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Síndrome de Ulisses afeta imigrantes e pode ser confundida com depressão

Imigrante aguarda em acampamento improvisado em Ventimiglia, na Itália, perto da fronteira com a França - Valery Hache/AFP
Imigrante aguarda em acampamento improvisado em Ventimiglia, na Itália, perto da fronteira com a França Imagem: Valery Hache/AFP

Mirthyani Bezerra

Do UOL, em São Paulo

29/06/2015 06h00

O sofrimento sentido pelo herói Ulisses, e descrito pelo poeta grego Homero em "Odisseia", tem semelhanças com os sintomas de uma síndrome pouco conhecida no Brasil, que atinge imigrantes e pode ser confundida com depressão, transtorno pós-traumático ou de adaptação. É a síndrome de Ulisses, também chamada de Síndrome do Imigrante com Estresse Crônico e Múltiplo, estudada desde o início dos anos 2000 pelo professor titular da Universidade de Barcelona, Joseba Achotegui.

No poema épico de Homero, provavelmente escrito no século 8 a.C., Ulisses é consumido pelo choro, lamento e tristeza enquanto vive a sua saga de quase duas décadas de volta a Ítaca, na Grécia, após lutar na Guerra de Troia. Milhares de pessoas vivem hoje uma situação parecida, obrigadas a viverem longe das suas casas, fugindo de conflitos éticos, políticos, religiosos e da extrema pobreza. A ONU (Organização das Nações Unidas) estima que apenas em 2015 mais de 100 mil pessoas tenham chegado à Europa através do mar Mediterrâneo, principalmente com destino a Itália, Grécia, Malta e Espanha. Em São Paulo, ao menos 30 novos haitianos chegam todos os dias ao bairro do Glicério, na região central.

Segundo o autor do livro "12 características específicas do estresse e duelo migratório" (sem tradução para o português), esses imigrantes não sofrem de uma enfermidade mental, mas desenvolvem uma reação aos estresses múltiplos e crônicos a que são submetidos. O diagnóstico equivocado pode levar a tratamentos inadequados, com efeitos secundários e danosos à saúde, além de gastos desnecessários ao sistema de saúde pública. Em artigo publicado em 2008 na "Advances in Relational Mental Health", Achotegui afirma que, embora não seja uma doença, a síndrome pode conduzir a problemas físicos e mentais, que, em curto prazo, como insônia, dores de cabeça, fadiga, falta de memória e confusão mental.

O UOL conversou com o professor e secretário geral da seção de Psiquiatria Transcultural da Associação Mundial de Psiquiatria sobre o tema. Na entrevista, Achotegui, que é membro da Associação Rede Ateneia, formada em 2010 por pesquisadores internacionais para trabalhar o tema da saúde mental dos imigrantes em situação extrema, explicou o que é a síndrome, suas implicações para os sistemas de saúde e falou sobre a atual crise migratória. A reportagem tentou repercutir os estudos do espanhol com pesquisadores brasileiros, mas não há pesquisas sobre o tema no Brasil.

UOL: O que é a síndrome de Ulisses e como reconhecê-la?

Joseba Achotegui: A síndrome de Ulisses é um quadro de estresse muito intenso ligado a fatores específicos relacionados à migração, que são basicamente a solidão forçada, não ter chances de crescimento no país de acolhida, submeter-se a condições difíceis de sobrevivência, estar constantemente com medo e desamparado. Essa é uma situação que muita gente está vivendo neste momento e que forma a base para o surgimento da síndrome. É importante dizer, porém, que não é uma doença. Ela se desenvolve em pessoas sãs, mas que apresentam certos sintomas, como problemas para dormir, dores de cabeça, nervosismo e tristeza.

UOL: Pessoas acometidas pela síndrome podem desenvolver transtornos mentais?

Joseba Achotegui: Sim, porque as coisas evoluem. Algumas pessoas podem ficar doentes, adquirir uma enfermidade depressiva. O mais frequente é se envolverem com alcoolismo e terem problemas de dependência química, pois viver em condições extremas durante anos é algo muito difícil. Alguns imigrantes ficam doentes mentalmente, com depressão, psicose, mas a maioria não. Minha teoria é que a maioria deles é forte, capaz e apesar de viver em condições extremas, não ficam doentes, mas desenvolvem um quadro reativo a esse estresse crônico.

UOL: Os profissionais de saúde mental estão preparados para lidar com o imigrante?

Joseba Achotegui: Os sistemas de saúde se equivocam e muitas vezes confundem esses sintomas com doenças mentais, os profissionais tendem a "psiquiatrizar" o problema. Por isso, é importante que se entenda que não é uma doença mental, mas um quadro de estresse crônico e múltiplo que requer apoio, ajuda, e não uma intervenção psiquiátrica.

Os profissionais precisam desenvolver nesses imigrantes o que chamamos de técnicas psicoeducativas, que os ajudem a dormir melhor, para que estejam mais relaxados, expressem o que estão sentindo, para que aprendam a se relacionar com as outras pessoas desse país ao qual acabam de chegar. E, claro, é preciso construir um mundo melhor para que essas coisas não aconteçam, para que as pessoas não sejam obrigadas a se submeter a situações tão extremas.

UOL: A síndrome pode se desenvolver em alguém que deixou seu país para estudar fora ou por receber uma proposta de emprego?

Joseba Achotegui: Imigrar com a família, com trabalho certo, como já aconteceu em movimentos migratórios anteriores, não gera a síndrome. Por isso, uma pessoa que recebeu uma bolsa de estudos na Espanha, ou Estados Unidos, por exemplo, mas tem a possibilidade de voltar para ou levar a família, que pode caminhar sem medo nas ruas porque está legalmente no país, não tem a possibilidade de desenvolver a síndrome de Ulisses.

O problema está na imigração em condições extremas, como as ondas que estamos vivendo hoje. Aqui na Espanha, e em toda a Europa, estamos vivendo a chegada de muitos imigrantes vindos da África, fugindo das guerras no Oriente Médio. Esses imigrantes vivem uma situação de desamparo extremo. Aqui, o governo está tentando desenvolver programas de ajuda, mas ainda há entraves.