Aplicativos de saúde facilitam consulta, mas escondem avaliação do médico
Era tarde de terça-feira, 28 de fevereiro, quando dona Jane de Almeida, 59, gritou pelo filho, o professor David Ferreira de Almeida, 28. Ela passava por uma crise de labirintite tão forte que mal conseguia se por de pé para procurar um hospital. Aflito, o filho correu para um buscador na internet e digitou a frase "médico que atende em casa". Foi quando conheceu um aplicativo que prometia enviar um especialista sem que sua mãe precisasse levantar da cama.
O professor não sabia, mas naquele mesmo dia o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicava uma resolução que regulamentava o serviço contratado por ele. Um aceno institucional para o que muitos chamam de "uberização da saúde" - uma revolução tecnológica que transforma o modo como médicos e pacientes se relacionam.
Embora estejam na moda, esses aplicativos também oferecem riscos. A resolução não obriga, por exemplo, que os apps revelem ao público a avaliação que os médicos recebem dos usuários. Também se cala sobre a responsabilidade das start-ups sobre o mau atendimento ou a prescrição equivocada de remédios.
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A resolução é de fevereiro, mas o serviço prestado pelo Docway - o aplicativo encontrado na internet por Almeida - já funcionava sem regulamentação federal desde setembro de 2015. "Era março daquele ano quando minha filha, na época com 5 anos, amanheceu doente", contou Fábio Tiepolo, 34, criador do aplicativo. "A gente ia correr para o hospital, mas ela perguntou: 'se eu estou doente, por que o médico não pode vir até aqui?'. Ai uma amiga pediatra foi até o quarto dela e fez a consulta."
Em julho daquele ano, ele contratou uma empresa para fazer o software. "Era simples, mas já procuramos o CRM (Conselho Regional de Medicina) em Curitiba para apresentar o que queríamos." Em 2016, Tiepolo já estava dedicado exclusivamente ao novo negócio. Naquele mesmo ano, o app, que começou em Curitiba, chegou a São Paulo e, em meados de 2017, sua versão mais robusta era lançada. "Estamos em todas as capitais e mais de 160 cidades."
Ao todo, a Docway tem 3.300 médicos cadastrados. Atendeu 5 mil pessoas em 2017 e projeta até 20 mil consultas em 2018. "A procura aumentou a partir da metade do ano passado", conta o empresário. "Estimamos faturar de R$ 10 milhões a R$ 12 milhões este ano."
O aplicativo fica com 15% do valor de cada consulta. Quando o professor, filho de dona Jane, chamou um médico, a Docway embolsou R$ 45 dos R$ 300 pagos ao especialista. "Chamei um clínico geral por R$ 200, mas teve um problema de horário e o próprio aplicativo entrou em contato perguntando se podia mandar um outro médico por um valor acima", lembra Almeida. "Em menos de meia hora, ele estava em casa."
A Lei
Contestado pelos conselhos regionais de medicina por quase três anos, o serviço agora está liberado pela resolução do Conselho Federal. Relator do texto, o psiquiatra alagoano Emmanuel Fortes lembrou em entrevista ao UOL que os médicos sempre ofereceram atendimento domiciliar, mas usavam as páginas amarelas e classificados para encontrar pacientes. "Agora a plataforma digital coloca centenas de médicos à disposição da sociedade, e por isso temos de controlar a qualidade."
Para isso, Fortes condicionou a regulamentação do app à obrigatoriedade de a ferramenta contar com um diretor-técnico, um médico responsável pela contratação dos especialistas. É ele quem garante que todos os prestadores de serviço são de fato formados em universidade e registrados nos conselhos regionais. "Diante de qualquer contestação, é ele quem responde diante do Conselho, sociedade, imprensa e Justiça."
A outra exigência é que os médicos produzam e arquivem o prontuário médico de cada atendimento. Assim, quando a pessoa adoecida precisa passar por outro médico, o especialista anterior encaminha o relatório, que na maioria das vezes é digital. "A responsabilidade é do médico. Ele pode manter os prontuários em casa também. Se for digitalizado, guarda no computador e envia para o médico ou paciente", explica o relator.
Clinico geral, o médico Aier Adriano Costa, 32, prefere o prontuário eletrônico. "Para finalizar a consulta no aplicativo, eu tenho de anotar a evolução médica no prontuário. Quando a consulta é solicitada por outro médico, o aplicativo envia o histórico."
Atraído pelo noticiário, Costa se cadastrou no Docway há dois anos e meio. Sua intenção era complementar renda encaixando consultas domiciliares nos horários em que não dava plantão em clínicas particulares. "Eu configuro os horários da minha agenda no aplicativo, o paciente escolhe o horário, pede a consulta e eu aceito. Aí a ferramenta me confirma o endereço e dados do paciente."
Para que o usuário não tenha dúvidas sobre quem bate à porta, o app orienta o especialista a se apresentar como médico Docway e perguntar se alguém naquela casa fez um pedido de consulta. "Tem semanas que faço até sete consultas pelo aplicativo. Quando as pessoas gostam do atendimento, elas indicam meu nome para amigos e familiares."
O clínico também se animou com o novo trabalho porque lhe permitiu contato maior com o paciente. "Ao visitá-lo em casa, você conhece a realidade dele. Se a pessoa tem rinite, o médico no consultório prescreve um antialérgico, mas na casa da pessoa você repara no tapete, na cortina. Às vezes, nem precisa de remédio."
O criador do aplicativo garante que cada atendimento leva, em média, 40 minutos, contra os 15 minutos recomendados pelo Manual de Normas de Auditoria do Ministério da Saúde como índice de produtividade nas Unidades Básicas.
O app também é um bom negócio para o médico. Segundo a ANS (Agência nacional de Saúde Suplementar), um convênio particular paga R$ 70 em média a um especialista por uma consulta, enquanto esse valor varia de R$ 300 a R$ 1.500 nos consultórios particulares.
Almeida se surpreendeu com os valores cobrados no aplicativo. "Variam demais. De R$ 200 a R$ 900. O serviço pode não ser tão popular por isso, mas para um caso de urgência, como o da minha mãe, é impecável. Se eu precisar, uso de novo." Segundo Tiepolo, não há controle de preços, "mas o ticket médio é de R$ 250, R$ 300".
Buscar preços de exames
Dona de casa, a mineira Denise Ferraz Madureira, 58, não precisava de uma consulta, mas de um exame. Depois de esperar três meses pelo SUS, ela perdeu a data e foi para o final da fila. "Eu precisava urgentemente de uma mamografia. Então encontrei um aplicativo na internet. O exame custava R$ 180, fizeram por R$ 80 em uma dos melhores laboratórios de Belo Horizonte. Eu quase não acreditei", contou.
O aplicativo encontrado por Denise foi o Doutor 123. Diferente do Docway, sua principal função é encontrar clínicas populares e laboratórios de exames que ofereçam descontos. "Os médicos cobram, no máximo, R$ 220. A gente não cadastra quem não atende ao nosso público", explicou ao UOL o CEO da companhia, Maurício Trad. "Os descontos em exames chegam a até 70%. Também há preços por pacotes."
Trad busca atrair os 75,5% da população sem um plano de saúde. De acordo com a ANS, os convênios perderam 1 milhão de usuários por ano desde janeiro de 2015. Na época, 50,3 milhões de brasileiros tinham um plano, 2,9 milhões mais gente do que os 47,4 milhões contabilizados em janeiro deste ano.
O app também aproveita as filas no SUS para crescer. Como aconteceu à Denise, "o Sistema Único de Saúde leva meses para agendar e realizar os procedimentos, inviabilizando o diagnóstico, o tratamento e a prevenção de doenças", afirma o executivo.
Para os consultórios populares, a vantagem é manter cheia a sala de espera. "As ausências chegam à média de 30%. Com o app, essa taxa chega a zero porque a consulta já foi paga."
No mercado há três anos, a aplicação agenda 1.500 atendimentos por mês em 20 cidades e cinco regiões metropolitanas.
Outros aplicativos voltados à saúde também fazem sucesso. O Dr. Cuco lembra o usuário de tomar os remédios na hora. A GoPharma indica as farmácias mais próximas e o SOS PS informa o tempo previsto para ser atendido em determinado hospital.
Os perigos
Advogado especialista em direito da saúde, Luciano Correia Brandão acredita que "o dia a dia é que vai mostrar como e o que funciona". Quanto ao "Uber da saúde", por exemplo, a resolução se limita a regulamentar as regras para que os médicos exerçam a profissão. "Mas e o restante?"
Ao contrário de serviços como Uber, em que os usuários podem ver a avaliação recebida pelo motorista, os aplicativos de saúde recolhem a opinião dos pacientes, mas não divulgam. "Quem faz um bom trabalho tem mais exposição", justifica Tiepolo, dono do Docway. "Se o doutor pedir sua avaliação, a gente manda. E se acontece algo fora do normal, avisamos o médico."
Mesmo que o paciente tenha os dados do especialista, como nome completo e CRM, é difícil conseguir informações sobre problemas de atendimento feito por médicos. Dados obtidos pelo UOL via Lei de Acesso à Informação revelam que as denúncias contra médicos são tratadas com sigilo pelo Conselho Federal. Entre 2010 e 2017, 59% das punições contra médicos foram mantidas em segredo pelo CFM.
Das sanções, 34% foram classificadas como censuras confidenciais, 25% como advertências confidenciais. Nesses sete anos, 2.186 médicos acabaram punidos, 42% por omissão de socorro. Mesmo penalizados, 96,3% dos médicos continuaram trabalhando.
A resolução também não prevê punição ao aplicativo em caso de mau atendimento. "O app está dando um selo de qualidade 'este médico aqui é bom'. Em certa medida ele assume a responsabilidade", diz Brandão. "Na Justiça, isso tudo certamente será discutido nas esferas cível, criminal e administrativa."
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