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Investigado por CPI, presidente do CFM pediu uso de cloroquina contra covid

Leonardo Martins

Do UOL, em São Paulo

18/10/2021 04h00Atualizada em 18/10/2021 11h13

Em um documento de abril de 2020, o presidente do CFM (Conselho Federal de Medicina), Mauro Luiz de Britto Ribeiro, pediu a liberação do uso de cloroquina e hidroxicloroquina, "em condições excepcionais", para tratamento de pacientes com covid-19. Ele é um dos investigados pela CPI da Covid, que divulgará nesta semana o relatório final com suas considerações sobre eventuais crimes do governo federal durante o combate à pandemia.

O parecer foi aprovado por unanimidade em sessão plenária do CFM em 16 de abril de 2020. Ribeiro assina o pedido como "relator" e, na parte como "interessado" na liberação dos medicamentos, está registrado o próprio CFM.

Essas ações são legais, de acordo com o regimento interno do conselho, mas ex-conselheiros e ex-presidentes do CFM ouvidos em condição de anonimato pelo UOL ressaltam que o parecer não teria tido aval científico de especialistas da área, que o CFM divulgou uma mensagem equivocada à sociedade com a liberação e que o rito seguido por esse documento não teria seguido os passos habituais.

Além disso, os entrevistados ressaltaram a proximidade entre Mauro Ribeiro e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), defensor do uso desses medicamentos contra a covid-19 —ele mesmo diz ter tomado cloroquina duas vezes—, apesar de estudos comprovarem a ineficácia deles no tratamento contra a doença criada pelo novo coronavírus.

Em nota, o CFM ressaltou que o parecer público foi aprovado de forma legal, seguindo as regras do conselho, e entregue ao presidente Jair Bolsonaro, fazendo com que o conselho comprovasse "seu compromisso com a transparência de seus atos" (leia a nota na íntegra ao final deste texto).

Falta de evidências

Apesar de não ser obrigatório, os médicos que criticaram o parecer explicam que é de "bom tom" que pedidos de uso de medicamentos, principalmente com efeitos colaterais preocupantes, tenham um parecer técnico de uma equipe de especialistas, como um colegiado de infectologistas e reumatologistas com experiência em hidroxicloroquina e cloroquina.

Também se poderia anexar o aval de uma câmara técnica do próprio CFM, em que médicos especialistas apoiariam ou não os termos. O parecer e o CFM, no entanto, não citam nem explicitam se o texto passou por tais crivos científicos.

Pelo contrário, o documento cita diversas vezes que "não existem evidências robustas de alta qualidade que possibilitem a indicação de uma terapia farmacológica" contra a covid-19.

O exemplo científico citado por Mauro Ribeiro para sustentar a liberação dos remédios é de um documento da Sociedade Americana de Doenças Infecciosas, de 11 de abril, que, segundo o presidente do CFM, recomendava hidroxicloroquina e cloroquina, isoladamente ou associadas à azitromicina (um antibiótico), para pacientes internados sob protocolos clínicos de pesquisa.

Em sua conclusão, no entanto, ele pede orientações diferentes, como quando escreveu para que se considerasse o uso dos remédios em pacientes com sintomas leves no início do quadro clínico, ressaltando a necessidade de ter aval do paciente após ser informado dos efeitos colaterais possíveis.

À época, pesquisas "padrão-ouro", executadas de forma aleatória com grupo de controle e placebo, já indicavam que as drogas não funcionavam contra o SARS-CoV-2. Uma delas foi publicada na revista Annals of Internal Medicine.

O estudo analisou 491 pacientes de vários estados dos EUA e do Canadá e foi conduzido por pesquisadores da Universidade de Minnesota. A conclusão foi que a hidroxicloroquina "não diminui substancialmente a severidade dos sintomas em pacientes leves e em início de covid-19".

Em 21 de abril, o instituto norte-americano Niad (Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, em tradução livre) contraindicou o uso de hidroxicloroquina e azitromicina para tratamento contra a covid. Um estudo sobre o uso da cloroquina no Brasil, conduzido em Manaus, também foi interrompido à época por motivos de segurança.

A própria OMS (Organização Mundial da Saúde), também em abril, agiu com cautela sobre o assunto, até que, em maio, suspendeu um estudo em andamento com hidroxicloroquina para avaliar a segurança do remédio. Foi neste mês que um dos maiores estudos do tema também concluiu que a hidroxicloroquina não era eficaz contra a covid.

Em vídeo divulgado pelo site Metrópoles, em 7 de maio de 2020, o próprio Mauro Ribeiro afirmou que a aprovação do uso de hidroxicloroquina aconteceu "fora das nossas normas", se referindo às regras do Conselho Federal de Medicina.

O Código de Ética Médica é claro ao vetar ao médico a divulgação e o uso de tratamentos sem comprovação científica. Os profissionais que participaram da votação sabiam das possíveis implicações de recomendar os medicamentos sem comprovação científica e tomaram cuidado para incluir o afastamento desse artigo na aprovação do parecer, segundo a ata da sessão.

No final, o documento diz que o parecer foi aprovado, "com a inclusão da informação sobre a afastabilidade do artigo do Código de Ética Médica que veda uso de medicamentos cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente".

Mensagem equivocada

O parecer não foi revogado mesmo diante da enxurrada de estudos contrários. Ao mesmo tempo, analisam os ex-conselheiros e ex-presidentes do conselho, por mais que não tivesse sido a intenção, a atual gestão do CFM passou a mensagem à sociedade de que havia um remédio disponível para ser utilizado contra o vírus, o que nunca foi verdade.

"Isso acabou induzindo muitos médicos, mesmo de boa-fé, a usar esses medicamentos. Em todas as oportunidades possíveis, Bolsonaro e o Ministério da Saúde usaram esse parecer do CFM para dizer que estava tudo bem [para receitar remédios ineficazes], que havia autonomia do médico", afirma o médico Daniel Dourado, que também é advogado sanitarista e pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP (Universidade de São Paulo).

Foi desse contexto que tomou força a ideia do "tratamento precoce", que chegou a ser defendido pelo Ministério da Saúde na gestão do general Eduardo Pazuello. Daí o surgimento do "kit covid", que foi amplamente utilizado pela Prevent Senior, hoje alvo de investigações da CPI da Covid.

Segundo o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da comissão, Mauro Ribeiro será um dos indiciados no relatório final da CPI. Ribeiro não prestou depoimento à CPI, mas foi indagado pela Câmara Municipal de São Paulo a prestar depoimentos sobre as denúncias envolvendo a Prevent Senior.

CFM e Bolsonaro

O Conselho Federal de Medicina se mostra alinhado às opiniões sanitárias de Jair Bolsonaro. Segundo ex-conselheiros e ex-presidentes do órgão ouvidos pela reportagem, um dos principais órgãos de saúde do país teria sido cooptado por uma maioria de apoiadores do presidente.

No próprio conselho do CFM há um membro do governo de Bolsonaro. Raphael Câmara, secretário de Atenção Primária à Saúde, é conselheiro do CFM pelo Rio de Janeiro.

O presidente do CFM, Mauro Ribeiro, já apareceu diversas vezes em vídeos compartilhados no Twitter de Jair Bolsonaro. Quando o parecer pedindo o uso de hidroxicloroquina e cloroquina contra a covid foi aprovado, Mauro foi entregá-lo e discuti-lo pessoalmente com Bolsonaro, em cerimônia no Palácio do Planalto.

Há uma semana, o UOL noticiou que, em julho de 2020, um vice-presidente do CFM, Emmanuel Fortes, apoiador público de Jair Bolsonaro, defendeu o parecer do CFM que dá autonomia ao médico para prescrever os remédios que fazem parte do "kit covid".

Em junho, o UOL também revelou que dois médicos conselheiros do CFM participaram de uma reunião do "gabinete paralelo" no Palácio do Planalto, em setembro do ano passado, junto a Bolsonaro.

Intitulado pelo presidente como "Audiência com movimento 'Médicos pela Vida'", o encontro reuniu diversos profissionais da saúde que, sem máscara e dentro de uma sala fechada, defenderam o uso de medicamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19 e o tratamento precoce.

"Temos indícios de que a diretoria do CFM atuou, não se sabe se de maneira combinada ou por convergência ideológica, politicamente neste sentido", complementa Daniel Dourado, que também é pesquisador do Institut Droit et Santé, da Universidade de Paris.

O que diz o CFM

"O parecer 4/2020 foi aprovado 16 de abril de 2020, tendo sido publicado na sequência. Trata-se de documento público, o qual teve cópia entregue ao presidente da República em audiência no dia 23 de abril do mesmo mês. Ao proceder desta forma, o CFM comprovou seu compromisso com a transparência de seus atos, inclusive colocando-se à disposição de toda a imprensa para esclarecer todos os pontos deste parecer.

Os pareceres do CFM são elaborados por seus membros. Não há proibição para que o presidente ou um dos diretores seja relator de qualquer um desses textos. A responsabilidade pela elaboração de um documento é definida em plenária, ficando um dos conselheiros encarregado de apresentar a proposta. O texto é discutido amplamente, podendo ser aprovado ou não. Neste processo, ele pode ser mesmo alterado por consenso ou votação.

Da mesma forma, não existe a obrigatoriedade de um parecer ou resolução contar como relator com um conselheiro que seja médico da especialidade sobre a qual a norma se refere. Há inúmeros casos na história do CFM onde isso ocorreu. A única exigência é que o relator seja um conselheiro eleito.

O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética profissional em toda a República e, ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente. Dentre os princípios éticos está o da autonomia, um dos pilares da prática médica, o qual foi o tema do documento citado".

A CPI da Covid foi criada no Senado após determinação do Supremo. A comissão, formada por 11 senadores (maioria era independente ou de oposição), investigou ações e omissões do governo Bolsonaro na pandemia do coronavírus e repasses federais a estados e municípios. Teve duração de seis meses. Seu relatório final foi enviado ao Ministério Público para eventuais criminalizações.