respirar.

Segundo os planos do governo, uma minoria vai precisar de cuidados hospitalares. Nestes casos, a doença deve se manifestar com sintomas parecidos com os da pneumonia.

O governo deixa claro que uma pequena proporção morrerá por conta do vírus — principalmente idosos e aqueles com saúde debilitada.

As crianças pequenas podem ser infectadas, mas no geral a doença é menos comum nos menores de 20 anos.

Passada a fase inicial de contenção, o governo britânico se encaminha neste momento para a etapa denominada "desacelerar".

Considerando que a doença está se espalhando aceleradamente, este item prevê medidas que retardem essa expansão o máximo possível, até que o inverno termine no hemisfério norte e, consequentemente, as chances de contaminação se reduzam.

De acordo com o médico-chefe Chris Whitty, a fase de desaceleração pretende retardar a expansão do vírus ao máximo, até que o sistema público de saúde esteja menos congestionado.

Segundo ele, esta fase também pretende garantir "mais tempo para o Reino Unido melhorar sua resposta e desenvolver medidas como remédios, vacinas e diagnósticos".

De acordo com o governo, a depender da evolução da doença, esta fase, junto à de mitigação, é a que pode trazer impactos mais drásticos no dia a dia dos britânicos.

De um lado, o Ministério da Defesa já atua para garantir a continuidade de operações militares no Reino Unido e no exterior. Há também planos para que militares ofereçam apoio a civis em caso de necessidade.

uk4 - BBC - BBC
Primeiro-ministro Boris Johnson destacou papel de cientistas em plano de contenção contra a doença
Imagem: BBC

Medidas

Além da possível convocação de profissionais aposentados, para garantir que serviços essenciais de saúde sejam oferecidos, está prevista a redução de outros, como a oferta de consultas de rotina por médicos do serviço público de saúde.

O plano também prevê a possibilidade de fechamento de escolas, estímulo ao trabalho remoto, de casa, e o cancelamento de eventos públicos — como a Feira do Livro de Londres, recém-cancelada.

O plano não dá detalhes, mas aponta que policiais podem deixar de monitorar certos casos para se concentrarem apenas em crimes sérios e atividades de manutenção da ordem pública.

O quarto eixo, "pesquisar", acontece em paralelo aos demais.

Neste guarda-chuva, que prevê "avançar e inovar em respostas ao vírus, seja por diagnóstico, remédios ou vacinas", o governo já anunciou um investimento de 20 milhões de libras (ou R$ 120 milhões) no desenvolvimento de novas vacinas.

Outros 20 milhões de libras já foram destinados para pesquisas específicas sobre o comportamento do vírus.

Em entrevista à imprensa sobre o plano, o primeiro-ministro Boris Johnson reiterou que deixou para os cientistas e professores o desenho do plano emergencial.

Segundo Johnson, o governo confia na ciência de ponta do país para lidar com a crise.

Avaliação

Na avaliação de especialistas como Hugh Pym, editor de Saúde da BBC inglesa, o plano traz uma avaliação equilibrada.

Ao mesmo tempo em que toma cuidado para não gerar pânico, o texto é direto sobre o que pode acontecer e como a operação para limitar a propagação do vírus pode afetar a vida das pessoas.

Segundo ele, o governo fez bem ao optar por não esconder que as coisas poderão ficar piores.

"Se especialistas médicos estão reconhecendo que haverá transmissão generalizada do vírus, os políticos dificilmente conseguiriam esconder isso do público. Preparar planos secretos de contingência para o fechamento de escolas e correr o risco de isso vazar poderia preocupar ainda mais as pessoas", avalia.

Por outro lado, segundo o especialista, o plano traz poucos detalhes sobre como os novos poderes dados a médicos e agentes de saúde podem ser usados na prática e também não detalha como o sistema de saúde vai conseguir leitos e funcionários suficientes para lidar com novos pacientes.