Farmacêuticas abandonam pesquisas e superbactérias já matam 1 milhão ao ano
A indústria farmacêutica está abandonando as pesquisas de novos antibióticos ao mesmo tempo em que salta de 700 mil para 1,2 milhão o número de mortes relacionadas às superbactérias resistentes aos medicamentos tradicionais, alerta a OMS (Organização Mundial de Saúde) em seu relatório "Incentivando o Desenvolvimento de Novos Tratamentos Antibacterianos 2023".
O micro-organismo pode causar pneumonia, infecção urinária e da corrente sanguínea. Seus efeitos vão de taquicardia, febre e inchaço até a falência múltipla dos órgãos.
Farmacêuticas não investem
O número de pesquisas de novos antibióticos é "insuficente" diante "da crescente propagação da resistência antibacteriana", diz a OMS. Hoje, porém, a maioria dos antibióticos no mercado são variações de medicamentos desenvolvidos ainda na década de 1980.
Apenas 77 novos tratamentos estão em desenvolvimento clínico [no mundo], a maioria é derivada das classes de antibióticos já existentes (...) e é improvável que cheguem ao mercado.
Relatório da OMS
Como as bactérias se tornam resistentes cada vez mais cedo, os medicamentos ficam obsoletos rapidamente e deixam de interessar à indústria farmacêutica.
"Não existe mercado viável para novos antibióticos. O retorno financeiro não cobre os custos do seu desenvolvimento, produção e distribuição", diz o relatório. "Como resultado, as principais empresas farmacêuticas recuaram no desenvolvimento de antibióticos."
Gigantes do setor —como Novartis, AstraZeneca, Sanofi, Allergan e Medicines— encerraram suas pesquisas antibacterianas na última década.
Os pesquisadores afirmam que o setor privado prefere investir em "áreas mais lucrativas, como a oncologia". Só nos Estados Unidos, essa diferença foi de 17 vezes na última década: US$ 1,6 bilhão contra US$ 26,5 bilhões.
Caberá ao setor público financiar novas pesquisas. Enquanto as empresas investem US$ 1,8 bilhão por ano em pesquisas do tipo, governos do G7 —grupo dos países mais ricos do mundo— passaram a gastar valor equivalente após compromisso assinado em 2022. A meta é colocar no mercado quatro novos antibióticos até 2030.
E no Brasil? Procurado, o Sindusfarma (Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos) reforça a necessidade de investimento estatal para "frear o avanço das superbactérias". Seu presidente executivo, Nelson Mussolini, celebrou o relançamento do Geceis, o Complexo Econômico e Industrial da Saúde que pretende produzir no Brasil 70% da matéria-prima de novos medicamentos.
Um arranjo focado nos laboratórios públicos, em colaboração com organismos de fomento e iniciativa privada, pode abrir caminho para que o país se torne protagonista na solução dessa grande questão mundial.
Nelson Mussolini, da Sindusfarma
Superbactérias já matam 1 milhão
A OMS cita no relatório uma pesquisa publicada na revista científica "The Lancet", em 2022, sobre o aumento de mortes atribuídas a bactérias resistentes. Com dados de 204 países, o estudo estimou em 1,27 milhão as mortes diretamente relacionadas às superbactérias em 2019, além de 4,95 milhões de óbitos indiretos.
O número representa um salto em relação à conta anterior. Em 2016, estudo do economista britânico Jim O'Neill estimou em 700 mil os mortos anuais por infecções bacterianas.
Seu prognóstico era de que a resistência aos antibióticos mataria 10 milhões de pessoas por ano a partir de 2050. Se a previsão se confirmar, esses óbitos ultrapassarão as 8,2 milhões de pessoas que morrem anualmente por algum tipo de câncer. "Já estamos muito mais próximos desse número do que pensávamos", lamenta Chris Murray, coautor do estudo na Lancet.
Muitos morreram após infecções que poderiam ser tratadas. Cerca de 400 mil pessoas, por exemplo, tiveram problema respiratório, como pneumonia. Além disso, uma em cada cinco vítimas das superbactérias tinha menos de cinco anos.
Como as bactérias ficam resistentes?
Os médicos precisam receitar a quantidade suficiente de antibiótico pelo tempo necessário para matar todas as bactérias de um organismo doente. Quando mal receitado, o remédio mata apenas as bactérias mais sensíveis, e as que sobrevivem continuam se reproduzindo no corpo, se tornando mais frequentes no ambiente.
"Antibiótico salva vidas, mas precisa ser bem indicado", afirma Thaís Di Gioia, médica microbiologista do Hospital das Clínicas de São Paulo. "Só um exame pode dizer se determinada infecção é causada por bactéria (quando o antibiótico é indicado) ou vírus, mas nem sempre o exame está disponível ao médico, que pode receitar errado", diz Gioia.
E tem muita automedicação. A pessoa tem rinite, pensa que é sinusite e já toma aquele antibiótico guardado em casa.
Thaís Di Gioia, médica microbiologista
Ela recomenda que o paciente não se medique nem descarte antibiótico no lixo comum. "Há bactérias resistentes nos esgotos que chegam ao solo e, depois, ao alimento que a gente ingere", alerta.
Muitas bactérias também se tornam resistentes devido ao uso de antibióticos na cadeia alimentar: 70% do consumo da droga se dá no agronegócio. Apenas 20% do remédio servem para tratar doenças, enquanto 80% são usados para prevenção de doenças e engorda, segundo um relatório da ONG Proteção Animal Mundial sobre resistência antimicroniana na pecuária intensiva, publicado em julho.
Além de o micro-organismo super-resistente chegar aos esgotos pelas fezes de animais como galinhas, bois e porcos, alimentos mal cozidos infectam o homem e se reproduzem no intestino.
Penicilina, o primeiro antibiótico
O primeiro antibiótico de que se tem registro é a penicilina, criada em 1928 pelo farmacologista britânico Alexander Fleming. Foi a solução para doenças que castigavam populações, como a peste negra, a tuberculose, a peste bubônica e a febre tifoide.
Mas já no final da década de 1930 o próprio Fleming alertava sobre as mutações que as bactérias vinham sofrendo. Ao receber o Prêmio Nobel pela sua descoberta, em 1945, Fleming fez um discurso profético:
Existe o perigo de que um homem ignorante possa facilmente se aplicar uma dose insuficiente de antibiótico, e, ao expor os micróbios a uma quantidade não letal do medicamento, os torne resistentes.
Alexander Fleming, inventor da penicilina