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3 erros que levaram à falta de vacinas contra covid-19 no Brasil

Primeira etapa de vacinação alcançou menos 6 milhões de brasileiros por causa da escassez de imunizantes e do desperdício de doses - EPA/ANTONIO LACERDA
Primeira etapa de vacinação alcançou menos 6 milhões de brasileiros por causa da escassez de imunizantes e do desperdício de doses Imagem: EPA/ANTONIO LACERDA

Nathalia Passarinho

Da BBC Brasil, em Londres

23/02/2021 17h45

Enquanto imagens de idosos recebendo injeção traziam esperança de avanços no combate à covid-19, notícias sobre desperdício de doses e falta de vacinas evidenciavam os erros de planejamento que levariam a atrasos na imunização da população brasileira.

O primeiro mês de vacinação contra a covid-19 no país contou com a distribuição de apenas 12 milhões de doses, o suficiente para atender a 6 milhões de pessoas. Isso representa menos de 3% da população brasileira.

Várias cidades, como Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador, Cuiabá e Curitiba chegaram a suspender a vacinação, por causa da falta de doses.

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam três erros do governo federal que teriam contribuído para a escassez de vacinas. E alertam que problemas de abastecimento devem se repetir ao longo do ano.

"O Brasil teria condições de ter uma oferta muito maior de vacina se nós tivéssemos feito o que outros países fizeram, como, por exemplo, o Chile. O Chile hoje tem três doses de vacina por habitante, só que ele começou a comprar vacina em setembro", disse Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e fundador da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

"Nós não começamos a comprar vacina cedo. O governo federal não fez nenhuma aposta. Se não fosse pelo Butatan e a Fiocruz (respectivamente, responsáveis no país pelas vacinas CoronaVac e Oxford-AstraZeneca) não teríamos nenhuma vacina", critica.

Governo não comprou vacinas em 2020

Tanto Gonzalo Vecina Neto quanto a a epidemiologista Ethel Maciel dizem que o primeiro e maior erro foi o governo federal foi não comprar vacinas antecipadamente, ainda em 2020.

No meio do ano passado, quando fabricantes anunciaram que estavam desenvolvendo vacinas, vários países como Chile, Colômbia, Reino Unido e integrantes da União Europeia negociaram a compra desses produtos ainda na fase de testes.

Era uma aposta. A pesquisa podia dar errado, mas fechar o contrato antes significava garantir acesso às doses.

Uma das estratégias para minimizar o risco, diz Ethel Maciel, seria montar uma cesta variada de vacinas. Por exemplo, comprar doses da Oxford-AstraZeneca, CoronaVac, Pfizer e Moderna.

"O Brasil não fez isso e ainda recusou um acordo proposto pela Pfizer que garantiria 70 milhões de vacinas em dezembro", afirma a epidemiologista, que é professora da Universidade Federal do Espírito Santo.

Ao falar sobre o fracasso das tratativas com a Pfizer, o governo brasileiro argumentou que as cláusulas propostas eram abusivas.

Em nota, o Ministério da Saúde citou como exemplo o fato de a Pfizer exigir que, em caso de desavença com o governo brasileiro, as negociações de arbitragem teriam que se pautar nas leis de Nova York, não nas do Brasil.

Outro ponto mencionado pelo governo brasileiro foi a exigência da Pfizer de assinatura de um termo de responsabilidade para isentar a fabricante de penalização civil por eventuais efeitos colaterais graves da vacina.

A Pfizer rebateu, também com a divulgação de nota, dizendo que esses mesmos termos foram aceitos por outros países que compraram a vacina, entre eles Estados Unidos, Colômbia, Chile, Reino Unido, Japão, Equador e a União Europeia.

Fiocruz e Butantan assumiram riscos

Enquanto o governo federal hesitava em negociar a compra antecipada de imunizantes, os institutos de pesquisa Fiocruz e Butantan tomaram essa iniciativa.

A Fiocruz iniciou tratativas para comprar a Oxford-AstraZeneca, enquanto o Butantan negociou com a chinesa Sinovac a transferência de tecnologia para produzir a CoronaVac.

Depois de conseguirem acordos com as fabricantes estrangeiras, ambos apresentaram as propostas ao governo federal.

O governo Jair Bolsonaro aceitou a proposta da Fiocruz, mas, em outubro do ano passado, rejeitou uma proposta do Butantan que previa a entrega de 45 milhões de doses da CoronaVac até dezembro de 2020 e outras 15 milhões no primeiro trimestre de 2021- isso garantiria ao menos 60 milhões de doses na primeira fase de vacinação.

Na época, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, defendeu fechar o acordo, mas o presidente Jair Bolsonaro foi contra. Pesaram na decisão uma disputa política com o governador de São Paulo, João Doria, e a pressão de militantes de direita que levantavam desconfiança sobre uma vacina produzida na China.

"Da China nós não compraremos. É decisão minha. Eu não acredito que ela transmita segurança suficiente para a população pela sua origem. Esse é o pensamento nosso", disse Bolsonaro no dia 21 de outubro, em entrevista à rádio Jovem Pan.

Depois, em janeiro, o presidente Jair Bolsonaro voltou atrás e firmou acordo para comprar as vacinas do Butantan. O problema é que essa demora na negociação atrasou, também, o calendário de entrega dos produtos.

Isso porque a capacidade de produção do Butantan, assim como a da Fiocruz, esbarra no ritmo de importação de insumos da China.

"O Butatan levou a proposta e, num primeiro momento, o Ministério da Saúde disse sim, depois disse que não, porque Bolsonaro foi contra a compra de uma vacina chinesa. E aí ficou toda aquela discussão no ano passado de se era vacina do Doria ou do Bolsonaro. Isso gerou um grande desgaste ao Butantan e atrasou importações da China", relembra o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto.

No final das contas, só foram disponibilizadas, em janeiro e fevereiro, 9,8 milhões de doses da CoronaVac (Sinovac/Instituto Butantan) e 2 milhões de doses da vacina Oxford-AstraZeneca.

E por que o governo não compra, agora, de outras fabricantes?

O problema é que, como o Brasil largou atrasado na negociação, grandes fabricantes, como Pfizer e Moderna, já venderam para outros países a grande maioria dos seus lotes.

Segundo Vecina Neto, restou para o Brasil apostar agora em vacinas que ainda despertam desconfiança pela falta de transparência nos estudos ou que não concluíram a última etapa de pesquisa, como a russa Sputnik V e a indiana Covaxin.

A Sputnik V, especificamente, já foi alvo de críticas internacionais pela falta de transparência no processo de fabricação do imunizante. Mesmo na Rússia o ritmo de vacinação começou lento, porque a população questionava a eficácia da vacina.

No início do mês, o instituto Gamaleya de Pesquisa da Rússia alcançou uma etapa importante em comprovar a eficácia da vacina, ao publicar um estudo na revista científica Lancet mostrando percentual de 91% de proteção.

Só que tanto essa vacina quanto a indiana Covaxin não divulgaram ainda os resultados da fase 3 de testes, quando o imunizante é aplicado num grupo grande e heterogêneo de voluntários, para verificar reações adversas, por exemplo.

Falta de definição sobre quem deveria ser vacinado antes

O segundo erro, que poderia ter mitigado as consequências da escassez de vacinas, foi a falta de uma definição sobre quem deveria receber a vacina primeiro, dentro do grupo de prioridades.

Ou seja, quem é a prioridade das prioridades. O governo federal elaborou uma enorme lista de grupos prioritários que, juntos, somam 77,2 milhões de pessoas. Lá há desde idosos com mais de 90 anos a profissionais de saúde, caminhoneiros, profissionais da área da educação e militares.

Quem deveriam ser as 6 milhões de pessoas imunizadas com as doses disponíveis?

"Não tinha uma ordenação de quem deveria receber a vacina primeiro. No cenário de escassez total, quem seria a prioridade das prioridades? O governo federal não tomou essa decisão", diz a Ethel Maciel, que é professora da Universidade Federal do Espírito Santo.

Como não houve uma coordenação federal, cada município criou as próprias regras e surgiram distorções. Por exemplo, a lista do governo federal inclui "trabalhadores da saúde", mas não especifica quais se enquadrariam na prioridade.

Na ausência de uma definição, esteticistas, psicólogos, dermatologistas, veterinários e até instrutores de pilates foram vacinados antes de idosos com mais de 80 anos em algumas cidades.

Diante dessa situação, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, determinou, no dia 8 de fevereiro, que o governo federal divulgasse a ordem de preferência dentro do grupo prioritário.

Mas àquela altura, as doses da primeira remessa já estavam acabando. "A gente deixou de vacinar os idosos para vacinar uma amplitude muito grande de profissionais de saúde que nem estavam na linha de frente", lamenta Ethel Maciel.

Falta de treinamento provocou desperdício de doses

O terceiro erro, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, foi a falta de treinamento e orientação às equipes que administram a vacina.

Não houve uma campanha nacional de vacinação, com informações à população e treinamento específico às equipes dos postos de saúde, destacam Ethel Maciel e Gonzalo Vecina Neto.

Em alguns municípios, profissionais de saúde relataram desperdício de doses, especialmente nas cidades que decidiram escalonar por idade.

No Rio de Janeiro, foi amplamente noticiado que doses da Oxford-AstraZeneca foram jogadas fora por causa do baixo comparecimento de idosos em algumas áreas da cidade.

Uma vez aberto o frasco para colocar nas seringas, o conteúdo da vacina de Oxford só tem validade por seis horas. Já a CoronaVac dura oito horas depois de aberto o frasco.

Como não havia orientação clara sobre o que fazer na ausência do grupo-alvo da vacinação, as doses que sobravam nos recipientes abertos foram perdendo a validade.

Ou seja, além de termos pouca vacina, a falta de orientação aos profissionais levou a uma redução ainda maior do estoque.

Segundo Ethel Maciel, seria o caso de orientar que, em situações assim, é melhor administrar a vacina em quem estiver por lá, por exemplo, no acompanhante do idoso, a desperdiçar as doses.

"O que a gente começou a ver no Brasil? Várias doses desperdiçadas. A gente abriu um espaço muito grande para a judicialização, com a falta de instruções claras, e não houve uma informação, um treinamento para as pessoas na sala de vacina sobre o que fazer com os frascos abertos", afirma epidemiologista.

Brasil teria condições de imunizar 60 milhões por mês

Segundo Gonzalo Vecina Neto, que já foi secretário Nacional de Vigilância Sanitária, se o Brasil tivesse vacina e um planejamento prévio mínimo, o Sistema Único de Saúde teria condições de imunizar até 60 milhões de pessoas por mês.

Como existem 159,1 milhões de brasileiros com mais de 18 anos, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2019, seria possível concluir as duas doses, diz Vecina Neto, em meados de julho. Por enquanto, as vacinas contra covid-19 não são administradas em crianças e adolescentes, por isso o cálculo só considera adultos.

"Temos hoje 38 mil unidades básicas de saúde com pelo menos uma sala de vacinação com geladeira especializada em módulos, que conserva a temperaturas de dois a oito graus. Na pior das hipóteses, se consegue vacinar 10 pessoas por hora", explica Vecina Neto.

"Se vacinarmos 10 pessoas por hora, num dia de trabalho de oito horas, dá 80 vacinas. Então, eu tenho condição teórica de vacinar 3 milhões de pessoas por dia útil. Isso para 20 dias úteis, tenho condições de vacinar, em um mês, sem fazer muito esforço, 60 milhões de pessoas", calcula.

O Ministério da Saúde diz que reservou mais 364,9 milhões de doses de vacinas com o Butatan, a Fiocruz e o consórcio internacional Covax Facility, ligado à Organização Mundial da Saúde. Mas a distribuição desses lotes vai ocorrer ao longo do ano.

"A nossa experiência com a vacina da gripe mostra que temos capacidade de imunizar rapidamente. No ano passado, em 2020, vacinamos 80 milhões em três meses. Temos condições de fazer. O que falta? Faltam vacinas", lamenta Gonzalo Vecina Neto.