Covid: Governo 'tira' da estatística morte de indígenas ocorrida em cidades
Da Terra Indígena Taunay-Ipegue, em Mato Grosso do Sul, Carlos Terena teve participação ativa na Constituinte de 1988 e foi criador dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas. Em junho deste ano, aos 67 anos, ele foi mais uma vítima da covid-19, mas o governo federal não o reconhece como um indígena que tenha sido vítima da doença.
Vinculada ao Ministério da Saúde, a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), responsável pelos boletins epidemiológicos da pandemia, não registra mortes de indígenas pela doença que tenham acontecido fora de territórios reconhecidos e homologados. A situação provoca uma disparidade entre os dados do governo federal e os compilados por entidades que avaliam o impacto da pandemia sobre a população indígena.
Até 16 de agosto, o órgão federal registrou a morte de 783 indígenas e pouco mais de 52 mil casos de contaminação. Nenhum foi registrado em Brasília (DF), onde Carlos Terena morava, ficou internado e faleceu por complicações da doença.
Criado de forma independente, o Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena tem apresentado um outro panorama deste cenário. De acordo com o portal, o número de infectados e mortos é maior: cerca de 58 mil casos e 1.179 mortes até as duas primeiras semanas deste mês.
O Comitê é uma iniciativa da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), que compila dados de diversas organizações indígenas, da própria Sesai e também de secretarias municipais e estaduais de Saúde, além do Ministério Público Federal. Diferentemente da Sesai, o relatório independente das organizações registrou duas mortes em Brasília.
"A subnotificação da Sesai é muito grande. Eles não consideram indígenas em contexto urbano, não consideram indígenas em terras não homologadas. A diferença, a discrepância que há entre os nossos dados e os dados da Sesai é tamanha porque nós não temos essa discriminação. Nós consideramos indígenas em qualquer contexto, porque o território indígena é o Brasil inteiro", diz Eriki Paiva Terena, da Apib e um dos coordenadores do comitê.
Em nota, a secretaria explica que seus dados são compilados com base nos números fornecidos pelas equipes de saúde dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas, que ofertam serviços de saúde básica a, aproximadamente, 6 mil aldeias no país.
A secretaria argumenta que, segundo a legislação vigente, a população indígena em contexto urbano é atendida diretamente pelas respectivas secretarias municipais de saúde, e não pelo governo federal.
Até o fechamento desta reportagem, 163 povos haviam sido impactados pela covid-19, segundo o Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena. Entre os que mais apresentaram infecções ou óbitos está o povo xavante, seguido do terena, kokama e guajajara, respectivamente.
Além de não registrar mortes de indígenas citadinos, a Sesai não especifica casos ou mortes por localidade nem detalha as etnias. Não faz isso, afirma, por "motivos éticos".
Identidade
Márcia Kambeba cresceu em uma aldeia do povo ticuna, virou geógrafa e hoje é a primeira mulher indígena titular da Ouvidoria Geral do Município de Belém do Pará. Ela explica que há uma disputa acerca da identidade indígena e isso se reflete nas políticas públicas do país.
"Os indígenas que vivem na cidade, morando em casas de alvenaria ou não, têm o mesmo direito de ter sua afirmação e pertencimento de povo", diz. "Falta aos governantes um conhecimento sobre o valor do 'ser indígena', uma vez que nossa identidade não se desfaz pelo fato de sairmos da aldeia", completa.
O problema que leva a uma subnotificação do impacto da covid-19 entre a população indígena já foi sinalizado antes. Em maio de 2020, lideranças indígenas apontaram em uma carta a falta de assistência médica na região da tríplice fronteira brasileira com Colômbia e Peru, no estado do Amazonas.
O documento foi assinado por Glades Kokama Rodrigues, presidenta da Federação Indígena do povo Kokama; Eladio Kokama Curico, presidente da Organização Geral dos Caciques das Comunidades do Povo Kokama, e Edney Kokama Samias, patriarca tradicional.
Os representantes kokamas denunciaram ainda que os falecidos por covid-19 estavam sendo registrados como "pardos" nos atestados de óbito. "O Estado, através da Sesai, insiste em fazer diferença entre o atendimento de parentes que vivem na cidade e os que estão na aldeia", diz trecho da nota.
Para Márcia Kambeba, o movimento aldeia-cidade não deveria representar um tipo de apagamento da própria origem e identidade indígena. "A migração indígena para cidades é motivada pela busca de oportunidades relacionadas à educação ou mesmo à vivência citadina, muitas vezes, como forma de apresentar retornos socioeducativos às comunidades de origem e trabalhar em instâncias de resistência", explica.
Memória
Natural da Terra Indígena Taunay-Ipegue, em Mato Grosso do Sul, Carlos Terena morava em Brasília (DF) desde a juventude e morreu aos 67 anos. Ele teve participação ativa na Constituinte de 1988, ganhou notoriedade ao criar os Jogos dos Povos Indígenas, em 1996, além da articulação dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas.
Ele integrou ainda o Conplei (Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas) e era servidor aposentado da Funai (Fundação Nacional do Índio).
Segundo dados do Comitê, a população indígena maior de 60 anos tem sido a mais impactada pela covid-19. Das 343 mortes apuradas diretamente pela organização, 225 eram de pessoas nesta faixa etária. Já o boletim epidemiológico da Sesai é inelegível nesta questão, pois não apresenta números concretos, apenas a estimativa por faixa etária.
"Tivemos muitas perdas e muitos dos que morreram eram lideranças, anciãos, guerreiros e guerreiras de presença marcante na nossa luta e resistência", lamenta Márcia Kambeba.
Denúncias
A necessidade de uma atenção mais efetiva à população indígena no contexto da pandemia chegou ao STF (Supremo tribunal Federal) em julho do ano passado, quando a Apib e seis partidos políticos (PSB, PSOL, PCdoB, Rede, PT, PDT) acionaram o governo na corte.
Na ocasião, o ministro Luís Roberto Barroso, relator da matéria, decidiu que o governo deveria adotar diversas medidas para conter o avanço do coronavírus em meio à população indígena. Após idas e vindas, o juiz homologou o plano parcialmente em março deste ano, apesar de considerá-lo precário.
Entre várias medidas, o ministro determinou que o Ministério da Saúde disponibilize aos técnicos indicados pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e pela Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) o acesso às informações do Siasi (Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena), principal plataforma que agrupa os dados epidemiológicos.
Com duras críticas ao governo federal, as entidades indígenas também acionaram pela terceira vez o TPI (Tribunal Penal Internacional), denunciando o presidente Jair Bolsonado (sem partido) por crimes contra a humanidade e genocídio.
A ação foi movida na segunda-feira (9) e reforça que o presidente incitou, facilitou e deixou de combater as invasões às terras indígenas, o garimpo ilegal, o desmatamento e a contaminação - por mercúrio, minérios ou Covid-19 -, afetando a vida, a saúde, a integridade e a própria existência dos povos indígenas no Brasil.
"Esta política consiste em ataques sistemáticos aos povos indígenas, seja diretamente aos seus corpos, seja às suas terras, resultando no seu desaparecimento físico e no extermínio de modos de existência, com vistas, em casos específicos, à sua destruição", diz trecho da ação.
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