Coronavírus: o que dizem médicos sobre a ideia de compartilhar respiradores entre dois pacientes
Compartilhamento de ventiladores é alvo de críticas por especialistas; até o momento, não existe nenhum estudo clínico que tenha testado a eficácia e segurança do compartilhamento
O governador de Nova York, Andrew Cuomo, disse na quinta-feira (26/03) que o Estado vai permitir que hospitais utilizem um único respirador - ou ventilador pulmonar - para tratar dois pacientes com covid-19 ao mesmo tempo.
A medida foi tomada em antecipação à possível falta de respiradores no pico da epidemia.
O temor de que não haja equipamentos suficientes vem de projeções baseadas no comportamento da doença em regiões onde a epidemia já está em fases mais avançadas.
Na Itália, por exemplo, há relatos de médicos tendo de escolher quais pacientes teriam acesso aos ventiladores, pois não há equipamentos para todos.
O médico de emergência Marco Garrone tem passado por situações como essa no hospital onde atua em Turim, no noroeste da Itália. Diante da falta de ventiladores em seu hospital, ele decidiu tomar a medida extrema de dividir um equipamento entre dois pacientes.
Ele aprendeu sobre a técnica no blog do médico intensivista Josh Farkas, professor da Universidade de Vermont, nos Estados Unidos.
Para que servem os respiradores?
Os respiradores, também chamados de ventiladores pulmonares, são equipamentos que ajudam o paciente quando há algum problema no sistema respiratório.
Eles empurram ar com uma quantidade maior de oxigênio para dentro dos pulmões e removem o ar com dióxido de carbono exalado pelo paciente.
Há vários tipos de ventiladores. Em alguns, o tubo que transporta o ar é inserido pela boca do paciente até chegar à traqueia. Outros são não-invasivos e levam o ar por meio de uma máscara sobre a boca e nariz.
No caso dos pacientes com quadros graves de covid-19, seus pulmões se enchem de fluido e existe uma superfície menor dentro dos pulmões para realizar a troca de oxigênio. Isso significa que precisam fazer mais esforço para respirar.
Diante desse esforço incomum, os músculos responsáveis pelos movimentos da respiração ficam cansados como qualquer outro músculo do corpo. Caso não tenham a ajuda de um ventilador, o nível de oxigênio no sangue fica perigosamente baixo, o que pode levar à morte.
É por isso que o número insuficiente de ventiladores tem sido uma das maiores preocupações em relação à pandemia. Tratam-se de equipamentos bastante sofisticados e as indústrias que os produzem não têm dado conta da demanda.
No Estado de Nova York, por exemplo, estima-se que serão necessários cerca de 30 mil ventiladores para tratar os pacientes do novo coronavírus. Até agora, o Estado só conseguiu metade, segundo o governador Cuomo. Sem ventiladores, os pacientes graves podem morrer.
Um respirador para dois pacientes
Até o momento, não existe nenhum estudo clínico que tenha testado a eficácia e segurança do compartilhamento de um respirador por dois ou mais pacientes com problemas respiratórios, apenas estudos com simuladores de pulmões e experimentos em animais.
A mecânica de se dividir o fluxo de ar que vem da máquina entre dois ou mais pacientes é bastante simples e a estratégia pode ser feita com peças em formato de "T" e tubos plásticos facilmente disponíveis (há vários vídeos de médicos explicando como fazê-lo nas redes sociais).
O problema é que, ao dividir o fluxo de ar, perde-se monitoramento preciso da situação do pulmão de cada paciente, o que pode ser perigoso.
Por isso Garrone enfatiza que se trata de uma medida extrema a ser usada como última alternativa. Ele teve essa experiência com quatro duplas de pacientes em seu hospital.
"Os resultados foram razoavelmente bons. Alguns pacientes foram muito bem e melhoraram instantaneamente. Outros não se saíram tão bem", diz.
Nos casos conduzidos por Garrone, o equipamento dividido foi um respirador não invasivo (em que o ar é empurrado por uma máscara) programado para o modo CPAP (sigla em inglês que se refere a pressão positiva contínua das vias aéreas).
"Temos que ter em mente que essa é uma estratégia de resgate e deve ser usada apenas como 'ponte' até cada paciente ter acesso a um ventilador individual", diz. Também é importante escolher pacientes que tenham características pulmonares semelhantes, ele complementa.
O médico de emergência Greg Neyman, que atua em um hospital comunitário de Toms River, em Nova Jersey, foi um dos primeiros a estudar a possibilidade de compartilhar ventiladores, ao lado de Charlene Irvin Babcock, professora associada da Wayne State University e médica de emergência do Ascension St. John Hospital em Detroit, Michigan.
O estudo, publicado em 2006, foi feito com simuladores de pulmão (bolsas plásticas com o interior esponjoso imitando um pulmão humano) e concluiu que havia um potencial para usar um único ventilador em vários pacientes em casos de desastres envolvendo muitas vítimas.
No entanto, o experimento simulou pulmões saudáveis, e não afetados por problemas respiratórios como os pacientes com covid-19. "Eu tenho enfatizado que é preciso encontrar uma maneira para que pessoas com pulmões afetados possam dividir o ventilador de maneira apropriada", diz Neyman.
Ele afirma que apenas reproduzir a técnica usada no experimento não garante a segurança dos pacientes.
Riscos
Dois pacientes com altura e peso similares podem ter seus pulmões afetados de maneira distinta. O problema do compartilhamento do equipamento respiratório é não poder personalizar a pressão e o volume de ar que vai para cada paciente e não poder monitorá-los individualmente.
Se um deles tem uma pneumonia mais grave e seu pulmão estiver mais rígido, por exemplo, ele vai oferecer mais resistência e o ar que entra pode não ser suficiente, ao mesmo tempo em que o paciente menos grave, com pulmão menos rígido, pode receber mais ar do que precisa, o que pode danificar seu pulmão.
"Os ventiladores também disparam alarmes quando a pressão dentro do pulmão se torna muito alta e os profissionais de UTI estão acostumados com o ventilador avisando sempre que possa haver um problema", diz Neyman.
Com dois pacientes, esse sistema de alarme não vai funcionar da mesma forma e os médicos e enfermeiros podem não saber que os pacientes estão piorando, segundo o médico. Um desafio essencial, portanto, é desenvolver um sistema de monitoramento que permita identificar imediatamente se um dos pacientes apresentar uma piora.
O médico Richard Branson, professor do Departamento de Cirurgia da Universidade de Cincinnati, conduziu um experimento com simuladores de pulmão para avaliar a possibilidade de dividir um respirador entre quatro pacientes com características diferentes.
O estudo de Branson concluiu que não é possível controlar o volume de ar administrado a cada paciente quando os pulmões têm características distintas.
"Não importa como você programe o ventilador, o problema é que o paciente que tem o pulmão mais rígido, e que está mais doente, vai receber a menor quantidade de ar. E o que está menos doente, vai receber a maior quantidade de ar", ele diz.
Ele compara o sistema a uma bomba de bicicleta ligada a um circuito de quatro balões. Se um balão tem um livro em cima, ele vai encher menos que o previsto, enquanto os balões sem nenhuma resistência vão encher mais que o previsto. "É uma estratégia muito fácil de fazer, mas muito difícil de fazer de maneira segura e eficaz", conclui Branson.
O médico Jorge Luis Valiatti, presidente do Comitê de Insuficiência Respiratória e Ventilação Mecânica da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), afirma que a divisão de respiradores não é uma alternativa viável para lidar com a falta de equipamentos durante a pandemia.
Ele cita a posição da Sociedade Americana de Medicina de Cuidados Críticos (SCCM) que, junto a outras associações médicas, divulgou, nesta quinta-feira (26), uma declaração contrária ao uso de um ventilador para múltiplos pacientes. O grupo afirma que a estratégia não deve ser utilizada porque não pode ser feita de maneira segura com os equipamentos atuais.
Para Valiatti, é importante considerar também a questão bioética de se colocar dois pacientes no mesmo ventilador, pois um paciente sem possibilidade de sobreviver pode tirar a chance de outro que sobreviveria caso tivesse o respirador só para ele.
"Não se trata de escolher quem vai viver e quem vai morrer, mas decidir quem deve estar na UTI. Nem todos os pacientes se beneficiam da UTI", diz.
Recomendações para a coventilação
"A estratégia deve ser usada em uma situação em que ou você tenta ou deixa os pacientes morrerem; em circunstâncias terríveis em que você exauriu todos os outros meios convencionais", diz Charlene Babcock.
A médica, que além de ter feito o estudo de 2006 postou recentemente um vídeo no YouTube ensinando como adaptar o respirador para mais pacientes, faz parte de um grupo de especialistas reunidos a pedido do governo americano com agências como a FDA (órgão de controle de alimentos e medicamentos) e a FEMA (Agência Federal de Gerenciamento de Emergências) para criar um consenso de quais seriam as melhores recomendações para o compartilhamento de ventiladores, prática que vem sendo chamada de coventilação.
Um dos problemas levantados pelo grupo é em relação à possibilidade de um paciente contaminar o outro caso apenas um dele esteja com covid-19. Por isso seria importante que os dois tenham sido testados para a doença previamente.
Ela afirma que o sistema prevê diversos filtros, portanto a possível contaminação não se daria pelo equipamento em si, mas pela proximidade física.
O chefe do Departamento de Cirurgia do Columbia University Irving Medical Center, em Nova York, já afirmou que a instituição está fazendo experimentos em sua UTI para poder atender dois pacientes em cada ventilador e a instituição divulgou entre médicos um documento com um protocolo para compartilhamento de ventiladores.
Na avaliação de Garrone, é um erro contar com a possibilidade de dividir os ventiladores pulmonares enquanto se prepara para o pico da epidemia, como Nova York está fazendo.
Nas palavras dele, seria um "assassinato em massa" contar com o compartilhamento dos ventiladores em vez de se esforçar para comprar mais máquinas.
Ele afirma que o mundo deveria aprender com o exemplo da Itália, que não estava preparada para o número de pacientes no auge da epidemia.
"Na minha região, não tivemos a tragédia que houve na Lombardia, não chegamos a esse extremo. Mas a maior parte do meu hospital está dedicada a pacientes positivos para covid-19 e temos falta de ventiladores", relata. "Agora sabemos que nunca nos preparamos o suficiente."
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