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Fantasma desde 1960, Síndrome da Talidomida ainda é realidade e faz vítimas

Caixa do remédio talidomida traz alertas nas embalagens - BBC
Caixa do remédio talidomida traz alertas nas embalagens Imagem: BBC

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

02/05/2021 04h00

Mesmo com mudança e controle mais rígido desde 2011, pelo menos cinco gestantes fizeram uso da talidomida —droga vedada para grávidas e que causa malformação fetal— nos últimos dez anos no Brasil.

Apesar de pequeno, o número acendeu o alerta da vigilância em saúde pela ainda existência de casos de um problema que foi um fantasma para mulheres grávidas nos anos 1960 e fez nascer uma geração de crianças com a síndrome.

O remédio talidomida foi criado na Alemanha em 1954 com objetivo de aliviar ansiedade e enjoo. Quatro anos após isso, a droga começou a ser vendida no Brasil.

O sucesso na época a tornou conhecida, mas, em 1960, se descobriu que o medicamento causava encurtamento dos membros ligados ao tronco de fetos em mulheres grávidas, a chamada focomelia (membros similares aos de uma foca).

Cerca de 1.500 casos foram registrados no país, segundo a Associação Brasileira dos Portadores da Síndrome da Talidomida.

A síndrome assombrou o mundo nos anos 1960 e levou a restrições dele em todo o planeta —inclusive no Brasil. Entretanto, a droga segue sendo usada no país, especialmente em casos de hanseníase. Mas é vedada para mulheres férteis sem uso de métodos contraceptivos.

Após anos de aprimoramento, o país conta com uma regra criada em 2011, quando a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) publicou uma RDC (Resolução de Diretoria Colegiada) com regras rígidas de controle sobre o uso da droga.

"Embora o Ministério da Saúde, em parceria com a Anvisa, tenha realizado ações de educação continuada para promoção do uso racional e do controle do medicamento, ainda há notificações de casos de mulheres grávidas em uso de talidomida", diz boletim epidemiológico n° 14, de abril, produzido pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde.

Quais são os casos

Os cinco casos relatados ocorreram entre 2011 e 2019 nos estados de Piauí, Maranhão, Pernambuco, Goiás e Minas Gerais. Segundo os relatos, um dos bebês morreu logo após o parto. Outra grávida teve um aborto. Outra criança teve a embriopatia confirmada. Outros dois bebês nasceram, mas não tiveram embriopatia confirmada.

"Nos casos descritos, as mulheres utilizaram a talidomida para o tratamento do ENH [eritema nodoso hansênico], uma condição clínica decorrente da hanseníase, altamente incapacitante, que também afeta, em sua maioria, populações vulneráveis, com condições socioeconômicas desfavoráveis", afirma o documento.

O caso que mais chama a atenção foi notificado em 2015, no Piauí, onde a mãe do bebê fez uso da talidomida por oito anos, mas nesse período engravidou e teve um bebê com malformação. "A criança foi avaliada por uma médica geneticista, a qual confirmou o diagnóstico da embriopatia causada por talidomida", diz o boletim.

Apesar de a RDC exigir termo assinado de informação sobre os riscos, equipe local de saúde informou durante a inspeção que a mulher só foi "orientada verbalmente" quanto aos riscos decorrentes do uso do medicamento na gravidez.

"No mesmo ano da notificação, o Ministério da Saúde e a Anvisa realizaram uma visita técnica ao estado e, de acordo com as legislações sanitárias vigentes, constataram que havia problemas no credenciamento das unidades, no cadastro dos médicos e pacientes, nos registros de movimentação da talidomida, na infraestrutura da unidade e no armazenamento dos medicamentos. O estado do Piauí foi orientado a elaborar um plano de ação para regularização do controle do uso da talidomida", relata o boletim.

Lei veda acesso à droga

Vítimas da talidomida em audiência no Senado em 2007 - Jane de Araújo/Agência Senado - Jane de Araújo/Agência Senado
Vítimas da talidomida em audiência no Senado em 2007
Imagem: Jane de Araújo/Agência Senado
O acesso à talidomida é extremamente restrito no Brasil e só ocorre pelo SUS (Sistema Único de Saúde) em unidades públicas específicas. O controle é feito pelas vigilâncias sanitárias e somente médicos e farmacêuticos registrados podem prescrever o medicamento.

Em 1965, o Ministério da Saúde passou a usar a talidomida para o tratamento de ENH. "Mais de 70% das pessoas que fazem uso dessa droga são pacientes de hanseníase e esse problema atinge normalmente pessoas mais humildes. Mas ela também é usada em outros casos", diz o ginecologista Jair Roberto da Silva Braga, integrante da Comissão Nacional Especializada de Medicina Fetal da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia).

Após muitos anos, apenas em 1997, uma portaria regulamentou registro, produção, comercialização, exposição, prescrição e dispensação apenas para casos de ENH, lúpus, úlceras aftóides em pacientes portadores de HIV e doença do enxerto contra hospedeiro. Na década de 2000, ampliou-se o uso da talidomida para o tratamento do mieloma múltiplo (um tipo de câncer).

Com a RDC de 2011, ficou proibido qualquer tipo de venda ao público da talidomida, assim como propaganda ou distribuição de amostras grátis. Também foi proibida a presença de mulheres nas linhas de produção e fabricação da droga.

"Os laboratórios oficiais fabricantes devem fornecer o medicamento exclusivamente aos programas expressamente qualificados pela autoridade federal competente e a estabelecimentos de ensino/pesquisa devidamente autorizados pela Anvisa", diz a RDC.

Devido aos graves efeitos colaterais, qualquer medicamento à base de talidomida só pode ser prescrito para mulheres em idade fértil após avaliação médica, com exclusão de gravidez e mediante a comprovação de utilização de pelo menos dois métodos efetivos de contracepção.

Número subestimado

O número de casos na década passada, porém, deve estar subestimado. "Seguramente devem ter ocorrido mais casos, o próprio boletim do ministério dá a entender isso. Certamente, por conta da deficiência geral da farmacovigilância, deve haver uma subnotificação", afirma Jair Braga.

Para ele, o grande problema que acarretaria casos ainda é a falta de maior controle na dispensação da talidomida.

É preciso melhorar a farmacovigilância, que deixa a desejar em algumas situações, especialmente cidades pequenas, onde não tem médicos cadastrados nem o controle da contracepção. Sem contar que o compartilhamento dos medicamentos entre a família: um vê, pega e toma em algum momento.
Jair Braga, ginecologista

Para o ginecologista, os casos revelados no boletim devem servir de alerta. "Não é um número grande de casos. São 5 milhões de comprimidos usados por ano no Brasil. Se for olhar por uma aspecto pandêmico, como foi na década de 1950, não são números altos, mas são um sinal de alerta que esse debate não pode ser abandonado", diz.

Ele explica que há um grande benefício a pacientes com hanseníase e que não haveria necessidade em proibir a droga no país. "É um medicamento de baixo custo e boa efetividade. Enquanto não puder se substituir a contento, tem de usar. Até lá, o que tem de melhorar farmacovigilância, fazer mais campanhas educativas", relata.

Associação cobra punições

Segundo a Associação Brasileira dos Portadores da Síndrome da Talidomida, existem em torno de 1.500 pessoas que recebem pensão pelo governo federal, que também tiveram direito a indenização por dano moral. O Ministério da Saúde aponta oficialmente apenas 429 casos da síndrome até 2010.

Para a presidente da associação, Claudia Marques Maximino, os novos casos registrados no Brasil são fruto de uma falta de controle no uso da droga. Ela nasceu sem as pernas e sem um braço por causa do medicamento tomado pela mãe durante a gravidez.

"O Brasil tem lei que pega e lei que não pega, e o problema é que não aplicaram a RDC como deveriam. Todos esses cinco casos não têm assinatura do termo de responsabilidade das gestantes. Devia ter médico que acha que nem sabia o que estava prescrevendo", afirma.

Apesar de reconhecer os avanços em termo de legislação sobre a talidomida no país, Cláudia diz que ainda é preciso aprimorar a lei e defende que a Anvisa abriu consulta pública sobre o tema.

"Defendo que tem de haver a responsabilização pelo mau uso, e isso tem de estar muito claro na legislação. Nesses últimos cinco casos não teremos ninguém responsabilizado. É absurdo que eu, com quase 60 anos, ainda esteja brigando por isso", explica, cobrando inclusão na lei de punições.

Tivemos um ganho com as legislações ao longo do tempo, mas não era para ter nenhum caso. Para mim, como vítima, não é cabível ver mais isso. A minha vida foi podada, eu não consigo sair de casa se não tiver uma pessoa comigo. Quero que mantenha a RDC, mas que se aprimore essas penalizações. Como está é muito brando.
Claudia Marques Máximo, presidente da associação e vítima da talidomida

No boletim, o ministério relata que está adotando medidas. Entre elas estão:

  • Elaboração de um Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas de Hanseníase, que atualizará e aprimorará as orientações quanto ao cuidado das pessoas acometidas por ENH e que necessitam utilizar a talidomida;
  • Elaboração de um manual orientador sobre o cuidado aos pacientes em uso de talidomida no SUS e investigação dos casos suspeitos de embriopatia;
  • Elaboração de materiais informativos para os profissionais de saúde e pacientes em uso de talidomida;
  • Desenvolvimento de um sistema de farmacovigilância da talidomida no SUS;
  • Revisão da RDC Anvisa nº 11/2011;
  • Elaboração de um módulo sobre a talidomida na Educação a Distância (EaD) em hanseníase.