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Como funciona a eutanásia no Brasil?

Em cena da série "Justiça", Maurício pratica eutanásia na mulher Beatriz após acidente - Reprodução/TV Globo
Em cena da série "Justiça", Maurício pratica eutanásia na mulher Beatriz após acidente Imagem: Reprodução/TV Globo

Camila Neumam

Do UOL, em São Paulo

06/10/2016 06h00Atualizada em 06/10/2016 16h00

O ator Cauã Reymond interpretou um personagem polêmico na série "Justiça", da TV Globo. Na história, o contador Maurício dá uma injeção letal na mulher Beatriz, a pedido dela, depois que um acidente de carro a deixa tetraplégica. Ele é preso e condenado --o que provavelmente também aconteceria se fosse uma história real, porque a eutanásia é considerada crime de homicídio no Brasil.

De acordo com o Código Penal brasileiro, as penas para quem causa a morte de um doente podem variar de dois a seis anos, quando comprovado motivo de piedade, a até 20 anos de prisão.

Na eutanásia, alguém, geralmente o médico, provoca a morte de um doente terminal após o consentimento dele ou de parentes --a injeção letal mostrada na série é um exemplo de como fazê-la.

Já quando o paciente tem sua medicação ou tratamentos suspensos (por já não serem efetivos ou até prejudicarem o paciente), ele opta pela ortotanásia, uma prática não prevista por lei, mas permitida no Brasil por uma resolução do Conselho Federal de Medicina.

Ambas as práticas diferem do conceito de suicídio assistido, que é quando o próprio paciente tem autorização de interromper a vida se tiver uma doença incurável, por exemplo.

Nem todos os países encaram a eutanásia da mesma forma. Holanda, Suíça, Canadá, Colômbia e Estados Unidos, por exemplo, permitem a morte dependendo do caso. Na Bélgica, a eutanásia é permitida desde 2002.

Marieke Vervoort, do atletismo belga, medalhista olímpica em Londres - Francois Nel/Getty Images - Francois Nel/Getty Images
A atleta paralímpica belga Marieke Vervoort tem autorização para eutanásia
Imagem: Francois Nel/Getty Images

Por isso, a atleta belga Marieke Vervoort, 37, chegou a declarar publicamente que pretende pedir a eutanásia. Ela sofre de uma doença degenerativa progressiva que provoca dores intensas, ataques epiléticos e perda de visão.

Vervoort aposentou-se após participar dos Jogos Paraolímpicos do Rio de Janeiro e diz que ainda não decidiu quando vai usar o documento que a autoriza legalmente a recorrer à morte assistida.

"Você precisa ir a vários médicos, se consultar com psiquiatra, precisa provar que não pode mais viver com isso e que não tem chances de melhorar. Você precisa da assinatura de três diferentes médicos e precisa provar ao psiquiatra que é realmente o que você quer. É muito difícil", explicou ela, recentemente. "Eu tenho uma doença progressiva. Se você me visse anos atrás, eu era capaz de desenhar, de pintar obras incríveis. Eu só enxergo 20%, tenho vários ataques epiléticos. Mas os papéis me dão uma tranquilidade", disse.

Mas decisões assim ainda geram inúmeros debates.

A primeira questão é: uma pessoa tem direito de pedir para morrer e abreviar seu sofrimento diante de doença incurável?

Para especialistas, sim. Isto seria um argumento suficientemente forte para diferenciar a eutanásia de um assassinato e evitar a caracterização de um crime.

A eutanásia deve ser a expressão da vontade do sujeito, não a do Estado, do serviço de saúde, de uma ideologia ou do profissional de saúde

Sérgio Rego, presidente da Sociedade de Bioética do Rio de Janeiro

Já "provocar o fim da vida de um indivíduo sem que ele tenha se manifestado favorável não é eutanásia, é homicídio mesmo", explica ele.

Mas a liberação da eutanásia no Brasil esbarra em outra questão: o direito à vida é, segundo a Constituição, inviolável.

Além disso, a doutrina cristã do "não matarás", num país como o Brasil, pesa. 

"O que se acaba praticando é algo muito ruim: a manutenção do sofrimento do indivíduo por dias, semanas e até meses apenas porque temos tecnologia para isso e porque somos treinados a impedir, a qualquer custo, a morte", afirma Rego. "A morte é inevitável, mas adiável. A pergunta que fica é: quem deve ou pode decidir a intensidade de sofrimento que um indivíduo deve sofrer antes de morrer?"

Para a presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, Regina Parizi, "o Brasil troca a discussão profunda sobre a eutanásia pela discussão dogmática".

“Respeitamos as diferentes opiniões, mas achamos que o respeito à autonomia do paciente deve vir em primeiro lugar, como um direito ao seu corpo e à sua vida", diz Parizi. "Claro que temos que criar mais programas de cuidados paliativos que amenizam o sofrimento dos doentes terminais, para dar uma morte digna a eles. Mas isso em um país de maioria católica não se muda do dia para a noite."

Médicos podem praticar a ortotanásia

Médico - Shutterstock - Shutterstock
Imagem: Shutterstock

Numa tentativa de respaldar os médicos diante da pressão que muitas vezes sofrem para acabar com o sofrimento de pacientes terminais, o CFM (Conselho Federal de Medicina) criou em 2006 uma resolução que permite aos médicos praticar a ortotanásia.

"Essa resolução permite ética e legalmente ao médico interromper as medidas terapêuticas quando já se esgotaram todas as chances. Mas desde que o paciente ou seu representante legal concorde com isso. Depois deve registrar essa decisão no prontuário do paciente", explica o corregedor da entidade José Fernando Vinagre.

A resolução autoriza o procedimento apenas em pacientes terminais.

O Brasil vai permitir a eutanásia um dia?

Juridicamente, a resposta não é simples, porque matar alguém, mesmo com seu consentimento, configura crime de homicídio pela Constituição.

A conduta seria tipificada, por exemplo, como homicídio ou auxílio ao suicídio. O médico como garantidor da saúde do paciente não pode ser autorizado a tirar a sua vida

Tânia Ribeiro, advogada da comissão de bioética da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal

Como não existe no Brasil lei que autorize a eutanásia, a resolução do CFM seria uma forma de regular apenas a prática da ortotanásia em situações limite.

Um único projeto de lei que previa a permissão da eutanásia no Brasil foi arquivado após tramitar por 17 anos no Congresso Nacional. O PLS 125/96, de autoria do senador Gilvam Borges (PMDB-AM), entrou na pauta do Senado Federal em 1996 e foi arquivado em 2013 sem nunca ter sido votado.

Um outro projeto de lei propõe que a ortotanásia vire lei, mas ele ainda tramita no Congresso. O PL 5559, de 2016, que elenca uma série de direitos dos pacientes, cita o direito de o paciente expressar sua vontade quanto a receber ou não cuidados ou se submeter a tratamentos. De autoria dos deputados petistas Pepe Vargas (RS), Chico D’Angelo (RJ) e Henrique Fontana (RS), ele aguarda análise da Comissão de Direitos Humanos da Câmara desde agosto e deve passar ainda por outras comissões até chegar ao Senado.