Em déficit, Conselho de Medicina gasta R$ 1 mi com seu presidente em 2 anos
Alvo da CPI da Covid por pedir a liberação de remédios sem comprovação científica contra a covid-19, o presidente do CFM (Conselho Federal de Medicina), Mauro Luiz de Britto Ribeiro, também entrou na mira do TCU (Tribunal de Contas da União) em razão de seus gastos com dinheiro da entidade.
Embora as contas da autarquia tenham ficado no vermelho em 2020, as despesas de Ribeiro com jeton, passagens de avião e hospedagem —incluindo estadia em Dubai— custaram aos cofres do conselho R$ 1 milhão em menos de dois anos.
Jeton é o nome que se dá à remuneração que o CFM paga a seus conselheiros por participarem de encontros e eventos. Como a entidade não paga salário, ela desembolsa R$ 800 ao conselheiro que comparece a cada uma de suas plenárias, reuniões de diretoria, encontros nacionais e atividades individuais.
Esses pagamentos agora serão investigados pelo TCU após aprovação de um requerimento na ultima quarta-feira (24) pela Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados. A suspeita é que "o CFM estabeleceu uma espécie de remuneração por meio de diárias e jetons aos seus membros", diz o pedido de investigação protocolado pelo deputado federal Elias Vaz (PSB-GO).
Apenas nos 22 meses na presidência, Ribeiro recebeu R$ 325 mil em jeton. Em abril de 2020, por exemplo —quando cada jeton valia R$ 700—, as atividades para "cumprimento do regimento interno" consumiram duas reuniões por dia entre 31 de março e 3 de abril, resultando em oito jetons que totalizaram R$ 5.600 apenas ao presidente.
Ao somar 22 meses de jeton, passagens aéreas e estadia, Ribeiro custou, em média, R$ 49,7 mil por mês ao CFM.
O CFM não comentou sobre os gastos do presidente, mas nega qualquer irregularidade ao afirmar que suas contas são auditadas e que o Portal da Transparência do órgão é "considerado uma das melhores ferramentas do tipo dentre os órgãos públicos".
Por ser uma autarquia, como por exemplo o Banco Central e a Universidade de Brasilia, o CFM é considerado uma entidade pública com autonomia financeira, mas atribuições e obrigações da administração pública.
Advogado especializado em direito público, Roberto Piccelli afirma que "o CFM exerce um papel de fiscalização e disciplina da atividade médica, pode aplicar penalidades e tem a prerrogativa de cobrar taxas".
"Em contrapartida, também se sujeita aos controles a que se sujeita qualquer órgão público quanto aos seus recursos. Cabe ao MPF [Ministério Público Federal] e ao TCU verificar a regularidade das práticas administrativas do conselho", afirma.
Para o deputado Elias Vaz, os conselheiros "recebem valores muito altos, pagos com dinheiro que sai do bolso dos médicos", embora oficialmente não tenham salário. "As diárias também são altas e precisam ser fiscalizadas".
Viagens de Campo Grande a Dubai
Nesses quase dois anos, o CFM bancou R$ 312 mil em passagens de avião a Ribeiro. A maior parte desse dinheiro, R$ 176 mil, pagou os deslocamentos do presidente de Campo Grande (MS), onde mora, para as reuniões em Brasília, sede do conselho.
Os conselheiros têm direito a diárias de R$ 938 para estadia no Brasil e de R$ 2.469 para se hospedar em hotéis internacionais.
Apenas em hospedagens, o CFM gastou com Ribeiro R$ 456.200 em 22 meses de mandato, incluindo as estadias internacionais.
Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, foi uma das cidades visitadas por Ribeiro, que passou por lá em 2018, quando era vice-presidente, e em 2020. Juntas, as viagens custaram R$ 65 mil em passagens e R$ 29.200 em diárias.
A mais recente delas é citada no pedido de investigação ao TCU aprovado na Câmara. No ano passado, Ribeiro tinha uma conferência na Malásia entre 29 de fevereiro a 4 de março.
O requerimento diz que ele participou apenas da abertura do evento, voltando a Dubai no dia seguinte, onde permaneceu até 4 de março. Além dos R$ 31 mil da passagem, o CFM gastou R$ 14.800 em seis diárias.
Ao UOL, a assessoria do conselho diz que "não procede a afirmação" de que Ribeiro teria participado "apenas da abertura do evento". A prestação de contas no site mostra que Ribeiro deixou a Malásia no dia 4.
Questionada, a equipe técnica do deputado Elias Vaz enviou ao UOL a prestação de contas extraída do site do CFM em 14 de outubro, indicando que o presidente do conselho ficou apenas para a abertura, tendo voltado para Dubai em 1º de março.
O CFM nega que tenha alterado as informações após questionamento da reportagem, mas se recusou a enviar os comprovantes. "Todos os documentos relativos estão à disposição dos órgãos de fiscalização e controle, se necessário", afirma.
Déficit de R$ 70 milhões
Além desses gastos, advogados e contadores especializados em contas públicas analisaram a arrecadação e a despesa do CFM em 2020 a pedido do UOL. No ano passado, o CFM furou o teto de R$ 183,6 milhões previstos para gastar em 2020 ao contrair despesas empenhadas que somadas chegaram a R$ 241,8 milhões.
No ano passado, o conselho arrecadou R$ 171,6 milhões, quitou R$ 121,5 milhões em dívidas e empenhou outras dívidas de R$ 120,2 milhões, fechando o ano passado com um prejuízo de R$ 70,1 milhões.
Com isso, o dinheiro acumulado no caixa do conselho ao longo dos anos caiu:
Saldo em 2018: R$ 157,9 milhões
Saldo em 2019: R$ 210,6 milhões
Saldo em 2020: R$ 142,5 milhões
Para o advogado Ricardo Pedro Stella, especializado em contas públicas, os gastos da entidade com passagens, estadia e jetons justificam auditoria do TCU, especialmente diante do déficit nas contas de 2020.
"Concordo plenamente que o TCU precisa avaliar as contas da autarquia. A solicitação não é justa, é necessária", diz ele, que considerou a prestação de contas do conselho "pouco transparente".
"Está tudo ali [na prestação], mas não está efetivamente onde, como e por quê", diz ele. "Cumpriram a regra de deixar disponível ao público, mas os detalhes não estão lá. Está tão confuso que o homem médio não tem ideia de como se gastou."
Também especialista em contas públicas, o advogado Luis Augusto Borsoe diz que "os gastos com passagens aéreas e hospedagem podem ser objeto de avaliação" pelo TCU, uma vez que "houve déficit no balanço orçamentário".
Stella lembra que a autarquia não tem a obrigação de cumprir o teto, "todavia o déficit orçamentário induz à ideia de má gestão dos recursos, um forte indicativo de que as contas devem ser avaliadas pelo TCU".
Em nota, a autarquia afirma que "os relatórios orçamentários e prestações de contas do CFM são regulamente auditados pelo setor de controle interno da autarquia, por auditoria externa contratada e pelo Tribunal de Contas da União".
Ressalte-se que o TCU tem reconhecido a atuação do CFM, fazendo menções elogiosas ao trabalho da autarquia pelo seu cumprimento adequado de normas de transparência, fiscalização e controle de gastos."
CFM, em nota
Cloroquina
O rombo nas contas da autarquia pode aumentar se a Defensoria Pública da União vencer a ação civil pública ajuizada em outubro contra o conselho por deixar a critério de médicos receitar cloroquina e hidroxicloroquina para tratamento da covid-19, medicamentos sem eficácia comprovada contra a doença.
Os defensores pedem R$ 60 milhões de indenização por danos morais coletivos e querem que o conselho também indenize as famílias cujos parentes foram tratados com o medicamento, tiveram seu quadro de saúde agravado e morreram.
Ainda no mês passado, o Ministério Público Federal em São Paulo abriu um inquérito civil para investigar a conduta do CFM pela mesma razão. Ribeiro ainda defende a decisão da entidade, embora a OMS (Organização Mundial da Saúde) tenha concluído em março deste ano que a hidroxicloroquina não deve ser usada no tratamento da covid por risco de efeitos colaterais adversos.
Antes que a CPI da Covid fosse encerrada, seu relator, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), anunciou que Ribeiro havia passado à condição de investigado "por seu apoio ao negacionismo, pela maneira como deu suporte à prescrição de remédios ineficazes e pela omissão diante de fatos evidentemente criminosos".
Ao jornal O Estado de S. Paulo, Ribeiro disse lamentar a condição de investigado sem antes ter sido ouvido pela CPI mesmo após se oferecer para falar.
"Não podemos questionar nada que somos colocados como negacionistas, como terraplanistas. Isso está errado, temos que discutir as coisas", afirmou Ribeiro.
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