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"Estímulo ao preconceito": como soropositivos reagiram à fala de Bolsonaro

Alex Tajra

Do UOL, em São Paulo

08/02/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Para Bolsonaro, pessoas com HIV são uma "despesa para todos no Brasil"
  • Soropositivos criticaram o teor da fala do presidente da República

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse, nesta semana, que uma pessoa portadora de HIV é "despesa para todos no Brasil". As palavras do presidente geraram críticas de organizações da sociedade civil que lutam contra a estigmatização das pessoas que convivem com HIV.

Essa, porém, não foi a primeira vez que Bolsonaro fez declarações a respeito de portadores de HIV. Em 2010, o então deputado federal caminhava pelo Congresso quando foi interpelado por Monica Iozzi, que trabalhava como repórter do extinto humorístico CQC, da TV Bandeirantes.

"[O poder público] tem que atender realmente a quem, num caso infortúnio, contrai uma doença. Não para esse pessoal que vive tomando pico na veia, ou vive na vida mundana e depois querer [sic] cobrar do poder público um tratamento que é caro nessa área aí [HIV]", disse o agora presidente da República.

"Se não se cuidou....", disse a repórter, logo complementada por Bolsonaro: "Problema dele!".

A Frente Parlamentar Mista de Enfrentamento às ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis), do HIV/Aids e Hepatites Virais no Congresso também se manifestou.

"O preconceito, a mentira, o estímulo à ignorância, a segregação e estigmatização por parte do chefe do Poder Executivo não pode ser tolerada, pois ofende a dignidade da pessoa humana, avilta milhares de cidadãos e cidadãs brasileiros e aprofunda, ainda mais, a tragédia do nosso tempo", diz nota divulgada pela Frente.

O UOL conversou com cinco soropositivos para saber como eles receberam a declaração do presidente Jair Bolsonaro:

Jorge Beloqui, 70, professor de matemática na Universidade de São Paulo

O professor de matemática Jorge Beloqui, que descobriu ser soropositivo em 1989 - Divulgação - Divulgação
O professor de matemática Jorge Beloqui, que descobriu ser soropositivo em 1989
Imagem: Divulgação
Todos os brasileiros têm direito à saúde. Não importa qual a doença, nós não escolhemos a doença. O presidente usa frequentemente sua voz para discriminar outros grupos. Isso é comum na fala dele. Ele deveria ter uma conduta exemplar, como chefe de governo, mas age de forma contrária, estimulando a discriminação.

As pessoas, quando têm o vírus, muitas vezes não são acolhidas por suas famílias. Caem no estigma de que 'ou é homossexual, ou é puta'. Na medida em que essas pessoas são estigmatizadas, elas não procuram prevenção, não procuram tratamento e assim a epidemia se expande.

Meu conselho ao presidente é que ele faça o contrário. Ele tem de estimular um ambiente de solidariedade com todas as pessoas que precisam de tratamento de saúde, incluindo os portadores de HIV.

Américo Nunes, 58, coordenador do Mopaids (Movimento Paulistano de Luta Contra a Aids)

Américo Nunes, 58, empreendedor social e coordenador do Mopaids - Divulgação - Divulgação
Américo Nunes, 58, empreendedor social e coordenador do Mopaids
Imagem: Divulgação
Vi essa frase como uma total falta de respeito e compostura em relação às pessoas, em especial às convivendo com o HIV/Aids. Nós não somos um gasto para o governo, nós pagamos impostos, temos uma Constituição que garante que saúde é um direito de todos e dever do Estado. Ele [Bolsonaro] desconhece a política de AIDS.

Existe uma diferença grande entre os poderes estaduais e municipais e o federal em relação às políticas de prevenção ao HIV. Os primeiros têm avançado bastante, tem acompanhado a situação, dialogam com os movimentos e representantes das organizações. Com esse discurso do presidente, as pessoas que têm vontade de fazer um diagnóstico precoce, começar um tratamento, acabam se retraindo.

O presidente esquece que o SUS [Sistema Único de Saúde] preconiza a participação social, e o que nós fazemos é um controle social, e vamos continuar assim. O governo passa, mas os movimentos sociais permanecem.

Jenice Pizão, 60, fundadora do MNCP (Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas)

Jenice Pizão, 60, professora aposentada e fundadora do MNCP (Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas) - Divulgação  - Divulgação
Jenice Pizão, 60, professora aposentada e fundadora do MNCP (Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas)
Imagem: Divulgação
A gente não procura a infecção pelo HIV. Ela acontece nas nossas vidas por vários motivos. Até hoje, há falhas do Estado nas campanhas de prevenção. Se tivéssemos um Estado mais preocupado com prevenção, provavelmente teríamos uma redução dos casos.

Não existe só um tipo de pessoa que vive com o HIV, existem homens, mulheres, gays, com muitos parceiros, com um parceiro só. A infecção não é pela quantidade de parceiros, e sim pela vulnerabilidade da pessoa frente ao vírus. Ele [Bolsonaro] faltou nessa aula.

Por causa das falhas de informação nesse sistema de cuidados do ministério da Saúde deveria ter e não tem, a gente só vê aumentar o estigma. Isso vai na contramão da história, se existe preconceito, segregação, é porque as pessoas são mal informadas. E aí nós escutamos o presidente da República falando que se gasta demais com as pessoas que convivem com HIV. Parece que a culpa do déficit do Estado brasileiro está nas costas de quem vive com HIV.

Se você é uma pessoa desavisada, e escuta isso [a frase de Bolsonaro], você vai querer se conscentizar da importância de usar preservativo, ou de fazer uma PreP [Profilaxia Pré-Exposição de risco à infecção pelo HIV]?

Rosildo Inácio da Silva, 45, ativista da RNP+ (Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids)

Rosildo durante audiência pública no Congresso que discutiu o fim do Departamento Nacional de HIV/Aids - Divulgação  - Divulgação
Rosildo durante audiência pública no Congresso que discutiu o fim do Departamento Nacional de HIV/AIDS
Imagem: Divulgação
Recebi com muita indignação essa declaração do presidente. É uma fala que deve aumentar ainda mais o preconceito e a discriminação contra as pessoas que convivem com HIV.

Eu descobri que sou soropositivo em 2004, e, desde 2012, entrei para a representação aqui no Distrito Federal [Rosildo é representante da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV na região Centro Oeste]. Desde que comecei a atuar na Rede percebi melhor o preconceito, porque a ideia dessa organização é justamente mostrar para as pessoas que elas têm direitos, garantir para elas o acesso aos medicamentos, por exemplo.

Esse tipo de fala como a do presidente também só aumenta as dificuldades que temos aqui no Brasil, a gente está muito temeroso. Primeiro, ele [Bolsonaro] acabou com o Departamento de HIV [em maio do ano passado, o presidente extinguiu o Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), AIDS e Hepatites Virais, e o transferiu para outro mais amplo, denominado Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis], agora isso.

Augusto Menna Barreto, 43, coordenador da área de HIV/Aids da Aliança Nacional LGBTI

Augusto Menna Barreto, coordenador da área de HIV/ Aids da Aliança Nacional LGBTI - Divulgação - Divulgação
Augusto Menna Barreto, coordenador da área de HIV/ Aids da Aliança Nacional LGBTI
Imagem: Divulgação
Lamentável e criminosa a fala do presidente. Ela não é digna de um chefe de Estado, ela estimula o ódio, a discriminação e, principalmente o estigma social. Acho inclusive que ele deveria ser responsabilizado legalmente. Além disso a fala do presidente é em termos técnicos incorreta, uma vez que uma pessoa com HIV que faz o tratamento corretamente fica com a carga viral indetectável e, portanto não transmite mais o HIV.

A frase vem justamente em um momento onde faltam insumos para prevenção — como camisinhas e gel lubrificantes —, quando o governo federal cancelou um edital para implementar testes, e principalmente, e, o mais grave, quando, em janeiro, faltaram antirretrovirais em pelo menos seis Estados brasileiros do Sul e Sudeste.

A fala do presidente, assim como o desmonte das políticas para HIV/Aids, significa para as pessoas que vivem com HIV/AIDS fator de forte desestabilização; e pode levar a conflitos emocionais que podem levá-la a interromper ou descontinuar o Tarv [terapia antirretroviral]. Para as pessoas que vivem com o HIV, a frase soa como "vocês não merecem viver".