Vacina contra coronavírus: Por que países ricos imunizaram antes contra H1N1 e como será desta vez
Na pandemia da gripe suína (ou H1N1), os países mais ricos começaram suas campanhas de vacinação meses antes do resto do mundo.
A China iniciou seu plano em setembro de 2009 e os EUA, em outubro. O Brasil só começaria sua vacinação em março do ano seguinte, mês em que também ganharia tração o programa internacional pioneiro de repasse de vacinas para 77 nações mais pobres.
Naquela época, com uma doença considerada moderada e associada ao inverno por ser uma gripe, o fator preponderante para esse descompasso na distribuição era mais geográfico (proximidade do inverno) do que econômico.
Mas dinheiro para comprar milhões de doses, ideologia política e a localização das fábricas de vacina, que agora são fatores cruciais na pandemia de covid-19, também tiveram peso naquela época, segundo especialistas.
Alguns países ricos compraram tantas doses que tiveram que descartá-las ou revendê-las.
Há outra diferença fundamental entre as duas pandemias. O novo coronavírus mata e se espalha durante o ano inteiro, e não majoritariamente no inverno, como aquele novo subtipo do vírus influenza H1N1 de 2009.
Ou seja, todos os países precisam de vacinação contra a covid-19 ao mesmo tempo.
Não se sabe quando surgirá uma vacina, e nem mesmo se haverá uma eficaz e segura. Mas se ela for descoberta, de certo não estará disponível de forma equilibrada para todos nos primeiros meses por causa de gargalos de produção e distribuição e acordos bilionários com fabricantes, por exemplo.
Se de um lado a vacina é considerada a principal chance de conter o espalhamento do coronavírus sem recorrer a mais quarentenas em massa com impacto econômico severo. De outro ela pode nunca ser aprovada e aguardá-la como uma "bala de prata" pode atrapalhar outras medidas que têm funcionado, como distanciamento social e rastreamento de quem teve contato com pessoas infectadas.
Há hoje duas grandes corridas em torno desse objetivo. Uma para desenvolver a vacina, com mais de 170 iniciativas em estudo. E outra para receber milhões de doses primeiro.
Sob forte pressão popular, o presidente americano, Donald Trump, anunciou, por exemplo, ter garantido o estoque inteiro de uma fabricante de vacina por meses,. algo semelhante ao que seu governo fez com estoques inteiros de remédios, equipamentos de proteção e insumos.
A presença de laboratórios em território americano e o investimento de bilhões de dólares em pesquisas e aceleração da produção ampliam ainda mais o poder de compra dos EUA, que têm contratos gigantescos com empresas como Pfizer e BioNTech, Moderna e Johnson & Johnson, AstraZeneca e Novavax.
Até agora, países ricos já reservaram um estoque equivalente a 1,3 bilhão de vacinas de diferentes laboratórios. Mas há também iniciativas envolvendo governos, entidades privadas e órgãos internacionais para tentar garantir que todos os países tenham acesso à imunização ao mesmo tempo.
"Garantir uma vacina para um país ou outro não vai acabar com a pandemia. Há sempre prioridades envolvidas, mas tem que se pensar como um vírus global, que não respeita fronteiras.
As estratégias multilaterais têm que ser priorizadas", defendeu em entrevista à BBC News Brasil a infectologista Cristiana Toscano, representante da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) em Goiás e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Ela é a única brasileira a integrar o grupo de trabalho de vacinas para covid-19 ligado à Organização Mundial da Saúde (OMS). A equipe terá o papel de revisar as evidências disponíveis sobre as candidatas contra a covid-19, além de dar orientações para estratégias e o uso acelerado de vacinas.
"Se não compartilharmos as vacinas com sabedoria, o vírus continuará afetando um grande número de pessoas no mundo, o que significa que todos estaremos mais vulneráveis", afirmou Richard Haass, presidente do centro de estudos do Conselho de Relações Exteriores (Council on Foreign Relations) e ex-diretor de Planejamento de Políticas do Departamento de Estado dos EUA, em entrevista à BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC.
Para a OMS, esse "nacionalismo de vacinas" pode ter consequências nefastas para o mundo.
Como o Brasil está posicionado?
Há pelo menos três frentes em andamento no país para garantir acesso ágil a uma eventual proteção contra a covid-19. Duas delas são parcerias com os principais centros de produção de vacinas do Brasil, com 220 milhões de doses reservadas, e uma envolve coalizão internacional.
Mas antes vale lembrar que ainda não há nenhuma candidata aprovada. Até agora, há somente dados promissores de segurança e eficácia apenas em testes com células, animais e poucos voluntários. Em geral, poucas se mostram seguras e eficazes ao fim do processo.
Há mais de 170 vacinas em desenvolvimento, sendo 5 na terceira fase de testes (a mais avançada, quando segurança e eficácia são avaliadas a fundo). São elas: Astrazeneca-Oxford, Moderna-NIH, Sinovac, Sinopharm e BioNTech-Pfizer-Fosun.
O Brasil negocia a compra de insumos e a transferência de tecnologia de duas delas.
A primeira passa por um acordo entre a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a dupla formada pela farmacêutica suíço-britânica Astrazeneca e a Universidade de Oxford, no Reino Unido, que tem capacidade de produzir 2 bilhões de doses por ano (há 1 bilhão de doses reservadas para países pobres, a serem produzidas na Índia).
O acordo prevê 100 milhões de doses do insumo da vacina, das quais 30 milhões de dezembro de 2020 a janeiro de 2021 para serem envasadas no Brasil e 70 milhões de doses produzidas no país nos dois primeiros trimestres de 2021.
O governo federal publicou uma medida provisória para destinar R$ 2 bilhões à iniciativa, sendo R$ 522 milhões para a ampliação da capacidade de produção da Fiocruz.
A segunda envolve o Instituto Butantan, que representa o governo de São Paulo, e a empresa privada chinesa Sinovac Biotech. O acordo prevê 60 milhões de doses da vacina e transferência de tecnologia, e a administração paulista tenta levantar recursos para dobrar a capacidade de produção anual para 120 milhões de doses.
A terceira frente para garantir vacinas no Brasil é a participação no Covax, que visa garantir acesso rápido e justo à imunização contra a covid-19 para todos os países. A iniciativa, que envolve governos, entidades privadas e laboratórios farmacêuticos, pretende investir em várias candidatas e diversificar o risco de investir em apenas uma potencial vacina que acabe não passando nos testes.
Para Toscano, do grupo de trabalho da OMS, o Brasil está bem posicionado com essas três frentes de atuação, além de contar com outros pontos estratégicos: a enorme capacidade nacional de produção de vacinas (Butantan e Fiocruz poderiam produzir até 320 milhões de doses por ano contra a covid-19) e um sólido programa nacional de imunizações, com histórico bem-sucedido de introdução de novas vacinas na população.
A perspectiva mais otimista, segundo ela, é que pelo menos uma dessas cinco vacinas em fase três de testes esteja disponível a partir de maio de 2021.
Vale lembrar que a eventual aprovação de vacinas poderia levar ao que se chama de imunidade coletiva (ou imunidade de rebanho), quando uma parte significativa da população fica imune e o vírus encontra poucas chances de se espalhar.
Mas isso não representaria o fim da pandemia nem evitaria a transmissão do coronavírus por meses ou anos. É possível, por exemplo, que uma vacina aprovada evite que uma pessoa desenvolva formas graves da doença, mas não a impeça de contrair o vírus.
"Provavelmente o que vai acontecer é que haverá várias vacinas e nenhuma delas será uma solução. Todas as vacinas terão limitações, em termos de número de pessoas que podem ajudar, em termos de efeitos colaterais", afirmou Haass, do Council on Foreign Relations.
"Minha previsão é que mesmo quando uma ou mais vacinas estiverem disponíveis, ainda teremos que continuar a manter distância social, usar máscaras e lavar as mãos e todo o resto dos cuidados. As pessoas exageram nas implicações que as vacinas terão. Uma vacina não vai nos salvar do vírus", acrescentou.
Cada país por si?
Segundo a agência de notícias Reuters, especialistas estimam que a capacidade global de produção é de 2 bilhões de doses de vacinas eficazes contra a covid-19 até o fim de 2021, isso caso sejam aprovadas várias das candidatas em fase final de testes.
Há dois caminhos para um país obter sua fatia. O primeiro é buscar, sozinho ou em bloco, acordos bilaterais com fabricantes. O segundo é integrar uma coalizão internacional que visa a distribuição igualitária dessas doses.
"Se você tentar vacinar os Estados Unidos e a União Europeia inteiros, por exemplo, com duas doses de vacinas, você precisará de quase 1,7 bilhão de doses. Se considerarmos o número de doses disponíveis, não vai sobrar nada para os outros", afirmou à Reuters o epidemiologista Seth Berkley, chefe-executivo da aliança internacional de vacinas Gavi e um dos líderes da iniciativa Covax.
Para Berkley, se 40 países obtiverem vacina e outros 150, não, a pandemia vai incendiar nesses lugares. Por isso, a meta da Covax é garantir 2 bilhões de doses para imunizar 20% da população dos países envolvidos, parte delas a preços acessíveis. A parceria Astrazeneca-Oxford reservou 300 milhões de doses para a coalizão, por exemplo.
Há 78 países interessados em investir recursos na Covax, entre eles Brasil, Reino Unido e Japão, e outras 92 nações mais pobres que seriam subsidiadas. Grandes economias como EUA, China, União Europeia e Rússia sinalizam que não devem aderir à coalizão.
Teme-se que aconteça na pandemia atual um agravamento do que ocorreu em 2009 com a H1N1, quando nações pretendiam imunizar suas populações inteiras em vez de respeitar a orientação internacional de vacinar os mais vulneráveis em todos os países.
A compra excessiva de vacinas e medicamentos levou países europeus à época a tentar descartar vender seus estoques encalhados, entre outros motivos porque a campanha de vacinação não teve a adesão esperada. O governo do então presidente francês Nicolas Sarkozy foi duramente criticado por opositores.
O Reino Unido também havia encomendado o suficiente para imunizar a população inteira do país, 132 milhões de doses, mas nem todas foram utilizadas no país. O mesmo vale para os EUA, que encomendaram inicialmente 250 milhões de doses.
A diferença é que a H1N1 era menos severa que a covid-19, e a indisponibilidade temporária teve impacto reduzido em infecções e mortes. Diferentemente do que pode acontecer na pandemia atual.
Para a organização não governamental Médicos Sem Fronteiras, acordos bilaterais como a reserva de 90 milhões de vacinas contra a covid-19 feitas pelo Reino Unido colaboram com a "tendência perigosa do nacionalismo de vacinas".
"Isso não apenas vai reduzir os estoques globais de vacinas para grupos vulneráveis de países pobres como também mina os esforços globais para coordenar suprimentos de vacina a fim de garantir que sejam vacinados primeiro os grupos prioritários de todos os países", afirmou a entidade em nota.
Outros temem que a enorme pressão pelo desenvolvimento de vacinas pode levar governos como o de Trump a iniciarem campanhas de imunização em massa em caráter emergencial sem atender a todos os pré-requisitos de segurança e eficácia.
Segundo o jornal "The New York Times", membros da campanha de reeleição de Trump chamam de "santo graal" a aprovação de uma vacina antes da votação em 3 de novembro. O governo americano descartou qualquer hipótese de acelerar esse processo sem respeitar requisitos técnicos.
Em abril, a OMS divulgou um documento com diversos critérios para a autorização de uma vacina, em cenários preferíveis e aceitáveis. Espera-se, por exemplo, que uma eficácia de mais de 70% dos vacinados, mas seriam aceitas demonstrações claras de que ao menos 50% dos vacinados ficam de fato imunizados. Outro ponto é a duração dessa proteção: espera-se pelo menos 1 ano, mas aceitaria-se um período de seis meses.
Vacinação contra H1N1 apontou caminhos para colaboração internacional
O primeiro caso de H1N1 foi registrado oficialmente em abril de 2009 no México. Dois meses depois a doença seria classificada como pandemia pela Organização Mundial da Saúde, a primeira desde 1968. A classificação se deu mais pelo espalhamento da doença em diversos lugares ao mesmo tempo do que por sua gravidade, considerada moderada à época.
Os vírus influenza do grupo A, do qual o subtipo de H1N1 identificado em 2009 faz parte, sofrem mutações frequentes e produzem novas cepas contra as quais não temos imunidade. Em quatro meses, havia casos registrados em mais de 120 países.
A primeira campanha de vacinação ocorreu na China em setembro e nos EUA em outubro daquele ano. No Brasil, a imunização massiva iria de março a maio de 2010.
Fernando Spilki, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, explica que a prioridade natural à época da distribuição de vacinas era para países que enfrentariam o inverno, estação considerada alta temporada de gripes porque o vírus influenza sobrevive mais no frio e as pessoas costumam passar mais tempo em lugares fechados, entre outros fatores.
"Em 2009 o pico do número de casos foi ao redor de maio-junho na maior parte do Brasil e entre julho e agosto na região Sul. Em outubro, a situação já estava bem mais controlada e realmente se esperava o retorno de uma atividade mais alta do vírus, com novas ondas no ano seguinte", explica Spilki.
Segundo ele, a vacinação em massa no Brasil teve um papel significativo na redução da magnitude das ondas de infecções em 2010 e 2011.
Ao custo de R$ 1,8 bilhão em valores atuais, o plano de imunização do Brasil contra o H1N1 incluía doses importadas e produzidas pelo Instituto Butantan, em São Paulo.
Seriam imunizados 80% dos grupos prioritários, que somavam 92 milhões de pessoas divididas em cinco fases nesta ordem:
- profissionais de saúde e indígenas
- gestantes, crianças e pessoas com doenças crônicas
- adultos de 20 a 29 anos
- idosos
- adultos de 30 a 39 anos
(O plano de imunização contra a covid-19 ainda não foi traçado, mas deve seguir a mesma linha, mesmo que as crianças não estejam no grupo de risco do novo coronavírus.)
Por outro lado, o Brasil também participaria como doador de uma iniciativa pioneira coordenada pela Organização Mundial da Saúde, a primeira resposta internacional contra uma pandemia de gripe para garantir recursos a países mais pobres.
Em 2009, houve um pleito inicial de 200 milhões de doses a países e laboratórios doadores, mas no fim das contas foram distribuídas 78 milhões de doses, quase 70% delas para países da África e do Sudeste Asiático.
O montante seria o suficiente para imunizar 10% da população dos países beneficiados e também para ajudar a conter novas ondas de infecção.
A pandemia de H1N1 chegaria ao fim em agosto de 2010. Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC), a doença matou entre 151 mil e 575 mil pessoas no primeiro ano de disseminação, sendo 80% das vítimas com menos de 65 anos.
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