Transplantados são infectados por covid-19 no HC de SP, que interdita setor
Resumo da notícia
- Embora protegidos por EPIs, profissionais da saúde podem ser vetor da covid-19 no HC de SP
- Pacientes de transplantes que chegaram sem a doença foram diagnosticados no hospital
- Funcionários de outras áreas trafegam pelo prédio com EPIs que, segundo o sindicato, são de baixa qualidade
- Eles ficam expostos a aventais da enfermagem, amontoados em vestiário comunitário
- Em razão da pandemia, transplantes caíram 20% no Brasil
O setor de transplantes renais do Hospital das Clínicas de São Paulo interrompeu os trabalhos no fim de abril depois que a maioria dos pacientes foi contaminada pelo novo coronavírus. A principal suspeita: os doentes estavam sendo infectados acidentalmente pelos profissionais da saúde.
Desde que a pandemia desembarcou no Brasil, em fevereiro, os doadores de órgãos desapareceram, as infecções por covid-19 chegaram aos transplantados, e o número de cirurgias despencou.
Quando a pandemia desembarcou em São Paulo, o HC tomou uma decisão radical e elogiada: esvaziou o IC (Instituto Central) e reservou seus 900 leitos para tratamento exclusivo de covid-19. Algumas especialidades foram redistribuídas entre os demais institutos, como o Incor (Instituto do Coração), que abrigou o Serviço de Transplante Renal do HC.
Embora o serviço tenha ficado com apenas 8 dos 24 leitos do Incor, foi possível manter as cirurgias simples —sem necessidade de internação em UTI (Unidade de Terapia Intensiva)— e os casos de vida ou morte.
E apesar de a ordem ser proibir a quem trabalha no IC, focado em covid-19, de circular em outros institutos, os pacientes internados para transplante renal em outro prédio começaram a receber diagnóstico positivo para covid-19. Quando praticamente todos os internos se infectaram, o HC parou totalmente os transplantes até que uma junta médica descobrisse a razão.
"A minha opinião é que os profissionais de saúde assintomáticos estão contaminando os pacientes. Nós sequer entramos no IC, mas os demais médicos e auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas circulam em outros hospitais."
A declaração foi dada pelo chefe do Transplante Renal do HC, Elias David Neto, durante uma live no dia 29 de março mediada pela ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos) justamente para tratar do programa de transplante no Brasil durante a pandemia.
Na ocasião, ele contou o caso de um "cardiologista famoso" do Incor que "estava trabalhando o dia inteiro" até que se sentiu doente e foi diagnosticado com covid-19. "Provavelmente na fase pré-sintomática ele estava contaminando colegas e pacientes e isso deve estar acontecendo a várias pessoas."
Cessamos a atividade de transplantes até que nós entendamos como está acontecendo a contaminação desses pacientes que chegam negativos e que viram positivos
Elias David Neto, chefe do Transplante Renal do HC
O médico contou que dos sete residentes em transplantes no HC, cinco "deram positivo para covid-19".
"Como resolver?", questiona. "É fazer (exame) RT-PCR [o mais completo] todos os dias, o que é impossível, mas dá para (fazer o teste) de sorologia [o rápido] e só liberar profissionais com IgG positivo (imunizados)."
Além da desconfiança de que médicos e enfermeiros contaminem os pacientes, os profissionais de outras áreas, como nutrição, circulavam livremente entre o IC (onde estão os internados por covid-19) e os demais institutos.
Apenas recentemente o hospital decidiu que cada setor teria profissionais exclusivos e aceitou um pedido dos trabalhadores para que o alimento preparado fosse deixado do lado de fora dos quartos. Agora, os enfermeiros recolhem a comida e servem os doentes.
O UOL pediu entrevista com o médico, mas o hospital informou "falta de agenda". Por meio de nota, confirmou que "diante da suspeita de um foco na área de transplantes instalada no Incor, decidiu-se pela suspensão temporária das cirurgias no local, que deverão ser retomadas após nova avaliação da comissão de infecção".
Falta EPI e são de má qualidade
"Existe alguma forma de contaminação que a gente não sabe. Todo mundo usa máscara e luva. Não está usando avental, touca e macacão porque nem sei se tem para todos. Mas o vírus é altamente infectante mesmo com toda essa proteção está havendo transmissão intra-hospitalar", disse David Neto na live.
Procurado, o Sindicato dos Trabalhadores Públicos de Saúde informou o recebimento de diversas denúncias de profissionais, que reclamaram do EPI (Equipamento de Proteção Individual) oferecido pelo HC.
"Os gorros rasgam na mão, as luvas e máscaras são muito finas e não há sapatilhas descartáveis", afirma a presidente da entidade, Cleonice Ribeiro. Ela diz que os escudos faciais são compartilhados por outros funcionários, que entregam o equipamento a outro quando mudam de turno.
Mas a maior preocupação é com o descarte dos aventais da enfermagem, que ficam por dois plantões amontoados no mesmo vestiário em que todos os funcionários têm acesso.
O HC afirma que "adota os protocolos determinados pela OMS" (Organização Mundial de Saúde) e que os funcionários usam os EPIs "de acordo com o grau de exposição". "Em todos os andares foram criadas áreas de vestiários fora das unidades para que os profissionais que atuam nessas unidades possam trocar de roupa e utilizar o uniforme do hospital."
Atualmente, 143 pessoas estão afastadas por suspeita de covid-19, "1% dos 20 mil funcionários", diz o hospital. Esse número, no entanto, era de 340 em 15 de abril. "Os trabalhadores não estão sendo testados", diz Ribeiro.
"Quando tem algum sintoma, eles são afastados, ficam 14 dias em casa e retornam ao trabalho. Na volta, também não passam por teste. É um círculo: os profissionais contaminam os pacientes e estes contaminam os funcionários, que seguem voltando para casa todos os dias", diz.
Ceará também interrompe transplantes de rim
Presidente da ABTO e chefe do Serviço de Transplante Hepático do Hospital Universitário Walter Cantídio, no Ceará, Huygens Garcia conta que o complexo "suspendeu os transplantes renais porque à medida que as UTIs ficam cheias, aumenta o risco de contaminação pelo novo coronavírus".
"Três vezes por semana eles chegam e saem do hospital em uma van para fazer hemodiálise em uma sala coletiva", explica o médico. "Quanto maior é o grau de contaminação da população de uma cidade e de pacientes internados com covid-19, menor é a capacidade de transplante."
Garcia também suspeita de que a contaminação pode partir dos profissionais de saúde. "Alguns assintomáticos podem transmitir", diz. "É uma possibilidade, embora estejam paramentados com equipamentos de segurança e sejam afastados quando apresentam qualquer sintoma, por mais leve que seja".
O afastamento imediato e testes também são oferecidos a médicos e enfermeiros com suspeita no HC de São Paulo, mas sobre a interrupção dos trabalhos na unidade, Garcia preferiu não comentar. Até agora, o HC diz ter realizado 3.768 testes em profissionais de saúde, com 1057 resultados positivos, dos quais 263 permanecem afastados.
No final da tarde de hoje, o HC afirmou ao UOL que "de 29 internados no setor de transplantes desde 31 de março, 5 tiveram covid-19 confirmados. E não há como saber se foi no hospital. Todos evoluíram bem".
Transplantes despencam no Brasil
De acordo com a ABTO, a quantidade de transplantes no Brasil caiu 20% desde o início da pandemia. Na região Norte, a redução foi de 100%, enquanto no Ceará e Pernambuco, referências em transplantes no Nordeste, a queda variou de 50% a 70% entre 15 de março e 18 de abril.
O Brasil realiza 30 mil transplantes por ano (95% pelo SUS - Sistema Único de Saúde), o segundo maior programa do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.
Se a circulação do novo coronavírus dentro e fora dos hospitais interrompe cirurgias, a pandemia também afeta a doação de órgãos, 10% menor, segundo a associação.
"A família de um paciente que morre de covid-19 precisa abreviar o sepultamento, sem velório", conta Garcia. "O transplante renal pode aguardar até 24h, mas a redução dos voos entre os estados também impede que um rim em uma região chegue a tempo em outra.
A consequência imediata, diz, "é o aumento da mortalidade e da fila para o transplante", hoje formada por 30 mil pessoas.
Essa fila deve chegar a 40 mil pessoas em 2021
Huygens Garcia, presidente da ABTO
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