'Cansei de perder gente' e 'Deus recolhe': os parentes de vítimas da covid
Novamente o sistema de saúde de Manaus sofre um colapso. Há um crescente número de enterros e um esgotamento de vagas para vítimas de covid-19.
Nesse tenebroso cenário, a Prefeitura de Manaus começou a usar na sexta-feira (8) um espaço preparado às pressas para enterrar mortos pelo novo coronavírus. O espaço anteriormente usado não comporta mais corpos.
A área em frente ao cemitério Nossa Senhora de Aparecida, no Tarumã, é descampada e no barro. Mas vai ter de servir. Tem vaga para mais mil túmulos e outras 336 gavetas para enterros.
Este é o único cemitério público em que ainda há vagas. Em dezembro, foram 1.634 enterros na cidade.
Desde a primeira morte, em 24 de março do ano passado, o estado contabiliza 5.546 óbitos por covid-19. A situação é pior porque todos os dias a FVS (Fundação de Vigilância Sanitária) atualiza dados de casos anteriores.
A subnotificação foi latente. Em Manaus, de 13 de abril a 13 de maio de 2020, foram 3.614 enterros. A média antes da pandemia era de 33 cerimônias diárias.
Era ruim, mas ficou pior. Os números em dezembro voltaram a subir, com superação de dados diária.
Na quinta (7), houve 112 enterros e anteontem, 113. Desse total, 56 tinham diagnóstico confirmado de covid-19. Quinze deles ocorreram em casa. É mais um sinal de que o sistema não dá conta do que está acontecendo. Ontem, foram 130 os sepultamentos na cidade — a média diária na cidade, antes da pandemia era de 33 enterros.
"Chega a hora, Deus recolhe"
Na sexta, a primeira a ser enterrada no novo espaço foi uma dona de casa de 57 anos.
Ela havia ficado 13 dias internada e não resistiu à doença. O irmão dela, a filha médica e o marido acompanharam em silêncio o sepultamento. A tristeza tomou conta dele após as últimas pás de barro.
Nunca senti um impacto tão duro. Nem se minha mãe e meu pai morressem ia sentir assim. Meu pai tem 80, minha mãe tem 70... Mas minha mulher, só 55 anos.
Marido de vítima de covid-19, que pediu para não ser identificado
É a segunda perda na família provocada pelo novo coronavírus. Há cinco meses, o tio morreu.
"Em julho, eu e ela passamos rapidinho [pela doença]. Oramos. Mas, desta vez, foi muito rápido. A gente pega dentro de casa, na igreja, na rua. Espalha pelo ar. Chegou a hora, Deus recolhe", afirmou.
Sem dinheiro para identificar túmulo
O pedreiro Pedro da Silva Ribeiro, 44, conta que há dias vinha esperando pelo pior. Seu pai, Abílio Ribeiro, 89, foi enterrado na quarta-feira.
Sem transporte próprio, Pedro levou 20 minutos caminhando entre a entrada do cemitério e túmulo, sob o forte sol de meio-dia de Manaus. Beirava os 40ºC.
A alta demanda encurta as despedidas. Desempregado, Pedro só tirou foto do local onde o pai foi enterrado. A identificação no ornamento dos túmulos custa R$ 120. Sem ter como pagar, disse que voltaria depois. Várias covas estão sem identificação.
Ele não viu o funeral, mas o mundo viu. Fotos da tragédia estamparam as capas de jornais pelo mundo, como Washington Post e New York Times.
Resignado com a morte e a condição financeira, diz que o pai tratava um câncer de próstata e teve um AVC recente. "O posto estava sempre lotado. Essa doença está aumentando cada dia mais", disse.
Cansado de perder gente querida
Três dos seis filhos de Nena Pereira da Silva, 62, estavam presentes no enterro dela.
Os demais ficaram de fora por conta das restrições impostas pela prefeitura para as vítimas de covid-19. Tiveram de se contentar com uma live pela rede social do autônomo Oderlei Silva, filho da dona de casa.
Depois da primeira onda, a gente deixa de acreditar um pouco. Por isso, essa segunda onda está muito forte. Quando acontece com nossa família, a gente vem despertar.
Oderlei Silva, filho de vítima da covid-19
Ele perdeu primo e tia, mas cansou de perder gente querida. "Não adianta ter emprego, se não tiver vida. E nem vida sem emprego", disse.
O autônomo Marinaldo Costa Mascarenhas, 36, teve uma evolução fulminante da doença em seu corpo franzino, descreve o pai de criação Delson Ferreira dos Santos. "Era o meu ajudante. Não se alimentava no horário certo por consumir muita bebida alcoolica."
Foi assim que contraiu covid. Bebeu cachaça com um contaminado no mesmo copo, diz Santos. E baixa a cabeça.
As Upas (Unidades de Pronto Atendimento) em Manaus têm tido dificuldades em realizar transferência de pacientes devido à alta taxa de ocupação de UTIs (Unidades de Terapia Intensiva).
Lotadas, salas de descanso e de alimentação viram espaços para leitos improvisados. Ainda assim, há diversos relatos de pessoas que voltam para casa sem atendimento.
De acordo com a secretaria que administra os cemitérios, se prepara a ampliação das construções de sepulturas verticais.
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