Como uma disputa entre ministérios adiou lei de Bolsonaro sobre gravidez
Fazia apenas três dias que Jair Bolsonaro havia assumido a Presidência da República quando assinou uma de suas primeiras leis: uma semana inteira para "disseminar informações sobre medidas preventivas e educativas" a fim de reduzir a incidência de gravidez na adolescência. A ideia, comemorada nos bastidores, em pouco tempo se transformou em dor de cabeça para três ministérios.
Desorganizadas internamente, as pastas da Saúde, da Família e Direitos Humanos e da Cidadania submergiram em meio à disputa sobre como tratar o assunto. Terminaram perdendo a data prevista na lei para a celebração da "Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência", cujo objetivo é reduzir uma das maiores taxas do mundo de bebês nascidos de mães com idade entre 10 e 19 anos.
O Projeto de Lei nº 512, que perambulava pelo Senado desde 2011, foi sancionado por Bolsonaro no dia 3 de janeiro. A nova lei incluiu o artigo 8º-A ao Estatuto da Criança e do Adolescente, onde agora se lê que a semana será "realizada anualmente na semana que incluir o dia 1º de fevereiro".
A ideia era que uma programação de eventos começasse no último domingo, 27 de janeiro, abrindo a semana do dia 1º de fevereiro, esta sexta-feira, quando a campanha estaria perto do fim. Nenhum evento, no entanto, saiu do papel.
As ações deveriam ser tocadas pelo Ministério da Saúde, mas Bolsonaro achou por bem incluir o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Assim, os ministros Luiz Henrique Mandetta (Saúde) e Damares Alves (Família e Direitos Humanos) também assinaram a lei 13.798/19.
Uma fonte consultada pela reportagem conta que, na ocasião, o governo entendeu que a discussão sobre sexualidade na adolescência seria uma oportunidade para reforçar uma das bandeiras da campanha presidencial, segundo a qual o assunto diz respeito, em primeiro lugar, ao âmbito familiar.
O ministério de Damares foi então designado para assumir a organização da semana. A Secretaria da Criança e do Adolescente repassaria todas as estatísticas sobre o tema para que a Secretaria da Família cuidasse da programação. Foi quando a confusão começou.
Damares entregou a Secretaria da Família à advogada Angela Gandra Martins, uma ativista contra o aborto e membro da União dos Juristas Católicos de São Paulo. Seus pares pensaram em criar uma campanha que relacionasse a redução da gravidez na adolescência à provável queda do número de abortos, enfraquecendo a bandeira oposicionista pela legalização.
A situação criou um impasse: como bolar uma campanha de prevenção à gravidez na adolescência sem enfatizar o papel da camisinha (inclusive feminina) e da pílula do dia seguinte e ainda excluir as escolas da grade de programação?
"A escola é educadora e formadora. Ela não pode ficar alheia a um assunto tão importante", afirmou ao UOL a autora do texto que se transformou em lei, a ex-senadora Marisa Serrano (PSDB-MS). "Quando sugeri o projeto, pensei em uma programação nas escolas, mas também em clubes e em espaços da sociedade civil. Uma coisa é falar com adulto, outra é com criança de 10, 11 anos. É uma semana para chamar a atenção para o problema."
Preocupado com a repercussão que o tema poderia gerar, o Ministério da Saúde pediu participação maior no planejamento. A desorganização interna dos ministérios no primeiro mês de mandato, no entanto, adiou as tratativas.
Enquanto a cúpula decidia o viés da campanha e como tirá-la do papel, os assessores "ouviam grilos", contou uma fonte. Pegos de surpresa, os funcionários das pastas passaram o mês de janeiro aguardando orientação.
A falta de nomes para ocupar o alto escalão das secretarias inviabilizou as tomadas de decisão. Não ajudou a demissão de 320 funcionários pelo ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, nos primeiros dias de mandato. A disposição de "despetizar" a administração paralisou o governo, causando insatisfação e trabalho extra a quem se manteve no cargo. "São postos muito técnicos. Ninguém organiza uma programação dessas sem pessoal nem comando", segundo afirmou uma fonte.
A primeira reunião interministerial para tratar do assunto aconteceu na última quinta-feira (24), a três dias do evento. A Secretaria de Comunicação do governo foi chamada às pressas para intermediar o encontro. Apenas na reunião do dia seguinte (25) é que ficou decidido que as atividades seriam adiadas para acontecer entre os dias 1º e 8 de fevereiro, e que os ministérios da Saúde e da Cidadania assumiriam o projeto.
A decisão foi a de não chamar a atenção para o assunto e, assim, conter as críticas da oposição. O governo, que não vai gastar dinheiro com campanha publicitária, preferiu divulgar informações por meio das redes sociais, realizar alguns seminários e palestras ao longo da semana e lançar um aplicativo voltado para os adolescentes. A programação, no entanto, ainda não havia sido assinada pelo ministro da Saúde até o dia 31 de janeiro.
"Vou pedir um requerimento de informação ao governo para conhecer as propostas da semana e como elas foram criadas", afirmou ao UOL a deputada federal Érika Kokay (PT-DF), membro da bancada feminina. "Essas informações serão remetidas à Câmara. Se não responderem, podem incorrer em crime de responsabilidade."
Relatora do projeto quando ele passou pela Câmara, a deputada Alice Portugal (PCdoB-BA) garante que "foi uma tramitação muito tranquila".
A expectativa era fazer um marco para ser discutido nas escolas, na mídia e na sociedade. Os pais não falam com seus filhos sobre doenças sexualmente transmissíveis. Tem de ser na escola
Deputada Alice Portugal, relatora do projeto
País tem 501.385 partos na adolescência
No Brasil, a taxa de gravidez precoce é de 68,4 bebês para cada mil garotas de 15 a 19 anos, segundo relatório da OMS (Organização Mundial da Saúde) publicado em 2018. O indicador está acima da média latino-americana (65,5) e é bem maior que a mundial, de 46 nascimentos a cada mil adolescentes.
Responsável pelo planejamento familiar do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher, da Unicamp, a ginecologista Ilza Maria Urbano Monteiro explica que o corpo de uma adolescente nem sempre finalizou seu desenvolvimento quando ocorre a concepção. "Durante a gravidez e amamentação pode ocorrer perda de massa óssea e aumentar o risco de osteoporose", diz.
Este não é o principal problema. "A gravidez na adolescência está diretamente associada à pobreza", diz a especialista. Muitas vezes abandonadas pelo parceiro e pela família, parte das adolescentes deixa a escola, reduzindo a possibilidade de um emprego melhor. "Uma mãe que não teve educação adequada pode ter dificuldade em manter boas práticas de saúde, como nutrição e atividade física."
Pílula nem sempre funciona
No consultório, conta Ilza, as adolescentes costumam responsabilizar o método contraceptivo. "Quando usada sem esquecimento, a taxa de falha é de três em cada mil mulheres em um ano de uso. Na prática, a falha é de 80 em cada mil. Na adolescência, o esquecimento e a alta fertilidade tornam essas taxas ainda maiores."
Em nosso entendimento, a orientação deveria começar na escola, durante o ensino de ciências e biologia. Os adolescentes precisam aprender como funciona o sistema reprodutivo para participar ativamente da escolha do método anticoncepcional.
Ilza Maria Urbano Monteiro, do Caism/Unicamp
Embora o programa de prevenção à gravidez na adolescência ainda seja uma incógnita no novo governo, as ações feitas desde 2000 são consideradas bem-sucedidas. Em nota, o Ministério da Saúde informa que "distribui a toda população pílula combinada, anticoncepção de emergência, minipílula, anticoncepcional injetável mensal e trimestral, e diafragma, assim como preservativo feminino e masculino".
A pasta também anunciou recentemente a oferta de DIU de cobre em todas as maternidades brasileiras. "Uma das iniciativas é a distribuição das Caderneta de Saúde de Adolescentes, com as versões masculina e feminina, que contém os subsídios que orientam o atendimento integral dos jovens."
O resultado é que os casos de gravidez entre meninas de 10 e 19 anos caíram 33% nos últimos 18 anos. Ainda assim, as adolescentes brasileiras deram à luz 501.385 bebês em 2016, um dos maiores índices do mundo.
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