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Bolsonaro é 'ameaça' à luta contra o coronavírus no Brasil, diz revista médica The Lancet

Bolsonaro observa apoiadores que foram ao seu encontro em Brasília em meio a pandemia de coronavírus; editorial do periódico inglês Lancet afirma que brasileiros deveriam dizer "E daí" para presidente - AFP
Bolsonaro observa apoiadores que foram ao seu encontro em Brasília em meio a pandemia de coronavírus; editorial do periódico inglês Lancet afirma que brasileiros deveriam dizer 'E daí' para presidente Imagem: AFP

07/05/2020 18h35Atualizada em 08/05/2020 11h44

Um dos periódicos mais influentes do mundo publicou nesta quinta-feira posicionamento afirmando que comportamento do presidente Jair Bolsonaro é 'distração mortal' no meio da pandemia.

Um duro editorial publicado nesta quinta-feira (7) por uma das revistas científicas de medicina mais importantes do mundo, a The Lancet, destaca a gravidade da pandemia de coronavírus no Brasil por sua alta taxa de transmissão - mas, ao lado dos alarmantes números no país, o texto aponta que "talvez a maior ameaça à resposta à covid-19 no Brasil seja seu presidente Jair Bolsonaro".

Com título Covid-19 in Brazil: so what? ("Covid-19 no Brasil: e daí?"), fazendo referência a uma fala recente de Bolsonaro sobre a piora do coronavírus no Brasil, o editorial afirma que as declarações e atitudes do presidente brasileiro e as turbulências políticas que levaram à saída recente de dois ministros do governo, Luiz Henrique Mandetta e Sergio Moro, são "uma distração mortal no meio de uma emergência de saúde pública".

O editorial destaca ainda a vulnerabilidade "especialmente das 13 milhões de pessoas morando em favelas, aqueles que estão desempregados e a população indígena do Brasil" diante do coronavírus. A publicação veio primeiro na versão online, mas o editorial faz parte na edição semanal que será publicada no sábado.

Enorme subnotificação

O texto começa afirmando que o coronavírus chegou mais tarde na América Latina, mas que após seu primeiro caso em fevereiro, o Brasil passou a ter o maior número de ocorrências e mortes pela covid-19 na região.

O editorial aponta como preocupante uma possível e "enorme" subnotificação de casos e o fato de o Brasil ter aparecido como o país com a mais elevada taxa de transmissão (2.81) em um estudo recente da universidade inglesa Imperial College envolvendo 48 países.

"Ainda assim, talvez a maior ameaça à resposta à covid-19 no Brasil seja o seu presidente Jair Bolsonaro. Quando na semana passada jornalistas o questionaram sobre o rápido aumento de casos, ele respondeu: 'E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?'", diz o editorial, relembrando declaração do presidente no final de abril.

"Ele (Bolsonaro) não só continua semeando confusão, desprezando e desencorajando abertamente as medidas sensatas de distanciamento físico e confinamento introduzidas por governadores e prefeitos, mas também perdeu dois importantes e influentes ministros nas três últimas semanas", completa o editorial, referindo-se à saída dos ex-titulares dos ministérios da Saúde e Justiça.

"Uma perturbação como essa no coração da administração (federal) é uma distração mortal no meio de uma emergência de saúde pública e também um sinal drástico de que a liderança do Brasil perdeu sua bússola moral, se é que já teve alguma"

Mas o editorial afirma que, ainda que hipoteticamente esta "lacuna de ações do governo federal" não existisse, o país ainda teria dificuldades pelas fragilidades sociais de sua população - como moradores de favela, com acesso precário à água e com moradias muito adensadas, embora destaque-se que "muitas favelas se organizaram para implementar medidas da melhor maneira possível".

"O Brasil tem um setor de trabalho informal bastante grande, em que a maior parte das fontes de rendimento deixaram de ser opção perante as medidas implementadas (de contenção ao coronavírus). A população indígena já estava sob ameaça séria mesmo antes da chegada da covid-19 porque o governo tem ignorado ou até incentivado a exploração ilegal de minas e de madeira na floresta amazônica."

"Agora, há o risco destes mineiros e madeireiros introduzirem esta nova doença em populações remotas."

'Bolsonaro precisa mudar drasticamente o seu rumo'

O editorial destaca ainda que, embora os principais focos da doença sejam as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, "há sinais de que a infecção está se deslocando para o interior dos Estados, onde estão cidades menores, sem recursos adequados como leitos de terapia intensiva e ventiladores mecânicos."

Por outro lado, o texto do Lancet exalta a mobilização de representantes da sociedade civil, como uma carta aberta liderada pelo fotógrafo Sebastião Salgado e publicada em 3 de maio clamando por proteção aos indígenas; e a atuação da Academia Brasileira de Ciências e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva contra cortes no financiamento da ciência e da assistência social durante o governo Bolsonaro.

"Estas ações trazem esperança. Contudo, a liderança no nível mais elevado do governo é crucial para rapidamente evitar o pior nesta pandemia, como tem sido evidenciado em outros países", finaliza o editorial.

"O Brasil como país deve se unir para dar uma resposta clara ao 'e daí?' do presidente. Bolsonaro precisa mudar drasticamente o seu rumo ou terá de ser o próximo a sair."

Não é a primeira vez que a Lancet publica editoriais sobre o Brasil, e tampouco sobre Bolsonaro.

A revista, fundada em 1823 na Inglaterra, publicou em agosto de 2019 posicionamento intitulado Bolsonaro ameaça a sobrevivência da população indígena no Brasil criticando a ameaça às garantias dos povos indígenas de domínio de suas terras e de acesso à saúde.

Em meio à eleição presidencial de 2018, um editorial da Lancet apresentou em outubro brevemente as propostas dos então candidatos Jair Bolsonaro e Fernando Haddad para a saúde, concluindo que "as propostas de ambos para a saúde são baseadas em abordagens ideológicas com pouca contribuição de dados clínicos ou sobre saúde pública".

Na edição do relatório Journal Citation Reports 2018, da consultoria Clarivate Analytics, o Lancet apareceu como o segundo periódico com maior fator de impacto (métrica composta por vários indicadores da influência de uma publicação científica) dentre 160 revistas avaliadas na categoria medicina, atrás apenas do New England Journal of Medicine.