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Implante contraceptivo em presas e população de rua é eugenia, diz jurista

Procedimento de inserção do implante contraceptivo Implanon - Reprodução/YouTube
Procedimento de inserção do implante contraceptivo Implanon Imagem: Reprodução/YouTube

Anahi Martinho

Colaboração para o UOL, em São Paulo

02/05/2021 04h00Atualizada em 02/05/2021 11h52

Em meio a dificuldades no enfrentamento da pandemia de covid-19, o Ministério da Saúde anunciou, por meio de uma portaria, que vai gastar R$ 40 milhões na incorporação de um novo método anticoncepcional no SUS: o implante subdérmico de etonogestrel (medicação contraceptiva aplicada sob a pele).

O contraceptivo, no entanto, vai ser direcionado a cinco grupos específicos:

  • Trabalhadoras sexuais,
  • Mulheres em situação de rua,
  • Presidiárias,
  • Mulheres com HIV,
  • Mulheres com tuberculose.

Representantes das populações citadas receberam a portaria com desconfiança e indignação, e afirmam que o ato sugere uma tentativa de controle de fertilidade desses grupos vulneráveis.

Para a presidente da Comissão da Mulher da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em São Paulo, Cláudia Luna, "há ato de eugenia" —como é conhecida a pseudociência usada para justificar a seleção de características genéticas da população.

A Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias), do SUS, justifica em relatório que a intervenção pode resultar na economia de até R$ 1,2 bilhão em gastos pelo governo com gestações não planejadas, que, segundo o órgão, correspondem hoje a mais da metade dos registros de gravidez no Brasil.

A pasta diz que será criado "um programa específico de assistência a esses grupos, associado a política de planejamento familiar", mas não detalha como será o programa nem explica a escolha do público-alvo.

'Conto da Aia' à brasileira

Cláudia Luna, da Comissão da Mulher da OAB-SP, diz que a portaria "viola brutalmente os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres afetadas". Em entrevista ao UOL, Luna afirmou que estamos vivendo um "'Conto da Aia' à brasileira", em referência à série de ficção científica que retrata um futuro distópico.

"Essa portaria coloca o corpo da mulher sob a tutela do estado, impedindo o exercício da sua plena autonomia, e viola o princípio da dignidade ao retirar a humanidade das mulheres e reduzi-las à condição de meros objetos. O Estado diz se e quando ela pode exercer seus direitos sexuais e reprodutivos, retirando a sua vontade", explica.

Luna também chama atenção para a discriminação e estigmatização que a ação evidencia. "Com certeza há ato de eugenia. A portaria diz quem não deve ter o direito de exercer o seu direito reprodutivo, quem ela não considera mulher. Estabelece uma hierarquização do conceito de mulher e destina essa ação àquelas que considera menos nessa hierarquia. É indignante, é desumano", diz.

Para a presidente da Comissão, a imposição da portaria sem diálogo com os setores afetados é antidemocrática. "Realizar esse tipo de prática sem que haja um diálogo amplo com a sociedade e em especial com as entidades de mulheres é um grave retrocesso. O que pensam as mulheres que serão afetadas por essa normativa? Elas foram ouvidas? Elas sabem qual é o impacto disso em suas vidas?", questiona.

Vanessa Campos, de 49 anos, que vive com HIV desde os 17, responde a pergunta. "Para nós isso é uma grande violência. É mais uma forma de controlar nossos corpos, discriminar, confirmar o estigma. Vivemos em uma sociedade que diz que nossos corpos positivos para HIV não podem gestar", diz.

Secretária de comunicação da RNP+ Brasil, a Rede Nacional de Pessoas vivendo com HIV e Aids, Vanessa combate há anos diversas práticas de violência obstétrica contra mulheres soropositivas dentro dos próprios equipamentos de saúde, inclusive laqueaduras feitas sem consentimento.

"Desde o primeiro momento em que eu quis ser mãe, isso me foi negado. Ouvi que eu deveria me operar para nunca ter filhos", relata. Hoje mãe de três filhos, ela luta pelo fim da estigmatização. Segundo dados do Ministério da Saúde de 2020, cerca de 920 mil brasileiros vivem com HIV ou Aids.

Direito à escolha informada

Atualmente, o SUS oferece como método contraceptivo de longa ação apenas o DIU (dispositivo intrauterino) de cobre. A ginecologista Halana Faria, membro do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, chama a atenção para a falta de opções de contracepção adequada que essa portaria expõe. Segundo ela, o implante subdérmico, assim como outros métodos, é uma demanda relevante e deveria ser oferecido de forma universal.

"Algumas mulheres têm contraindicação para o DIU e, para elas, o implante seria uma opção. A diversificação de oferta é importante. Precisamos bater nessa tecla da escolha informada. O implante deveria ser uma opção para todos", diz.

A trabalhadora sexual Santuzza Alves de Souza, de 40 anos, coordenadora do Coletivo Rebu e vice-presidente da Cuts (Central Única das Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais), afirma ter recebido a informação com receio. "Primeiro que esse governo jamais faria alguma coisa boa para as putas. Nem para as mulheres em situação de rua e nem para as mulheres em privação de liberdade, ainda mais um método caro desse", diz.

Santuzza organizou reuniões para debater o tema e coletou mais de 30 assinaturas para um manifesto contra a portaria, entre coletivos de juristas, trabalhadores sexuais e entidades de defesa dos direitos humanos. "É uma medida higienista", diz ela, que é mãe de três filhos. "Para chegarem a esse público, isso foi baseado em um pensamento preconceituoso com relação à gente".

População de rua e carcerária

Segundo dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) de 2020, cerca de 220 mil brasileiros vivem nas ruas. Já nas cadeias brasileiras, a população é de 685 mil pessoas, a terceira maior do mundo, sendo 37 mil mulheres, segundo dados mais recentes, de 2017, do Infopen (sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário).

Alessandra Ramos Cordeiro, do Movimento População de Rua, enxerga na portaria um ato de violação contra esses corpos. Hoje moradora de uma ocupação, ela reitera que a população de rua tem direitos historicamente negados.

"A pessoa em situação de rua já é frágil, vulnerável, muitas estão adoecidas. Tenho 40 anos e metade deles foi vivido nas ruas. Tive meus cinco filhos nas ruas de Belo Horizonte, todos estão comigo e também minha neta. Temos um poder público que prefere se preocupar em controlar o útero das mulheres em vez de criar políticas públicas para nos garantir moradia, dignidade e saúde", diz.

"Se eu decidi ter cinco filhos, é o meu corpo, minhas regras, minha vida. Se eu quiser ter dez filhos, eu vou ter. Eles querem violar nossos corpos e o meu eles não vão violar", diz.

Alessandra Ramos Cordeiro, do Movimento População de Rua - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Alessandra Ramos Cordeiro, do Movimento População de Rua
Imagem: Arquivo Pessoal

Segundo Marcela Amaral, coordenadora do Projeto Gênero e Drogas do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, que atua frente à população carcerária feminina, a ação do Ministério da Saúde reafirma "o biopoder, que define as pessoas que podem viver e as que devem morrer".

"O sexo está presente na articulação das tecnologias que formam este biopoder, regulando as populações. O direito à parentalidade e o direito ao nascimento se encontram aí e por essa portaria passa a ser direito apenas de alguns grupos sociais. É um projeto eugênico de um Estado que se posiciona contrariamente aos direitos fundamentais, à dignidade das pessoas dos grupos sociais citados", diz.

O implante

O Ministério da Saúde afirma que "vão receber o implante mulheres entre 18 e 49 anos em situação de rua; com HIV/AIDS em uso de dolutegravir; em uso de talidomida; privadas de liberdade; trabalhadoras do sexo; e em tratamento de tuberculose em uso de aminoglicosídeos", em publicação referente à Portaria SCTIE Nº 13/2021.

O medicamento é o Implanon NXT, do laboratório norte-americano Schering Plough. Cada implante custa R$ 632,29 no preço de fábrica e pode chegar a R$ 900 em farmácias. O SUS vai pagar R$ 280 em cada unidade. Com validade de três anos, o Implanon é um bastão de 4 centímetros que é inserido no braço da paciente e libera continuamente a substância etonogestrel na corrente sanguínea, impedindo a ovulação.

O fabricante lista como riscos no uso do Implanon: aumento da possibilidade de ter câncer de mama, trombose, alterações de metabolismo, gravidez ectópica, hipertensão, doença hepática, cefaleia, aumento de peso, entre outros.

O UOL questionou o Ministério da Saúde sobre como será feito o programa de planejamento familiar citado, quais as justificativas para a escolha do público-alvo e se a colocação do implante será obrigatória. Nenhuma das questões foi respondida até a publicação desta reportagem.