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Matar cachorro não evita expansão da leishmaniose, dizem especialistas

Parasita causador da leishmaniose visceral; Brasil, Bangladesh, Índia e Sudão concentram 90% dos casos da doença no mundo, segundo pesquisadores - Fiocruz
Parasita causador da leishmaniose visceral; Brasil, Bangladesh, Índia e Sudão concentram 90% dos casos da doença no mundo, segundo pesquisadores Imagem: Fiocruz

Tatiana Pronin

Do UOL, em São Paulo

22/11/2012 07h00Atualizada em 23/11/2012 12h05

Quem tem cachorro em casa e vive em uma área onde a leishmaniose visceral é uma ameaça já conhece a rotina. De tempos em tempos, equipes da prefeitura vêm visitar o bairro e pedem para ver os animais. Se algum apresentar sinais de doença, logo é requisitado para fazer exame. Se o resultado for positivo, a sentença é o sacrifício.

Adotada desde a década de 1950 no Brasil, a eutanásia de cães tem sido questionada pela comunidade científica pela ineficácia em conter a leishmaniose visceral, também chamada de calazar. Mas a questão é complicada: apesar de afirmarem que a medida não evita a expansão da doença, especialistas ouvidos pelo UOL dizem que também optariam pelo sacrifício caso tivessem um animal doente em casa.

A falta de eficácia da medida como política de prevenção pode ser vista a olho nu: em 1990 foram registrados 1.944 casos da doença no país, número que subiu para uma média de 3.500 a partir de 2004 e se mantém nesse patamar até hoje.

A letalidade da doença (taxa que indica a proporção de mortes por número de casos) só aumenta: passou de 3,2, em 2000, para 6,2 no ano passado, segundo dados do Ministério da Saúde. Isso significa que, a cada 100 pessoas infectadas, 6,2 devem morrer.

Para o médico e pesquisador Carlos Henrique Costa, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical e professor da Universidade do Federal do Piauí, o Brasil é um dos poucos países que ainda adota o sacrifício de cães em larga escala como forma de controlar a leishmaniose visceral.

Revisão ignorada

Em um trabalho publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, Costa conta que uma revisão de estudos feita pela OMS - que atestava a ineficiência da eutanásia de cães - foi apresentada em um encontro em setembro de 2009, no qual estiveram presentes autoridades brasileiras.

“O sacrifício de cães parece ser a intervenção menos aceitável em nível comunitário, por razões óbvias, e tem baixa eficácia devido ao alto índice de reposição dos animais e outros obstáculos culturais”, concluía o texto. É o que acontece na prática: depois que perde o cachorro para a doença, o proprietário logo adquire outro. E, como o vetor continua na região, o novo animal é rapidamente infectado.

Cerca de 10 dias após o encontro, o Ministério da Saúde consultou um fórum de experts e decidiu reafirmar a política de sacrificar cães infectados. O relatório ignora completamente a revisão da OMS e reitera a importância de se eliminar os cães para controlar a enfermidade.

Segundo Costa, o Brasil “escolheu” usar como referência bibliográfica os estudos favoráveis à eutanásia de cães. Para dar uma ideia de como os dados podem ser enviesados, ele cita o exemplo da China, que praticamente conseguiu extinguir a leishmaniose visceral quando começou o regime comunista. A epidemia, na época, parecia incontrolável e os chineses decidiram atacar com uso extensivo de DDT, tratamento de humanos doentes e sacrifício de cães.

De acordo com o médico, a impressão geral foi de que a morte de animais teve impacto positivo na China, mas na verdade não houve uma análise do efeito da medida de forma isolada.

“A Organização Mundial da Saúde (OMS) fez uma revisão sistemática de estudos e a conclusão é que não existem evidências de que matar cachorro controla o calazar”, diz (veja quadro ao lado). “E o Código Sanitário Internacional diz que não se pode adotar uma política pública sem que haja comprovação científica”, alfineta.

Costa alerta que, além de ineficaz, matar os animais pode ter até efeito contrário ao que se espera. Isso porque, durante o rastreamento para eutanásia de cães infectados, muitas vezes são sacrificados também animais que têm o parasita, mas não desenvolvem sintomas. Mortos, eles deixam de se reproduzir e gerar indivíduos resistentes à doença. A longo prazo, sobram apenas cães sensíveis, o que poderia agravar ainda mais o cenário.

Por último, é preciso considerar que, embora seja o principal reservatório, o cão não é o único. Animais silvestres, como a raposa e o cachorro-do-mato, também transmitem a doença. Pesquisas também já encontraram o agente da leishmaniose visceral em gatos, embora se acredite que os felinos sejam mais resistentes ao protozoário.

Tratamento vetado

Muitos proprietários de cães e veterinários são contrários à eutanásia compulsória e procuram tratar os animais diagnosticados com a doença. Os recursos, no entanto, são limitados. A Portaria  nº 1.426, de 2008, publicada pelos ministérios da Saúde e da Agricultura, proíbe o uso de medicamentos contra a leishmaniose visceral de uso humano, ou seja, os mais eficientes.

A veterinária Fernanda Kerr, que atua na ONG Arca Brasil, de proteção a animais, conta que há tratamentos alternativos que trazem resultados bastante positivos quando o cão é jovem e a doença é descoberta cedo. “A eutanásia deve ser uma decisão do proprietário e do veterinário, mas é tirado deles o direito de decidir”, lamenta.

Ela acrescenta, também, que o teste de diagnóstico usado no rastreamento é impreciso e pode gerar falsos positivos. “O único exame definitivo é a punção da medula ou de outros órgãos, o que é inviável para o sistema público”, explica. Há, inclusive, um estudo publicado nos Cadernos de Saúde Pública, em 2004, que analisou rastreamentos realizados em Minas Gerais de 1993 a 1997 -  dentre 15.117 testes identificados como positivos, 12.925 eram falsos positivos.

Kerr defende que o dinheiro gasto para fazer exames e sacrificar animais poderia ser investido em prevenção. “Há diversos produtos disponíveis no mercado, como coleiras e repelentes, e para todos os bolsos”, comenta. Uma campanha lançada pela ONG também alerta para outras medidas para evitar que o cão seja picado, como mantê-lo dentro de casa entre 18h e 6h.

A veterinária também afirma que existe uma vacina contra a leishmaniose canina que diminui a chance de infecção e também é usada para controlar os sintomas. Ela só está disponível em clínicas particulares e cada dose custa de R$ 80 a R$ 120 (são necessárias três).

Costa e outros especialistas ouvidos pelo UOL, no entanto, avisam que faltam estudos com mais indivíduos para garantir a eficácia da vacina. O próprio Ministério da Saúde também não recomenda a vacina por considerar que ainda não há provas de que ela proteja humanos. Vale lembrar que uma vacina para cães chegou a obter aprovação do Ministério da Agricultura.

Autorização judicial

Casos recorrentes de proprietários que conseguem resultados positivos com medicamentos de segunda linha têm feito com que muita gente recorra à Justiça e consiga autorização para tratar o animal. O advogado e veterinário André Fonseca, de Campo Grande (MS), tem vários clientes que conseguiram.

Finais diferentes para quem teve o cão diagnosticado com a doença

  • Antonio da Silva, de Belo Horizonte (MG), conta que não precisou entrar na Justiça para tratar seu cachorro, um maltês chamado Luan (na foto), diagnosticado com leishmaniose visceral. “Aqui não são tão severos”, comenta.

    Luan está assintomático há cinco anos, graças a um medicamento veterinário de uso diário, o alopurinol. O maltês usa coleira com repelente e até já cruzou nesse período. “No ano passado, eu até deixei o pessoal da prefeitura fazer o exame nele e deu negativo para a doença”, comemora.

    Já a enfermeira Simone Ferreira, de Araçatuba (SP), perdeu dois animais de estimação por causa da leishmaniose visceral. A primeira, Pretinha, foi diagnosticada pela equipe da prefeitura em 2005. A proprietária chegou a fazer a contraprova em uma clínica particular, que confirmou a doença.

    Dois anos depois, outro cachorro de Simone pegou a doença. “As unhas cresceram, ele emagreceu e não conseguia se alimentar direito”, descreve, com tristeza. “Não gosto nem de lembrar.” Por saber que o tratamento não tem garantia de sucesso, ela deixou o animal ser recolhido para eutanásia. “Tem uma escola na frente de casa e crianças na vizinhança – por mais que a gente ame o cachorro, tem que pensar em tudo isso.”

Na capital, que apresenta altos índices de infecção, muitos proprietários tomam atitudes extremas para não perder o bicho de estimação.

Fonseca já ouviu casos, por exemplo, de gente que  tenta comprar remédios de uso humano por contrabando, da Europa (lá o tratamento dos cães com leishmaniose é permitido). E de proprietários que mandam o cachorro doente para uma cidade com menos vigilância.

Dilema difícil

À primeira vista, tantos argumentos contrários ao sacrifício de cães – inclusive referendados pela Justiça – levam à impressão de que o Ministério da Saúde é um vilão que não gosta de animais. Mas a questão não é tão simples.

O biólogo Paulo Ribolla, professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Botucatu, atesta que a eutanásia de cães é uma medida falha para evitar a expansão da doença, como indicam os estudos. “Mas se meu cão estiver infectado, não vou querer que ele conviva com os meus filhos”. Seu animal de estimação, por sinal, usa coleira com repelente.

O parasitologista Reginaldo Brazil, do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio, é da mesma opinião. Como pesquisador que inclusive já teve a doença, entende que a eutanásia de cães não funciona como política de prevenção. Mas admite, também, que se tivesse um animal com a doença em casa optaria pelo sacrifício.

Ambos os especialistas explicam que o animal doente, quando recebe tratamento, pode até ficar livre de sintomas, mas não se livra completamente do parasita. Por isso, existe a risco de, mesmo tratado, o cão infectar o vetor e alimentar o ciclo de transmissão da doença.

Um crítico mais irônico pode alegar que tratar humanos, portanto, também não faria sentido. “Aparentemente o ser humano não é um bom reservatório”, responde Brazil. Embora pesquisas indiquem que pessoas doentes possam contaminar o mosquito, um ser humano tratado não teria esse potencial.

Qual a saída, então?

Os estudos mostram que a leishmaniose visceral é uma doença difícil de ser combatida. Para piorar, o parasita e o vetor têm características diferentes em outros países que sofrem com a enfermidade  – o que funciona em outro continente pode não valer para o Brasil. Mas os pesquisadores concordam que, em vez de eliminar o reservatório (o cão), o combate ao vetor e as pesquisas com vacinas deveriam ser prioridade.

A reportagem do UOL pediu para conversar com um representante do Ministério da Saúde sobre as críticas à política de eutanásia de cães. A assessoria de imprensa informou que não havia ninguém da área técnica disponível para dar entrevista e limitou-se a enviar informações por e-mail.

A pasta argumenta que a eutanásia é uma forma de controle recomendada em diversos documentos da OMS. E reitera que o tratamento dos cães não combate a transmissão da doença e gera o risco de resistência do parasita aos medicamentos.

Há um estudo feito no Irã que demonstrou a eficácia do uso de coleiras repelentes – medida que foi mencionada pelos especialistas. O Ministério da Saúde informou que está financiando um estudo para avaliar o impacto dessa ferramenta no controle da doença em municípios com transmissão intensa. De qualquer forma, o produto apenas afasta o vetor, não acaba com ele.

Destinação correta do lixo e limpeza de terrenos baldios são outras medidas importantes que evitariam a doença, como aponta o professor da Unesp.

Mas, assim como ocorre com a dengue, o ministério enfatiza medidas que devem ser tomadas pela população: “É fundamental a limpeza de quintais através da retirada de matéria orgânica (folhas, troncos, restos de vegetação), lixo, limpeza periódica dos abrigos de animais domésticos e, se possível, manter os abrigos afastados da casa. Recomenda-se, também, como forma de impedir que o vetor se instale no intradomicílio, o uso de telas de malha fina em janelas e portas”.