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Cigarro eletrônico com sabor vicia crianças, diz químico que inspirou filme

Eduardo Militão e Rafael Neves

Do UOL, em Brasília

04/07/2022 04h00Atualizada em 04/07/2022 17h36

Ex- executivo de uma empresa de cigarros que inspirou filme, o bioquímico norte-americano Jeffrey Wigand diz, em entrevista ao UOL, ver os cigarros eletrônicos com sabores como uma "grande invenção" da indústria do tabaco para viciar "milhões" de pessoas desde cedo, ainda crianças.

O cientista, que passou a denunciar as fraudes da indústria tabagista após deixar o cargo de vice-presidente de pesquisa de uma empresa subsidiária da BritishAmerican Tobacc, que controla a BAT Souza Cruz Brasil, afirma que o vício em nicotina entre o público infantil já é uma realidade em seu país, os Estados Unidos, e cobra que autoridades tomem decisões baseadas na ciência.

No Brasil, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) estuda se mantém a atual proibição de cigarros eletrônicos — está marcada para o dia 6 de julho uma sessão extraordinária para analisar o caso.

"Os cigarros eletrônicos são a grande invenção da indústria do tabaco porque eles podem começar com as crianças quando jovens e levá-las ao seu produto principal, os [cigarros] tradicionais", afirmou o pesquisador de 79 anos. A história de como sua luta contra a indústria tabagista começou foi retratada filme "O informante" (1999), de Michael Mann, em que ele é interpretado pelo ator Russell Crowe.

O cigarro eletrônico é do tamanho do meu dedo, facilmente escondido na minha mão"
Jeffrey Wigand, bioquímico

A facilidade do equipamento envolve as crianças, diz ele. "Elas soltam a fumaça. Você não precisa de fósforos, isqueiros, não há cinzas." Ele destacou que tudo é comprado na internet, inclusive o pod, um acessório para colocar sabores de frutas, como manga, morango e menta.

No mês passado, o bioquímico prestou depoimento na agência de saúde dos EUA, o FDA (Food and Drug Administration, equivalente à Anvisa do Brasil), defendendo a proibição a adição de mentol nos cigarros eletrônicos.

Dias depois da oitiva dele, o FDA proibiu o cigarro eletrônico Juul, o mais popular do país. A marca é pertencente à empresa Altria, detentora da Phillip Morris USA.

Hoje, os cigarros matam 8 milhões de pessoas no mundo por ano, afirmou Wigand, citando dados da OMS (Organização Mundial de Saúde).

A indústria defende que os cigarros eletrônicos são um método para que os fumantes tradicionais abandonem os produtos antigos, considerados mais tóxicos. Um estudo preliminar da rede Cochrane indica essa possibilidade.

A SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) já afirmou que cigarros eletrônicos são acessíveis tanto a crianças como a adolescentes mundo afora. Uma doença chamada "evali" já foi detectada entre jovens nos EUA.

Wigand é graduado em química e doutor em bioquímica pela Universidade de Buffalo, estado de Nova Yorque, nos EUA. É fundador da ONG "Crianças Livres da Fumaça", na qual faz palestras para crianças, adolescentes e adultos sobre os males do tabaco.

Jeffrey Wigand concede entrevista ao UOL - Eduardo Militão/UOL - Eduardo Militão/UOL
Jeffrey Wigand concede entrevista ao UOL
Imagem: Eduardo Militão/UOL

Leia os principais trechos da entrevista do cientista, concedida ao UOL em duas conversas por videoconferência, em 2 e 20 de junho.

UOL - Qual sua opinião sobre os cigarros eletrônicos?
Jeffrey Wigand - Tenho uma atitude negativa, porque os cigarros eletrônicos, neste país [Estados Unidos], têm viciado milhões de crianças. Milhões. Temos um problema de todas essas crianças viciadas em nicotina, e o que nós vamos fazer com elas?

Precisamos encontrar alguma ferramenta, alguma metodologia, para ajudar as pessoas a pararem de fumar"

Os cigarros eletrônicos são a grande invenção para as empresas de tabaco porque eles podem começar com crianças, e graduá-los para o seu produto principal, que é o que tem combustão [cigarros tradicionais]. A não ser que encontremos uma maneira de parar esse tipo de aumento para as indústrias de tabaco, continuaremos a ver vidas perdidas.

A indústria diz que os cigarros eletrônicos ajudam as pessoas a pararem de fumar.
Não temos prova que sugira que nicotina em aerossol de um cigarro eletrônico facilita o abandono [do tabagismo]. A indústria pode dizer isso tudo uma vez, mas precisa ser capaz de colocar na mesa ciência que possa ser exercida, e ciência que possa ser repetida. Eles não têm feito isso.

Como avalia a força atual do lobby da indústria?
Eles fazem marketing para as crianças, destinam seu produto para crianças, e as crianças se tornam viciadas. Mesmo as de sete anos de idade. Como se livrar desse vício? É usar outro cigarro eletrônico? Eu não sei. É usar um produto com combustão? É onde eles irão. Mas, uma vez que o vício está aqui, elas precisam alimentá-lo.

Quantas crianças estão viciadas em tabaco por causa dos cigarros eletrônicos?
Eu não tenho certeza sobre as estatísticas exatas, mas eu diria que crianças, no ensino fundamental e médio, têm acesso aos cigarros eletrônicos ou formas de cigarros eletrônicos, como o Juul. Todos são dirigidos para iniciar um vício em nicotina entre as crianças.

Como cigarros eletrônicos viciam crianças e adolescentes?
Cigarros entregam nicotina e cigarros eletrônicos, que entregam nicotina com sabor, como manga, menta, são muito atrativos para crianças. Nós sabemos que o Juul é altamente bem-sucedido em escolas.

Quando uma criança se torna viciada tão cedo, não há apenas um vício, mas também mudanças na química do seu cérebro. E é por isso que é tão perigoso"

Como uma criança de menos de 11 anos tem acesso a cigarro eletrônico?
Elas conseguem alguém de 18 anos para comprar e pegam. Ou, de alguém da família, ou um irmão, uma irmã... Mas o cigarro eletrônico é mais ou menos do tamanho do meu dedo. É facilmente Escondido na minha mão. Você não precisa de fósforos, de isqueiros, não existem cinzas. E você pode mudar o "pod" [espécie de acessório, em alguns casos, em forma de painel]. O "pod" de sabores de nicotina.

Crianças jovens gostam do sabor do cigarro eletrônico. Menta, manga, morango"

Os atores Russel Crowe (esq.) e  Al Pacino em cena do filme "O Informante", de Michael Mann - Divulgação - Divulgação
Os atores Russel Crowe (esq.) e Al Pacino em cena do filme "O Informante", inspirado em Jeffrey Wigand
Imagem: Divulgação

O que acha do lobby da indústria do tabaco no Brasil?
É muito poderoso. Nosso FDA [a agência de saúde dos EUA, equivalente à Anvisa, chamada de "Food and Drug Administration"] tem sido imprudente. Eles não eliminaram nenhum aditivo, como o mentol ou fosfato que manipula a nicotina, chocolate e todas as coisas que fazem os cigarros com sabor.

O senhor acha que mais países tendem a liberar o cigarro eletrônico?
Eu apelaria aos países que irão aprovar os cigarros eletrônicos para, primeiro, olhar os dados. Onde está a ciência?
Você já viu alguma pesquisa científica que diz que funciona? Ele funciona em viciar, mas não em interromper o fumo.

Há um processo na Anvisa para analisar possível legalização dos cigarros eletrônicos. Qual a sua opinião?
Não sei se é uma boa coisa. Tudo é possível. Eu espero que tenhamos um corpo regulatório forte que prove se nós podemos usar ou consumir. Há países no mundo fazendo mudanças, como Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Inglaterra, União Europeia. As coisas aconteceram bem vagarosamente? Nós não temos que normalizar a nicotina como parte da nossa vida cotidiana.

O senhor faria um filme sobre nós, do Brasil?
[Risos] Eu espero que sim. Eu tentaria. Agora mesmo, estou lutando para o controle de tabaco no FDA para eliminar o mentol dos cigarros. Eles eliminaram apenas dos cigarros e charutos, mas não dos cigarros eletrônicos, que sequestra adolescentes.