A ameaça do coronavírus nos EUA, onde milhões não têm licença médica nem saúde pública
Nos últimos dias, diante do avanço do novo coronavírus nos Estados Unidos, o CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças - agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde) divulgou uma série de recomendações aos americanos para se proteger e evitar que o vírus se espalhe, entre elas a de ficar em casa se estiverem doentes e procurar um médico.
Mas, para milhões de americanos, será impossível adotar essas medidas. Como não existe no país uma lei federal que obrigue empregadores a oferecer licença médica, muitos funcionários precisam escolher entre trabalhar doentes ou ficar sem salário — ou até mesmo perder o emprego. Além disso, sem um sistema público de saúde, muitos não têm cobertura e evitam ir ao médico por medo dos altos custos.
Em um momento em que o país já registra 11 mortes e mais de cem casos da covid-19, a doença provocada pelo novo coronavírus, e em que autoridades de saúde consideram provável que milhões de americanos sejam infectados, especialistas temem que esses fatores afetem a resposta à crise e representem um risco à saúde pública.
"Sem licença médica, as pessoas irão trabalhar (doentes) e espalhar a doença", diz à BBC News Brasil o economista Nicolas Ziebarth, professor da Universidade Cornell, em Nova York.
Ziebarth estuda a interação entre sistemas de seguridade social, mercados de trabalho e saúde pública e é co-autor de estudos que analisam o efeito de leis municipais e estaduais exigindo que empregadores ofereçam licença médica remunerada.
Segundo seu estudo mais recente, publicado neste ano, as taxas de gripe e doenças semelhantes caíram em média 11% nesses locais no primeiro ano após as leis entrarem em vigor. Ziebarth acredita que a correlação entre acesso a licença médica e taxas de infecção também vale para o coronavírus.
Sem benefícios
Entre os países ricos, os Estados Unidos se destacam por serem um dos únicos que não oferecem a seus trabalhadores benefícios como licença médica, férias remuneradas ou licença maternidade. Como esses benefícios não estão previstos em lei federal, a decisão fica a cargo do empregador.
Um estudo do instituto de pesquisa Center for Economic and Policy Research comparou as políticas de 22 países com altos índices de desenvolvimento econômico e humano, mostrando que os EUA são o único a não oferecer licença médica. As leis do país também não protegem trabalhadores de serem demitidos caso faltem por motivo de doença.
Nos últimos anos, algumas cidades e Estados aprovaram leis que obrigam determinados empregadores a oferecer licença médica remunerada mas, ainda assim, o Ministério do Trabalho dos Estados Unidos afirma que um quarto dos trabalhadores do setor privado não contam com o benefício. Alguns têm direito a licença não remunerada para tratar de problemas médicos, mas esse benefício também é restrito.
O percentual de trabalhadores sem licença médica varia de acordo com a profissão e o salário, e é bem mais alto entre funcionários do comércio e do setor de alimentação e na economia informal - exatamente aqueles que costumam ter mais contato com o público. Cerca de 40% dos trabalhadores no setor de serviços e quase 60% dos que trabalham em meio período não têm licença médica.
Sem o benefício e diante da pressão financeira de ficar dias sem salário, esses americanos costumam trabalhar mesmo que estejam doentes ou que alguém da família esteja contaminado, colocando em risco colegas e o público.
"Muitas vezes não podem nem mesmo ter um dia de folga não remunerada", salienta Ziebarth. "Caso tenham sintomas e queiram tomar precauções e não ir ao trabalho, mesmo sem remuneração, correm o risco de serem demitidos se seu empregador não for compreensivo."
De acordo com dados do CDC de 2014, "um em cada cinco trabalhadores no setor de serviços de alimentação relataram ter trabalhado pelo menos uma vez no ano anterior enquanto estavam doentes com vômito ou diarreia". O principal motivo citado era medo de perder o emprego.
Trabalhadores de baixa renda
A maioria dos americanos sem licença médica tem salários baixos, o que agrava o impacto da falta do benefício. Segundo estudo do think tank Economic Policy Institute, para trabalhadores de baixa renda, três dias sem receber pagamento equivalem ao orçamento mensal para compra de comida.
"Têm de escolher entre trabalhar doentes (ou mandar seus filhos para a escola doentes) ou ficar sem o pagamento de que tanto necessitam", diz o estudo.
Além de não terem acesso à licença médica remunerada, muitos funcionários americanos também não podem trabalhar remotamente, de casa - outra recomendação do governo em caso de epidemia de coronavírus.
Dados do Departamento do Trabalho indicam que somente 29% dos trabalhadores americanos contam com essa possibilidade, percentual que também varia de acordo com a profissão, o salário e o nível de educação.
Mas mesmo entre aqueles que têm acesso à licença médica remunerada, muitos relutam em ficar em casa, mesmo que estejam doentes, resultado de uma cultura que vê com desconfiança quem não trabalha duro. Além disso, entre os que contam com o benefício, a média é de sete dias por ano, o que faz com que muitos busquem "economizar" esses dias para usar em caso de doença grave.
Cobertura de saúde
Outro obstáculo no combate ao coronavírus é o fato de que mais de 27 milhões de pessoas nos Estados Unidos não têm seguro de saúde, segundo dados do Censo americano, e o país não tem um sistema de saúde universal gratuita.
Mesmo que os testes para diagnosticar a presença do novo coronavírus estejam disponíveis, especialistas temem que muitas pessoas evitem procurar ajuda médica para saber se estão infectadas, com medo dos custos associados.
Os testes são gratuitos em laboratórios públicos, mas o mesmo não ocorre em todos os laboratórios privados. Além do teste em si, há os custos da visita ao médico ou ao pronto-socorro. Em caso de necessidade de internação, a conta pode chegar a milhares de dólares por dia.
Segundo estudo da organização sem fins lucrativos Kaiser Family Foundation, um em cada cinco americanos sem seguro de saúde evita buscar atendimento médico por causa dos custos. Em pesquisa Gallup divulgada no fim do ano passado, 25% dos americanos revelaram que os altos custos levaram eles ou alguém da família a evitar buscar tratamento para uma doença séria no ano anterior.
A maior parte dos americanos sem plano de saúde é de baixa renda. "Pessoas que não têm seguro de saúde muito frequentemente também não têm direito à licença médica", ressalta Ziebarth.
Mesmo quando têm licença médica, a própria falta de cobertura de saúde dificulta a obtenção de atestado médico para comprovar a doença e obter licença.
Cobranças inesperadas
Entre os que têm plano de saúde, muitas vezes a cobertura é limitada e exige alto percentual de co-pagamento. Além disso, é comum receber cobranças que não estavam previstas na hora de negociar os detalhes do tratamento.
Recentemente, alguns americanos que foram obrigados a ficar em quarentena por causa do coronavírus relataram ter recebido cobranças de milhares de dólares, apesar de o isolamento ter sido obrigatório por ordem do governo.
Em um dos casos, relatado pelo jornal The New York Times, um americano contou que ele e sua filha haviam sido evacuados de Wuhan, epicentro do coronavírus na China, pelo governo americano e colocados em quarentena, o que incluiu alguns dias em isolamento em um hospital.
Apesar de a hospitalização ter sido ordenada pelo governo - e de não terem sido diagnosticados com o vírus -, ele recebeu uma conta de quase US$ 4 mil (mais de R$ 18 mil) por serviços de ambulância, médicos e radiologista.
Segundo especialistas, todos esses obstáculos devem ameaçar o controle da epidemia, que depende de medidas como ampliar o acesso aos testes e a tratamentos e fazer com que aqueles com sintomas ou que tenham alguém afetado na família fiquem em casa, evitando contaminar outras pessoas.
Acredita-se que o novo coronavírus se espalhe por meio da proximidade com pessoas doentes. Também há a possibilidade de que se espalhe pelo contato com superfícies e objetos contaminados.
Um motorista de aplicativo doente que é obrigado a trabalhar pode contaminar seus passageiros. Um funcionário de restaurante doente pode ajudar a espalhar o vírus enquanto prepara a comida, toca no cartão de crédito do cliente ou em superfícies usadas pelos outros empregados. Em escritórios e outros locais de trabalho, o contato próximo com colegas pode resultar em contágio.
Os sintomas da doença podem levar até duas semanas para se manifestar. "Algumas pessoas apresentam sintomas muito leves, ou não tem nenhum sintoma, mas têm o vírus", observa Ziebarth.
"Talvez nem saibam que têm o vírus. E, nesse caso, especialmente sem licença médica e sem plano de saúde, irão espalhar a doença."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.