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"Comia pouco e tinha crises de compulsão": as doenças ocultas nas selfies

Após enfrentar bulimia e anorexia, Mirian Botan usa instagram em campanha para mulheres aceitarem seu corpo - Acervo pessoal
Após enfrentar bulimia e anorexia, Mirian Botan usa instagram em campanha para mulheres aceitarem seu corpo Imagem: Acervo pessoal

Marcelle Souza

Colaboração para o UOL, em São Paulo

17/05/2017 04h00

Quem vê Mirian Bottan, 30, compartilhar fotos de biquíni, sem medo de mostrar a barriga, estrias e celulites, não imagina que só agora ela consegue encarar com tranquilidade o espelho e a balança. Mas o caminho até aqui não foi fácil.

Foram 15 anos de transtorno alimentar, quando convivia diariamente com episódios de compulsão, indução ao vômito, dietas malucas, laxantes e diuréticos.

Aos 28, já em tratamento, publicava selfies de biquini diante do espelho e fotos de comida. A imagem não era de alguém saudável. Ela tinha trocado a bulimia pela obsessão em ter um corpo “sarado”, era a ortorexia, que só venceu com terapia e acompanhamento nutricional.

Pesquisas apontam que os transtornos alimentares, bulimia e anorexia, são diagnosticados em 1% e 3%, respectivamente, da população – mas o perfil é bem definido: “de 90% a 95% das pacientes são do sexo feminino e 85% dos casos acontecem entre os 12 e os 20 anos”, afirma Eduardo Aratangy, médico do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas em São Paulo.

"Sabe o que essas três Mirians tinham em comum? Todas elas engoliam quilos/litros de comida em menos de 15 minutos e vomitavam tudo depois", diz Mirian Bottan - Acervo pessoal - Acervo pessoal
"Sabe o que essas três Mirians tinham em comum? Todas elas engoliam quilos/litros de comida em menos de 15 minutos e vomitavam tudo depois", diz Mirian Bottan
Imagem: Acervo pessoal

Entre as fotos e a balança

“Fui uma criança magra, muito moleca e, desde os 5 anos, a minha mãe me levava para participar de concursos de beleza”. Nunca ganhou nenhum prêmio e só aos 11 anos conseguiu dizer que não gostava de toda aquela avaliação. “Dois anos depois, eu mudei de escola, estava ansiosa e comecei a comer um pouco mais”.

A balança de casa, da mãe que tinha passado por uma redução alimentar recente, mostrou rapidamente os dois quilos que tinha ganhado. “Eu pesava 44 kg e fui para os 46 kg. Foi quando comecei a vomitar”.

Aos 15, ela já havia chegado aos 38 kg, seu cabelo começou a cair e parou de menstruar. “Reprovei na escola, estava em depressão, não conseguia sair da cama. Nesse nível de restrição, o cérebro não aguenta”, conta a apresentadora, que hoje tem 51 kg.

As fotos de Mirian aos 19 anos mostram uma garota com rosto inchado por conta de glândulas inflamadas após anos de vômitos frequentes. 

Até os 26 anos, foi internada “diversas vezes” por complicações da doença e encarou várias dietas perigosas.

Comia muito pouco e depois tinha crises de compulsão. Daí tomava laxantes e diuréticos, que só fui parar de usar aos 27 anos.” 

À esquerda, Mirian aos 16 anos, quando usava faixa no cabelo para tentar esconder as falhas causadas pela queda de cabelo ?por desnutrição"; à dir, hoje aos 30, "mais madura e segura" - Acervo pessoal - Acervo pessoal
À esq., Mirian aos 16 anos, quando usava faixa no cabelo para tentar esconder as falhas causadas pela queda de cabelo "por desnutrição"; à dir, hoje aos 30
Imagem: Acervo pessoal

Pular refeições, remédios e cigarro para emagrecer

Essas práticas arriscadas foram identificadas em quase um terço das adolescentes entrevistas em uma pesquisa realizado pela nutricionista Greisse Viero da Silva Leal, em tese defendida na Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo).

Segundo o estudo, 31,9% das alunas de escolas técnicas de São Paulo costumavam pular refeições, comer pouca comida, usar substitutos de alimentos, remédios ou fumar muitos cigarros com o objetivo de perder peso.

Os pais de Mirian notaram algo errado meses depois que ela começou a induzir o vômito por conta do cheiro que havia no banheiro. “Os pais precisam ficar bem atentos a comportamentos como a dificuldade de comer em situações sociais, sair da mesa e já ir para o banheiro”, diz Mirian. “Eu tentava disfarçar tomando banhos longos”.

Segundo o médico, outros sinais comuns são: perda rápida de peso, preocupação excessiva com a aparência e prejuízo no funcionamento global do corpo, como problemas de desempenho nos estudos e no trabalho.

"Tinha encanado que queria colocar silicone porque junto com a gordura meu peito também tinha diminuído", disse. Na segunda foto, Mirian mostra o corpo no início deste ano, depois de abandonar a academia e continuar o tratamento psicológico - Acervo pessoal - Acervo pessoal
"Tinha encanado que queria colocar silicone porque junto com a gordura meu peito também tinha diminuído", disse. Na segunda foto, Mirian mostra o corpo no início deste ano, depois de abandonar a academia e continuar o tratamento psicológico
Imagem: Acervo pessoal

Da bulimia à ortorexia

Para Mirian, o alerta só acendeu quando ela entrou em depressão novamente, com crises mais frequentes de bulimia, e começou a beber. Procurou um novo terapeuta e uma nutricionista, com quem começou uma reeducação alimentar. Decidiu encarar a bulimia, mas desenvolveu outro transtorno: a ortorexia, quando a pessoa tem uma obsessão por alimentos considerados saudáveis.

“Transtorno alimentar não tem formato de corpo, você pode estar malhada, mas, se não consegue comer um pedaço de pizza sem se culpar por isso, você está doente”, diz.

Segundo o psiquiatra, esse tipo de substituição de um transtorno por outro pode acontecer em muitas pacientes.

É comum, especialmente em casos de anorexia nervosa, que a paciente tenha um perfil muito rígido, perfeccionista, obstinado. Então o comportamento exagerado com os exercícios ou com uma alimentação ‘correta’ faz parte do quadro”, diz.  A tendência, diz o especialista, é que a paciente supere esse estágio com o avanço do tratamento.

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De frente para o espelho

Como as causas são múltiplas, o tratamento dos transtornos alimentares precisa envolver equipes compostas por psiquiatras, psicólogos, nutricionistas, entre outros profissionais. “A família precisa adotar uma postura que não seja agressiva nem acusativa. A pessoa não está fazendo aquilo de frescura, ela tem uma doença, que é uma obsessão pelo corpo, pela comida, pela gordura”, diz o psiquiatra.

Mirian defende que também os profissionais tenham uma abordagem mais sensível. “Desde a adolescência, passei por vários tratamentos, oito psicólogos, e era sempre em um tom de ameaça: ‘se os seus exames não melhorarem, eu vou te internar’. Isso só gerava mais revolta”, diz.

É preciso lembrar que algo entre 5% e 20% das pacientes, quando se trata de anorexia, morrem. Entre todos os transtornos psiquiátricos, os alimentares são os que têm a maior letalidade.”

Eduardo Aratangy, psiquiatra

Isso acontece, porque as pacientes podem ter insuficiência renal e arritmia cardíaca, por exemplo. Além disso, o uso de laxantes pode causar problemas graves no intestino, assim como os diuréticos causam a perda de sais importantes para o funcionamento do organismo. Quem tem bulimia, pode ainda ter problemas no esôfago e nos dentes.

Recuperada, Mirian hoje troca experiências com outras jovens em grupos pela internet, mantém canais no Youtube e Instagram para falar sobre a aceitação do próprio corpo e a necessidade de buscar tratamento especializado.