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Uber, faxina e cozinheiro: a vida de médicos cubanos que ficaram no Brasil

Com duas especializações, Maria Caridade, 60, trabalhou como faxineira após perder o emprego no Mais Médicos - Arquivo Pessoal
Com duas especializações, Maria Caridade, 60, trabalhou como faxineira após perder o emprego no Mais Médicos Imagem: Arquivo Pessoal

Do UOL, em São Paulo

17/12/2022 04h00

Programa símbolo do PT, o Mais Médicos voltará à ativa em um novo formato no terceiro mandato do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. Modificado pela gestão Jair Bolsonaro (PL) em 2019, o programa ficou conhecido por levar médicos cubanos a regiões remotas do Brasil.

Quando Cuba rompeu com o programa após críticas severas de Bolsonaro, médicos cubanos radicados no Brasil —alguns com família e até naturalizados— optaram por permanecer no país na esperança de voltar a clinicar se o PT retornasse ao poder.

Lula venceu, mas seu novo governo não pretende recontratar automaticamente esses cubanos que ficaram no país. A prioridade será dada aos brasileiros ou estrangeiros que tenham sido aprovados no Revalida, avaliação que regulariza o diploma de médico formado no exterior — uma exigência que não existia na primeira versão do programa.

Esperançosos com Lula, quatro cubanos em situação de vulnerabilidade contam suas histórias no UOL:

Maria Caridade Morales Gonzales, 60, virou faxineira

maria caridad - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A médica Maria Caridad trabalhou como faxineira depois de perder o emprego no Mais Médicos
Imagem: Arquivo Pessoal

Nasci em Holguín, leste de Cuba, e fui para Havana aos 14 anos estudar. Aos 24, entrei na Faculdade de Ciências Médicas de Havana: seis anos de curso, três de especialização em clínica médica e mais três em alergia e imunologia.

Tenho uma filha que aos 20 anos veio para o Brasil, se casou e ficou. Como ganhei uma neta, me inscrevi no Mais Médicos para viver no Brasil ao lado delas.

Cheguei em 2015 para trabalhar em Divinolândia, a 490 km de São Paulo. Adorava trabalhar na UBS (Unidade Básica de Saúde) do centro e na roça: uma ambulância me levava e trazia. Ficava o dia todo, até almoçava na casa dos pacientes.

O governo pagava R$ 2.500 e a prefeitura mais R$ 3.000. Nós, cubanos, não somos ambiciosos, eu viva bem, me vestia bem e me virava."

Depois de romper com Bolsonaro, Cuba quis me levar de volta, mas preferi continuar com minha família. Tentei emprego em farmácia, mas não consegui, e fui para São Caetano do Sul, perto da minha filha.

Trabalhei por um tempo como faxineira, mas tenho 60 anos e não aguentei as dores na coluna. Aí comecei como cuidadora, mas também precisava de força para dar banho em um senhor de 79 anos e ainda limpar a casa, fazer almoço e janta.

Agora estou desempregada. Tenho 36 anos de graduada e a esperança de voltar para minha profissão. Estou estudando sobre os problemas do brasileiro, que tem muita hipertensão, pancreatite e transtorno de personalidade.

Ovidio Lediam Viggiani Sierra, 36, motorista de Uber

Eu me formei em 2011 na Faculdade de Ciências Médicas de Mayabeque: seis anos de medicina, depois três de especialização em clínica médica. Vim para o Brasil em 2014.

Fui mandado para um posto de saúde em Campinas (SP): trabalhava até as 17h cuidando da saúde integral da população. A gente também orientava os alunos do quarto e sexto ano de medicina da Unicamp (Universidade de Campinas).

Na época eu ficava com uns R$ 3.000 do salário e ajuda de custo da prefeitura. Depois que fecharam o programa, voltei para Cuba. Arrumei minha documentação e em 2021 voltei com minha mulher e minha filha de nove anos, na esperança de voltar ao Mais Médicos.

Ovidio - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Depois de perder o emprego de médico, o cubano Ovidio Sierra trabalhou carregando gelo, mas agora sustenta a família como Uber
Imagem: Arquivo Pessoal

Eu levei a documentação para o governo, mas me disseram que não contratavam mais cubanos. Aí fui procurar emprego.

Primeiro fui cuidador de idoso, depois trabalhei em uma fábrica carregando gelo. Não fiquei porque era um trabalho puxado: oito horas em temperatura abaixo de zero para ganhar R$ 80 por dia. Não estudei tanto para isso.

Como tinha habilitação brasileira, comecei a fazer Uber há seis meses. Começo a rodar às 6h30 e vou até 18h. Tiro R$ 2.500 por mês, mas pago o aluguel do carro e a gasolina.

Quando um cliente me reconhece, se assusta. Falam que me querem de volta no posto. Até os bolsonaristas dizem que uma coisa boa do PT foram os médicos cubanos.

Se o governo me contratar de novo, tudo vai melhorar. Vou ter dinheiro para a prova do Revalida [as duas etapas custam R$ 4.516] para não depender de mais ninguém. Depois o dinheiro vai para a família. Minha esposa está grávida de cinco meses e meio!

Octavio Isidoro Cuba Gallo, 58, desempregado

Eu me formei no Instituto de Medicina de Ilha Clara, em 1992. Tenho três especializações: atenção básica, geriatria e cuidados intensivos em UTI.

Sou do primeiro grupo cubano que chegou ao Brasil, em 2013. Fui enviado a um posto de saúde em Jaboatão de Guararapes (PE), onde atendia a 40 pacientes por dia, das 7h às 16h. Eu recebia uns R$ 2.900, e Cuba ficava com R$ 9.000.

Tentei fazer poupança, mas esse dinheiro foi embora depois que fui despedido quando Bolsonaro e Cuba romperam. Como me casei e sou naturalizado, fiquei no Brasil esperando voltar ao Mais Médicos.

octavio - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Médico desde 1992, Octavio Cuba Gallo tem três especializações, mas hoje vive em uma favela em Pernambuco
Imagem: Arquivo Pessoal

A minha vida só piorou. Me separei da esposa e não consegui mais trabalho. Vou a farmácia, escritório, mas falam que não contratam por causa do nível superior.

Fui entrando em depressão porque não conseguia pagar o aluguel. Um paciente aqui de Jaboatão me emprestou uma casa. Ela fica em uma favela colada num morro. Ele ia abandonar a casa, mas viu que eu não tinha para onde ir e me emprestou.

Recentemente caiu uma chuva e o barro que desceu do morro quebrou a porta de trás e foi parar na sala. Tenho medo, mas sem essa casa estaria morando na rua.

Quem me ajuda são meus antigos pacientes. Um traz pacote de arroz, outro de feijão, uma carne, farinha... Hoje tenho almoço, amanhã não sei."

Meu sonho é voltar a trabalhar como médico. Com o salário vou comprar uma casa ou um apartamento. Você não sabe como eu estou. Às vezes choro sozinho.

casa octavio - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
O médico cubano Octavio Gallo vive hoje em dois cômodos em uma favela em Pernambuco
Imagem: Arquivo Pessoal

Orlando Cruz Martinez, 53, cozinheiro

Me formei em 1993 na Faculdade de Ciências Médicas de Cienfuegos. Trabalhei em Cuba até 2000, quando passei a ser enviado a missões internacionais em Gâmbia, Guatemala, Bolívia, Guiana. Cumpria a missão e voltava a Cuba.

Em 2014, me convidaram para trabalhar no Brasil. Primeiro fui para Ipiranga do Piauí (PI) e depois para Gama (DF), uma cidade satélite de Brasília onde fiquei até novembro de 2018.

Fazia de tudo no postinho [de saúde]: pré-natal, atendimento de urgência. A relação era ótima com os pacientes. Todo dia eu recebia algum agradecimento na ouvidoria. O salário era bom, mas é difícil poupar, porque no Brasil o nível de vida é muito alto.

Orlando Cruz - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Formado desde 1993, o médico Orlando Martinez clinicou em diversos países pelo mundo, mas seu último emprego no Brasil foi como cozinheiro
Imagem: Arquivo Pessoal

Mas, desde que acabou o contrato, a vida virou um inferno. Em 2018, trabalhei vendendo carro por quatro meses, até a loja fechar. Depois, atuei como ajudante de pedreiro ganhando R$ 80 por dia. Como jardineiro, tirava R$ 150.

Em julho, comecei a trabalhar de cozinheiro em um restaurante que fazia marmita. Como somos em seis, cinco da família trabalhavam. Não chegava a ter salário, era mais para pagar a comida. Mas há dois meses o restaurante fechou e todo mundo ficou desempregado.

Hoje estamos vendendo nossa casa para pagar as dívidas. É o nosso único patrimônio, mas precisamos do dinheiro até voltar a trabalhar como médico.

Escutei na televisão que o programa Mais Médicos vai voltar. Quando a gente for contratado, a primeira coisa que eu vou fazer vai ser pagar as minhas contas, restabelecer a minha vida e viver mais tranquilo.

Depois de 29 anos de formado, foi duro ouvir que a gente nem era médico, era espião. Não acreditarem na minha profissão foi a maior dor que já eu tive na vida.